A Adoração

A Adoração e a Proclamação

por: Isaltino Gomes Coelho Filho
Palestra apresentada à Associação Batista dos Músicos do Brasil

INTRODUÇÃO

Da palestra passada não se deve inferir que advogo uma Igreja alienada, ensimesmada, enfurnada em quatro paredes, cantando “somos um pequeno povo mui feliz” enquanto o mundo lá fora está rebentando por todas as juntas, numa frase de Sartre. Se o Programa de Educação Religiosa dá o cultuar a Deus como a primeira missão da Igreja, declara que a segunda missão é “anunciar as boas-novas”.

Vou usar o termo proclamação para esta segunda missão, que é a evangelização. É preciso também defini-la. É mais que pedir aos homens para aceitarem a Jesus como Salvador. Diga-se que esta construção de palavras, “aceitar Jesus como Salvador”, não consta do Novo Testamento. A chamada neotestamentária é para submeter-se a Cristo como Senhor.

A proclamação é o anúncio dos atos de Deus em Cristo. Paulo sintetizou isto de forma admirável em 2 Coríntios 5.19: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”. Foi isto que Deus fez em Cristo. É isto que a Igreja deve anunciar.

A missão da Igreja junto ao mundo é mais que promover a fraternidade entre os homens. Voltemos a Paulo, desta vez em 2 Coríntios 5.20: “…rogamo-vos, pois, por Cristo, que vos reconcilieis com Deus”. A Igreja chama o mundo a aceitar a reconciliação com Deus, proposta que ele já fez na pessoa de Jesus Cristo.

Juntemos as pontas até agora. A adoração é a missão primeira da Igreja em termos gerais,. É a linha vertical da missão da Igreja. A proclamação é a missão segunda da Igreja em termos gerais, mas é a primeira na linha horizontal, na direção do mundo. Vertical e horizontal fazem a cruz, que tem estas duas linhas. Se faltar uma delas, a cruz não existe. A Igreja é uma comunidade profundamente marcada pela cruz. É ela uma comunidade marcada pelas linhas horizontal e vertical. Sua missão tem também uma dimensão horizontal e outra vertical. Se ela viver enclausurada em adoração, só na dimensão vertical, isso pouco ajudará ao mundo. Se se dirigir ao mundo (a dimensão horizontal) sem o poder que a comunhão com Deus pela adoração outorga ao homem, isso será uma missão fadada ao fracasso. Só uma Igreja que vive na presença de Deus conseguirá mostrar Deus ao mundo. Como comunidade marcada pela cruz, a Igreja se dirige a Deus e ao mundo. Tem uma missão vertical e uma horizontal. Ela adora a Deus, sua razão primeira de ser. Ela proclama a reconciliação aos homens, conseqüência do seu conhecimento de Deus.

1. A Relação Igreja e Mundo

Já vimos a relação entre a Igreja e Deus, na preleção passada. Veremos agora a relação entre a Igreja e o mundo. Ela está no mundo, mas não se mancomuna com ele. Vive numa tensão, estar, mas não ser. está aqui, mas não é daqui. E está aqui com uma missão, que chamei de missão horizontal: a de proclamar o evangelho. Duas questões devem ser aqui levantadas. A primeira é o que entendemos por evangelho. É evidente que aqui não me refiro ao estilo literário encontrado na Bíblia, mas ao seu conteúdo. A segunda é o que entendemos por proclamação.

2. O Conteúdo do Evangelho

O conteúdo do evangelho pode ser deduzido desta declaração do Pacto de Lausanne, ao falar sobre o que é evangelizar: Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como Senhor e Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito a todos que se arrependem e crêem. A definição é sobre o que é evangelizar, mas caracteriza bem o conteúdo do evangelho. E mostra o que é proclamação. A encarnação de Deus em Cristo, sua morte vicária, sua ressurreição, o perdão oferecido e o Espírito que é dado aos arrependidos que crêem. Proclamar as boas-novas é dizer isto.

Por que comecei com algo tão óbvio? Acho que meu raciocínio é muito cartesiano e por isso gosto de começar do mais elementar para construir a argumentação. Mas é que há hoje muita proclamação equivocada, oferecendo riqueza, cura, apoio da parte de Deus, mas sem falar em necessidade de arrependimento, de perdão de pecados, da morte de Cristo na cruz. Dirá alguém: “Ótimo, diga isso aos pregadores”. Ah, sim, sempre digo. Mas devo dizer também aos músicos que usam um instrumento tão poderoso como a música para a proclamação. O conteúdo de nossos hinos e de nossos cultos deve realçar fortemente um conceito correto do evangelho. O que me prendeu primeiro à Igreja foi a música. Quando entrei pela primeira vez numa igreja evangélica, ouvi o coro cantar dois hinos: “Eis vede que o Cordeiro de Deus sobre a cruz morreu em meu e em teu lugar” e “No Monte das Oliveiras Jesus orou dizendo..”. Não entendi completamente a mensagem pregada porque não dispunha de capacidade para acompanhar um discurso religioso por meia hora. Faltavam-me os elementos para fazer as conexões mentais necessárias. Entendi que tratou de algo que eu não tinha e de que precisava, por isso voltei nos domingos seguintes e volto até o dia de hoje, mais de trinta anos depois. Mas a música, com sua facilidade de comunicar uma mensagem, de repetir refrães, ficou na minha mente. O que me alcançou primeiro foi a mensagem correta dos hinos que ouvi. Depois, a mensagem correta da Palavra, que o Pr. Falcão Sobrinho sempre pregou, que me alcançou. Aliás, até hoje, meu conteúdo teológico é pietista, o que herdei dele.

O que estou dizendo é da extrema necessidade de teologia correta em nossos cânticos e de comunicação eficiente nas nossas letras. A Igreja não deve apenas pregar uma mensagem ortodoxa, mas deve cantar também hinos ortodoxos. Num culto de proclamação, os hinos não são para amolecer os corações ou para criar um clima emotivo. Os hinos devem comunicar uma mensagem. Creio que todos já tivemos a experiência de uma audição ou cantata apresentada por um coro ou um culto musical, e depois, quando feito o apelo, sucederam várias decisões. A música não é um apêndice ou um componente da proclamação. Ela também proclama e isso deve ser levado em conta, no tocante ao conteúdo e à escolha dos hinos. A Igreja não apenas prega para o mundo, ela também canta para o mundo. E, por vezes, o mundo ouve mais o que a Igreja canta do que o ela prega.

Acho que isso nos abre um leque para algumas considerações.

3. O Conceito de Proclamação

Já deixei antecipado alguma coisa sobre a proclamação no tópico anterior. Nem sempre se separam bem os argumentos. Vou começar aqui com uma história triste, que deveria ser engraçada. Ou engraçada, que deveria ser triste. A ótica vai ser sua. Dizia-me um seminarista, filho de pastor, que na igreja do seu pai, a linha dos sermões era bem definida. De manhã, sermão era doutrinário. O pastor falava mal dos pentecostais. À noite, sermão era evangelístico. O pastor falava mal dos católicos. Tirando o exagero da história, fica a pergunta: existe esta linha tão bem definida, de que o culto evangelístico é para os não crentes? Quando se pensa assim, a proclamação passa a ser uma recitação de frases feitas, tipo “Deus te ama”, “Jesus salva”, “Vem agora porque um ônibus pode te atropelar na saída do culto e amanhã será muito tarde”, etc. Um conteúdo banal e irrelevante, no sentido de acréscimo à vida dos crentes.

Volto ao Programa de Educação Religiosa. Ele é como a Constituição: tem valor, mas poucos o conhecem. Diz ele sobre o anúncio das boas-novas (que estou chamando de proclamação): Anunciar o evangelho significa comunicar tudo o que Deus fez através de Jesus Cristo para a salvação do ser humano. É colocar as pessoas frente a frente com as boas-novas da redenção outorgada por Deus por meio de Cristo. É a evangelização. E, na seqüência imediata, para o que chamo a sua atenção, o seguinte: Não é somente anunciar as boas-novas aos incrédulos, mas também ajudar os crentes a dissiparem suas dúvidas, até que todos cheguem “à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Efésios 4.13).

A proclamação não é recitação de chavões, mas é o ensino da teologia da salvação, o que os teólogos, pomposamente chamam de soteriologia. Um culto de proclamação não apenas coloca os não crentes diante da graça de Deus oferecida em Cristo, mas firma no crente suas convicções sobre sua decisão, ajuda a aumentar seu conhecimento sobre a obra de Cristo, dá mais elementos para sua capacitação no testemunho.

Vejamos o papel da música aqui. É evidente que, para pessoas sem conhecimento do evangelho, sem elementos evangélicos em sua mente, a letra deverá ser simples (o que não significa ser banal ou fraca) e comunicar alguma coisa. Sem apedrejar ninguém: fui pregar num culto jovem, com propósito de evangelizar jovens. Cantamos apenas corinhos. Mas o ritmo se sobrepunha à letra. Era tão agitado e tão instrumental (no sentido de que os instrumentos apareciam mais que a mensagem) que nada comunicava. Não se ouvia a letra, mas apenas os instrumentos. E a letra se perdia num ritmo muito rápido, não podendo ser assimilada. Quando chegou a hora da pregação, defrontei-me com um auditório cansado, agitado, mas sem nenhum elemento evangélico assimilado. Os jovens estavam muito bem intencionados, mas mal orientados. A música evangélica, naquela noite, não pregou, e serviu para cansar. Pareceu-me, até, que atrapalhou. A reflexão que o sermão poderia trazer se perdeu porque o auditório estava excitado e sem condições de pensar.

A proclamação deve ser compreensível. Não é apenas o sermão, mas os hinos. Deve haver compatibilidade entre letra e música. Se o ritmo não favorece a mensagem comunicada pela letra, haverá prejuízo. Deve haver, também, compatibilidade entre ritmo e propósito. Quando estudei Publicidade, um dos pontos que me foram mostrados foi o uso da música para vender. Observem que em supermercado a música não é lenta, para favorecer a reflexão. É agitada exatamente para que as pessoas não pensem e ajam sob a influência de cores, formas, luzes e exposição de objetos. É para induzir à compra. Há uma música para supermercado. Há uma música para um restaurante de luxo, com jantar à luz de velas, onde o desejo é que o casal tome um champanhe, que é mais caro que uma cerveja. O ritmo funk num restaurante de luxo, freqüentado por pessoas abonadas, frustrará o propósito do restaurante. Não se consumirá.

Não estamos querendo manipular pessoas, mas querendo mostrar que há um poder na música que as pessoas nem sempre relevam. Para mim aqui reside o grande problema. Seja por pressão, seja para manter os jovens aquietados, boa parte dos pastores está deixando a música na Igreja nas mãos de moços bem intencionados, mas desconhecedores do poder da música, dos estilos e a sua relação com os tipos de mensagens, de teologia (quanta barbaridade se canta por aí) e de português (Camões teria um ataque apoplético se entrasse em algumas de nossas igrejas).

A música proclama através de uma teologia correta, de uma adequação entre mensagem e veículo, ou seja, entre conteúdo e forma. Nestes pontos ela precisa ser muito bem ajustada.

Fugi um pouco da linha de pensamento. Voltemos a ela: a música comunica não apenas aos incrédulos, mas aos crentes. Para isso precisamos de hinos consistentes, que tragam uma mensagem com conteúdo. Não sou músico, mas sou pregador e dirijo cultos. Neste sentido, em minha ótica, quero dar como exemplo do que estou dizendo o hino 447, do HCC, “Mas Eu Sei em Quem Tenho Crido”. A letra é um testemunho admirável, consistente, de teologia correta, de vida cristã piedosa e casada com uma música adequada. É um hino que comunica ao não crente, e da mesma forma, é um alento extraordinário para o membro de Igreja. Da mesma forma, o hino 262. Observem nele uma teologia correta extremamente contextualizada, porque trata da angústia do homem moderno, de solidão, de medo do futuro. Vejam que a música é muito bem encaixada porque induz à reflexão. Imaginem, agora, uma letra desta, reflexiva, induzindo à auto-análise, acoplada um ritmo agitado. Observe também que, além de evangelístico, de proclamar, o hino é confortador. Sua mensagem trata de realidades que nós, membros de Igreja, também enfrentamos.

Uma síntese deste ponto: proclamação não é chavão. Alcança também o convertido. E o casamento letra e música e indispensável para alcançar o propósito de comunicar.

4. Uma Questão Necessária: A Forma.

Ao encerrar o primeiro ponto disse eu que aquilo nos abria um leque. Um dos grandes problemas hoje é a forma. Em alguns momentos, ela é sobreposta ao conteúdo. O ritmo fala mais alto que a letra. Qual é a forma correta?

Voltemos ao que citei na ocasião: A música não é um apêndice ou um componente da proclamação. Ela também proclama e isso deve ser levado em conta, no tocante ao conteúdo e à escolha dos hinos. A Igreja não apenas prega para o mundo, ela também canta para o mundo. É preciso distinguir bem entre o que nos comunica e o que comunica ao mundo. Creio que acontece com os músicos batistas o mesmo que acontece com os pregadores saídos de seminários. Saímos com uma fraseologia, com um tecnicismo que pode ser bom ou desastroso, com uma determinada visão até mesmo elitista.

“O processo soteriológico tem sua gênese concretizatória no drama do Calvário” significa isso: o plano de salvação culminou na cruz. Vou mexer em vespeiros, mas vamos lá. Conto com sua misericórdia. Para nosso povão, o que significa boa parte da música sacra clássica? Podem até achar interessante, mas quanto comunicará? Contava um professor de Homilética de um pregador enfiado num terno preto, com colete e tudo, Bíblia na mão, pregando numa favela do Rio: “Ó vós que passais e me ouvis a prédica”. E dizia o professor: “Vós, coisa nenhuma. Meia dúzia de gatos pingados, de sandália de dedo, bermuda e sem camisa. É tu, você, ô cara”. Descontado o aspecto cômico, há verdade aí.

Passei por algo semelhante quando pastoreava no interior de S. Paulo. Num culto em Jaú, na Fazenda Barro Vermelho, dos Almeida Prado, não pude pregar. Inflamação das amígdalas. Minha esposa contou história para os ouvintes, com flanelógrafo e figuras. Acabado o culto, disse-me um dos bóia-frias: “Pastor, num prega mais pra nós, não. Quando o senhor fala nós num entende nada. Quando sua muié fala, nós entende tudo. Deixa ela pregar”. Era o meu tecniquês teológico o grande obstáculo. E eu pensava que estava abafando.

O que o mundo a quem estamos proclamando, canta? Conheço igrejas indígenas. Não sei quanto o “Dai Louvor”, de Mendelsohn, significará para elas. Talvez pouco. Mas sei que músicas no seu alcance cultural significará muito. E se alguém pensa que isso significa tambores, tantãs, barulho infernal, danças, está equivocado. O ritmo, das igrejas que conheço, é até lento. Mas comunica-lhes porque é na sua cultura. A mim, enfada. A eles, fala muito.

Não vou ensinar missa ao vigário, mas os irmãos sabem muito bem que boa parcela de nossas músicas sacras foi importada de outra cultura e aqui sacralizada por seu casamento com uma letra evangélica. Para nós, acostumados com o cenário evangélico, há muita comunicação. Para outros, não. Um padre, que se convertera ao evangelho em Brasília, conversando comigo uma vez disse: “É impressionante como os hinos evangélicos refletem a cultura musical americana. Se fechar os olhos e ignorar a letra, posso pensar que estou no Meio-Oeste norte-americano”. Se há uma coisa pela qual me bato é pela teologia tupiniquim, pela eclesiologia tupiniquim, pela música tupiniquim. Dirá alguém que a teologia, por ser bíblica, é uma só, universal. A declaração não reflete a realidade e não penetra na profundidade das coisas. Temos livros sobre aconselhamento pastoral, sobre ética e sobre eclesiologia que mostram um enorme desconhecimento do que seja nossa realidade. Nossa própria formação teológica, nossa estrutura de seminários, é de países ricos e não de país pobre. Sou favor de uma ampla tupiniquinização batista, sem xenofobia, mas tupiniquinização, sim.

Devemos proclamar em nossa cultura, em nosso contexto, em nossa linguagem, em nossa musicalidade, tendo discernimento espiritual (temos o Espírito Santo) sobre o que fazer e o que não fazer.

À guisa de conclusão

Cada vez que relia esta palestra, mais a sentia incompleta. Fiquei um pouco aflito porque notava que falta algo para dizer. Mas consegui me entender (tarefa um pouco difícil). Receei-me de dizer aquilo que os irmãos já sabem e sabem melhor do que eu, na sua área. E estou falando de matéria atinente à sua área. Precisava apenas acrescentar minha ótica, a ótica pastoral. Depois de reler mais de uma vez, achei que tinha dito o que deveria ter dito. A questão, a partir daqui, é ajuntar a sua bagagem cultural na área de música com minhas reflexões pastorais. Somando as duas partes, pensar um pouco e verificar como a música pode ser mais bem empregada na proclamação. Aí creio que chegaremos a algum ponto.


Fonte: Publicado originalmente em https://www.ibcambui.org.br/


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