A Adoração

Compromisso Básico na Adoração

por: Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

Foi Sócrates quem disse: “Se queres conversar comigo, define tuas palavras”. E dizia meu mestre, Dr. Purim, nos tempos áureos do Seminário do Sul: “Bem, bem, vamos definir os termos”. Evitarei, no entanto, as definições de dicionários. Elas manifestam, como citação, pobreza de conteúdo. Mas definirei do que falaremos.

Por compromisso, entendo um envolvimento responsável, que leva a firmar posições duradouras. Até aqui, tudo tranqüilo. Por adoração não me refiro a entretenimento espiritual ou a um momento de cânticos. Adoração e louvor têm sido dimensionados em alguns segmentos como cantar corinhos e tocar instrumentos em alto volume, em ambiente agitado, enquanto algumas pessoas se exibem, e outras as coadjuvam, embevecidas. Mas o que queremos dizer com “adoração”?

Uma Definição de Adoração

Cito uma observação de Bruce Shelley, respeitado teólogo americano, a quem tive o privilégio de receber em minha, casa em Brasília. Começo por este comentário:

A adoração é ato da igreja reunida em que louvor e honra são dirigidos a Deus pelos seus dons preciosos a seu povo em Jesus Cristo e através dele. A chave da verdadeira adoração não é o homem, mas Deus. O Deus da Bíblia revelou-se de tal maneira a nós que a natureza do culto cristão é determinada pelo seu caráter. [1]

A esta definição de Shelley ajunto outra, curta, de Martin: “Adorar a Deus é atribuir a ele um valor supremo, porque somente ele é digno” [2].

Aparentemente, elas primam pela obviedade, mas nos ajudam a firmar uma posição. Com elas, o foco é posto em Deus e não no homem. Muito da chamada adoração contemporânea não é para Deus, mas para o homem. Os sentimentos humanos são supervalorizados e a ênfase fica em como as pessoas podem ser alcançadas. Assim, dá–se espaço para luzes, fumaça, gestual, encenação, dançarinas de hula-hula evangélicas, etc. O culto é avaliado em como ele nos impactou, e o que produziu de sentimentos em nós. Passamos a ser o parâmetro do culto. Mas o alvo da adoração é Deus.

O propósito da adoração não é fazer-nos sentir coisas, experimentar sensações nem produzir emoções em nós. Seu propósito é levar-nos a uma reflexão sobre os atos de Deus, seu amor, sua graça. Isto quer dizer que a adoração deve nos levar a uma séria reflexão sobre os atributos e atos de Deus. E ele deve ser exaltado no discurso de adoração.

Deixem-me tentar esclarecer um pouco mais. Em meu livro Teologia dos
Salmos
[3], ao tratar da classificação dos salmos, entre os seus tipos, mencionei os salmos de louvor e os de adoração. Sobre o primeiro tipo, comentei que salmos de louvor são os que tratam do prazer de estar na casa do Senhor, com ele. São salmos que tratam do culto comunitário, e parecem aludir ao culto público, no templo. Dei como exemplo os salmos 24, 84, 100, 116 e 122. Sobre o segundo tipo, comentei que salmos de adoração são aqueles que exaltam a pessoa de Deus e exaltam seu nome e caráter. Sua linha teológica é mostrar o relacionamento adequado com ele. Dei como exemplo os salmos 29, 87, 103, 107, 114, 136 e 150.

Chamo sua atenção para o fato de que embora os salmos de louvor possam ser vistos como mais pessoais, o foco continua sendo Deus. Ele é o centro do culto. C. S. Lewis observou:

O bom calçado é aquele que você não nota. A boa leitura torna-se possível quando você não precisa pensar conscientemente sobre os olhos, a luz, a impressão, a pronúncia. O culto perfeito seria aquele que passasse praticamente despercebido; nossa atenção estaria voltada para Deus. [4]

Em outras palavras, a verdadeira adoração e o culto autêntico devem nos levar a ter Deus como o mais importante. A forma e as pessoas que conduzem o momento deveriam ser simplesmente esquecidas. Quando pessoas aparecem mais que Deus alguma coisa saiu errada. Quando circunstâncias que devem ser secundárias se tornam o principal, algo saiu errado. O culto e a adoração são para Deus, não para nosso bem-estar ou para a projeção de alguma pessoa. Dou um exemplo bem singelo. Há cantores que me chamam a atenção para si com suas roupas, sua gesticulação, seu desempenho. E há Feliciano Amaral. Ouvi-o cantar na última assembléia da Convenção Batista Brasileira, em Brasília. Fiquei comovido e chorei com os hinos por ele apresentados. Ele simplesmente desaparecia, apesar de ter bom porte físico. E Deus brilhava com suas mensagens musicais. Dou outro exemplo, e agora como pregador. Quando escuto Russel Shedd pregar, vejo o ensino riquíssimo da Bíblia, e não o Dr. Shedd. É isto que quero dizer.

Por Que Adorar a Deus?

Volto ao meu livro Teologia dos salmos. No capítulo “O culto”, alistei os três motivos mais comuns pelos quais Deus deve ser adorado, conforme o saltério. São eles: (1) O caráter e a natureza de Deus; (2) Sua ação redentora na história, bem como a libertação do fiel, como indivíduo; (3) A necessidade humana de Deus. Em outras palavras: quem ele é, o que ele fez e nossa necessidade.

Adoramos a Deus porque temos necessidade de adorá-lo. Relembramos seu caráter e sua natureza, que são motivos de segurança para nós. Relembramos sua ação redentora pela igreja e por nós, como indivíduos, em momentos de aflição. E levamos a ele a nossa necessidade existencial de um ser maior que nós, Ele, e nossas necessidades pessoais.

A adoração deve ser vista como expressão de um relacionamento com o Divino, e não como recitação de fórmulas estereotipadas. Assim como devemos evitar engessar o relacionamento com Deus em uma liturgia tida como tradicional, devemos evitar engessar o relacionamento com ele em uma forma litúrgica denominada “livre”. Porque a alegada ausência de fórmulas nada mais é que uma fórmula. Uma fórmula bagunçada e desorganizada, mas uma fórmula. Porque se repete, é sempre a mesma desordem. Não é a questão de fórmulas litúrgicas, mas se trata de um sentimento, de um ato de fé.

O Que Tem Acontecido?

Tem acontecido que adoração passou a ser dimensionada em termos de fórmulas. Praticantes de uma fórmula depreciam a fórmula dos praticantes de outro lado. A questão que me parece mais importante é que a fórmula precisa ter espiritualidade, e não, necessariamente, descontração. E, por outro lado, não necessariamente contração. É fundamental que o adorador não seja o elemento central, mas periférico. Hoje se dá muita ênfase às palavras “adoração” e “adoradores”. E pouca ênfase a “servos”. É que adorar nos faz bem, porque externalizamos nossas emoções. Mas assumir ser servos nos traz compromissos, e isso nem todos querem. Sobre isto, coloco como apêndice um artigo meu intitulado “Não é louvor que Deus quer”.

O foco em pessoas tem desvirtuado o culto. Tem colocado Deus na periferia. Nossa cultura secular é de entretenimento. Tudo é visto como diversão, e as indústrias do turismo, de shows, de passeios e da vida lúdica têm uma dimensão enorme. Isto vaza para dentro da igreja. A cultura do entretenimento impregnou muito de nossos cultos. O que importa não é a contrição, mas a recreação. O culto se tornou uma festa espiritual. E festa é para nos sentirmos bem.

Este desvirtuamento tem desdobramentos. Muitas atividades das igrejas para alcançar as pessoas são calcadas sobre celebridades, não sobre pessoas santas. Os cultos, nesta ótica, sempre devem ser interativos, sob a desculpa de participação, para que as pessoas se expressem. Quer se falar e se expressar mais que se ouvir. Evidencia isto o fato de que muitos de nossos cultos têm mais espaço de tempo para cânticos, onde as pessoas se expressam, do que para o ensino bíblico, onde as pessoas ouvem. Os próprios cânticos, nesta compreensão, precisam ter um conteúdo soft, em que as pessoas interajam do que um conteúdo mais denso, com ensino das verdades cristãs. Eles são mais para ginga e gestos que para reflexão. Os hinos cristãos nunca foram recreacionais, mas instrutivos. Como os salmos são instrutivos. Como os fragmentos de hinos no Novo Testamento são instrutivos.

Com isto temos igrejas ricas de expressão, mas pobres de conteúdo, porque uma das funções da música é o ensino da verdade bíblica. Lutero firmou as verdades teológicas da Reforma, junto ao povo, com seus hinos, mais que com seus escritos. Mas que verdades aprendemos da maioria dos cânticos de hoje, todos descartáveis, a ponto de não durarem um ano? Eles falam de abstrações espirituais, e não de verdades da fé. Não levam a compromisso espiritual.

Ao longo da história, Deus usou profetas para chamar seu povo à correção. Inclusive quando a liturgia era usada para tirar o foco da verdade do relacionamento com Deus. Já notaram quantas vezes Deus reclama do culto no Antigo Testamento, mostrando que ele estava sendo usado para desviar o povo de Deus? Não soa estranho que o culto a Deus seja instrumento para desviar o povo dos caminhos de Deus? Eis aqui um outro perigo que vejo, dentro desta linha de raciocínio de entender a adoração como forma e não como essência. Ela se torna rotina e deixa de ser vida. É um dos mais graves perigos para a igreja.

Encontramos na Bíblia atos de culto que Deus recusa e até com veemência. Em Isaías 1:11-15 há um duro discurso contra o culto dissociado da vida. A adoração era hipócrita, meramente de atos, desprovida de vida. Diz Deus, pelo profeta: “De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios? diz o Senhor. Estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; e não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes. Quando vindes para comparecerdes perante mim, quem requereu de vós isto, que viésseis pisar os meus átrios? Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação. As luas novas, os sábados, e a convocação de assembléias … não posso suportar a iniqüidade e o ajuntamento solene! As vossas luas novas, e as vossas festas fixas, a minha alma as aborrece; já me são pesadas; estou cansado de as sofrer. Quando estenderdes as vossas mãos, esconderei de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei; porque as vossas mãos estão cheias de sangue” (Isaías 1:11-15).

Em Jeremias 7:4 há uma crítica a algo que se tornou muito comum entre os evangélicos de hoje: a fé era no templo, não no Senhor do templo: “Não vos fieis em palavras falsas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor são estes”. Quantos evangélicos hoje idolatram os templos de suas igrejas! Orgulham-se de sua imponência e de sua arquitetura, porque isto mostra sua dimensão social. Por isso, é bom prestar atenção na continuação do texto, em Jeremias 7:5-8: “Mas, se deveras emendardes os vossos caminhos e as vossas obras; se deveras executardes a justiça entre um homem e o seu próximo; se não oprimirdes o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, nem derramardes sangue inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses para vosso próprio mal, então eu vos farei habitar neste lugar, na terra que dei a vossos pais desde os tempos antigos e para sempre. Eis que vós confiais em palavras falsas, que para nada são proveitosas”. Não era a arquitetura do templo que impressionava a Deus, mas o estado moral das pessoas que iam ao templo.

Parece que me desviei do assunto? Estou seguindo esta linha de raciocínio: não é o culto, não é sua forma, não é a estrutura física onde ele é prestado. É o estado do coração diante de Deus. É a espiritualidade do culto e do cultuador, e não a forma do culto. O culto pode ser esteticamente perfeito, despertar em nós os melhores sentimentos, mas ser uma ofensa a Deus. Porque o culto é para ele e não para nós. E ele não aceita culto oferecido por gente de vida suja. Por isso, seu arrazoado através de Isaías: “Lavai-vos, purificai-vos; tirai de diante dos meus olhos a maldade dos vossos atos; cessai de fazer o mal; aprendei a fazer o bem; buscai a justiça, acabai com a opressão, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva. Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados são como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã” (Isaías 1:16-18).

A ênfase no culto como sendo apenas liturgia e não vida, e a ênfase colocada no homem, não em Deus, produzem atos de culto que são hipócritas. Assim Jesus censura a oração hipócrita (Mateus 6:5 e 23:14), o jejum hipócrita (Mateus 6:16), a evangelização [5] hipócrita (Mateus 23:15), o dízimo hipócrita (Mateus 23:23), e até mesmo a pureza hipócrita (Mateus 23:25).

O que tem acontecido? Esta é a pergunta que dá título a este tópico. Tem acontecido que a adoração e o culto deixaram de ser expressão de vida e passaram a ser atos nem sempre coincidentes com a vida. Muitas igrejas têm sua maior preocupação com a estética, e não com o seu estado espiritual. Comprovei isto quando uma igreja que eu pastoreava entrevistou uma pessoa em quem pensávamos para ser nosso ministro de música. Todas as perguntas dos líderes foram sobre sua visão litúrgica e nenhuma sobre sua visão espiritual do culto. Nem uma, também, sobre sua vida espiritual pessoal. Como muitas igrejas que hoje procuram pastor. Os hábitos devocionais e a vida de comunhão do obreiro com Deus nunca são abordados, mas apenas suas práticas litúrgicas ou sua perspectiva doutrinária. Ou, ainda, sua capacidade gerencial. Isto é um perigo enorme: a perda da visão de espiritualidade como sendo relacionamento com Deus, como sendo vida.

A Grande Necessidade Para um Compromisso de Adoração

A grande necessidade para subsidiar nosso compromisso com a adoração é o resgate do significado da adoração. Assim, se por um momento estivemos caminhando por uma vida secundária da estrada, agora voltamos ao caminho principal.

Parto agora do texto de Romanos 12.1: “Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional”. O culto “racional” (lógikos, no grego) é a apresentação dos corpos a Deus. “Corpos” é o grego sômata, que é mais que a parte física, a carne, e sim a interioridade da pessoa. Mais que o que se faz com o corpo (vozes e gestos) trata da volitividade da pessoa, seu centro decisório.

Martin lembra que a palavra hebraica para “adorar” é hishahawah, que significa “curvar-se”. Liga-se mais à atitude que ao ato. A pessoa se curva pela consciência de quem está diante dela. É um reconhecimento de que estamos tratando com alguém maior que nós. Não há adoração autêntica sem esta consciência. Esta consciência é indispensável para o resgate da verdadeira adoração e do culto autêntico. A verdadeira adoração deve produzir quebrantamento e consciência da presença de Deus.

Este resgate do significado da adoração passa por este ponto: ela é mais que forma, é essência. O sentido de “em espírito e em verdade” passou a ser, entre nós, fazer um ar compungido, como quem está sentindo dor. No contexto das palavras de Jesus, é a adoração que não depende do lugar nem de discussões teológicas. Damos muito valor à forma do culto. Mas, para mim, muitas vezes é mais questão de opção. E tendo feito uma opção acabamos nos firmando nela. Pessoalmente, abomino barulho. Cultos barulhentos me desnorteiam e me tiram toda a espiritualidade, produzindo em mim mais irritação que outra coisa. Há quem goste de barulho e acha que volume de sons é sinal de espiritualidade. Eu prefiro a voz mansa e delicada que veio a Elias, que o vento forte, o terremoto e o fogo que a antecederam. Porque Deus veio em voz mansa e delicada (I Reis 19). Mas não estou teologizando neste texto, apenas mostrando minha preferência.

Não podemos discutir preferências, mas podemos discutir a validade de algo que foi preferido pelos seus resultados. É o sentido de Mateus 7.16, que diz que conhecemos o valor de algo pelos seus frutos. Nunca houve tantos encontros de adoração, tantos peritos em adoração, tanta gente vivendo de adoração, e nunca se viu um momento de tamanha superficialidade na vida da igreja, e tão escassa espiritualidade na vida da igreja. Não marcamos o mundo nem impactamos a sociedade com todos os nossos cultos e o barulho que fazemos neles. Infelizmente, na maior parte das vezes, quando evangélicos aparecem na mídia é aludindo a algum escândalo. Temos cultos que não produzem santos. Temos adoração que não transforma a igreja. Todo o “sistema adoracional” das igrejas contemporâneas tem produzido um cristianismo como uma lagoa: esparramado e raso.

Este resgate deve ser também da integridade moral da igreja. Diz bem Wiersbe, sobre as revistas com promoção de ministérios evangélicos:

O evangelho tornou-se um alto negócio, e toda a sorte de estranhos pássaros estão empoleirados nos seus ramos. O culto da personalidade tornou-se um círculo vicioso, e estamos agora promovendo ministérios e mercadorias do mesmo modo que o mundo promove pasta de dentes e carros usados. A única coisa mais nauseante do que ler essas revistas é visitar a exposição das habituais convenções cristãs, ver pessoas e mercadorias em corres vívidas e observar como competem entre si. [6]

A adoração tem feito surgir um comércio e uma competição em que os adoradores se vêem como rivais, e disputantes da mesma fatia de mercado. Isso não é adoração. É comércio. Devemos fugir desta adoração enlatada, da usina de corinhos empobrecedores do culto (porque feitos para venda), de adoradores mercenários, de vendedores de louvor. Isto não é sadio. Infelizmente, e Wiersbe não feriu isto, entre as mercadorias não há apenas ministérios de comerciantes espirituais, mas também há igrejas se vendendo como mercadoria. Há igrejas que promovem a si mesmas, ao seu ministério, e não a Jesus Cristo. Há uma guerra absurda e não surda entre ministérios e igrejas. Porque adoração e culto se tornaram negócios rendosos. A sinceridade da adoração deve ser resgatada. Se não, a vida moral da igreja estará seriamente debilitada. Prova disso é que muitos dos adeptos de alguns desses ministérios e dessas igrejas que se acham mais igrejas que as demais, reagem com zanga às críticas. Agem mais como fãs do que como fiéis. Aliás, muitos ministérios têm legiões de fã clubes que vibram mais com eles que com Jesus Cristo.

O Compromisso Propriamente Dito

Creio que agora posso encaminhar a questão para o aspecto do compromisso básico na adoração. Deve ser um compromisso tríplice: (1) Com Deus; (2) Com a igreja; (3) Consigo mesmo.

Deve ser um compromisso com Deus porque deve promover sua santidade. Um Deus que não seja absolutamente santo não merece culto. E Deus é Santo, não a fada madrinha que realiza nossos sonhos. A consciência do adorador deve nutrir esta convicção: ele se chegou à presença do Deus Santo. O uso de uma terminologia desrespeitosa e a visão meramente humana de um “Deus camaradinha, nosso chapa”, é irreverência. O louvor deve ser sadio e a adoração deve ser reverente e profundamente respeitosa, porque tributada a um Deus Santo. A santidade de Deus demandará de nós uma busca de santidade, também. A adoração deveria nos levar a sermos espiritualmente mais santos. Isto acontece?

Deve ser um compromisso com Deus por exaltar sua graça. É pela graça que um Deus santo se comunica com pecadores. O mérito tem tomado o lugar da graça. Não são nossas virtudes, não é nosso dinheiro e nem o nosso louvor que trarão Deus para o nosso lado e o levarão a fazer o que queremos. A “meritocracia pelo louvor” deve ser repelida. É graça que faz Deus vir a nós. Muito discurso sobre a fé acaba sendo um discurso sobre mérito. É bom ter fé, mas a graça vem antes. Diz João 1.27: “Respondeu João: O homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do céu”. É pela graça, e não pela fé que somos salvos: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2:8-9). Muita gente nega a salvação pelas obras, mérito humano, e afirma sua fé como mérito humano. A fé se apropria da graça, mas se não houvesse graça a fé seria inútil. A adoração não é para produzir mérito, mas para reconhecer a graça de Deus.

Deve ser um compromisso com Deus reconhecendo que temos necessidade dele. Aqui entra a fé. Cremos nele e dependemos dele. Cantamos a ele, oramos a ele, esperamos dele. Temos necessidade existencial dele, como na célebre frase de Agostinho, de que fomos criados para ele e só encontramos descanso quando descansamos nele. Temos necessidade dele para nos orientar, nos dar oportunidades e cuidar de nós. Ele é nosso Pai. Podemos pedir e esperar. É Pai, e não Papai Noel. Um pai nem sempre dá o que os filhos querem, mas o que ele sabe que os filhos necessitam.

Deve ser um compromisso com a igreja porque foi a igreja que ele instituiu para comunicar sua graça ao mundo. Paulo deixou claro, na carta aos coríntios que aquela igreja local era corpo de Cristo. A igreja local é corpo de Cristo e o canal de ensino de Deus até mesmo para as potestades espirituais. Há gente adorando anjos e potestades espirituais, mas eles aprendem da igreja: “Para que agora seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regiões celestes” (Efésios 3:10). Não são ministérios avulsos, mas a igreja local. Não são livres atiradores, mas a igreja local. Nosso compromisso deve ser com a igreja local. E esta não pode vir a reboque de ministérios de louvor. A igreja não vem a reboque de pessoas.

Temos um compromisso com a igreja local, de educá-la, de promover sua edificação, de amá-la, de nos dedicarmos a ela. Não somos chamados para promover a recreação da igreja, mas sua edificação, como lemos em Efésios 4. Por isso, líder de música ou de outro ministério, ame a igreja. Seja sério. É diferente de ser sisudo. Ser sério significa fazer o melhor para a igreja de Jesus. A leviandade é mortal. Num livro sobre pregação, Al Martin disse que “ninguém pode ser, ao mesmo tempo, um palhaço e um profeta” [7]. Culto não é brincadeira e adoração não é diversão. É entrar na presença de Deus e conduzir o povo de Deus num relacionamento com ele.

Temos um compromisso conosco. Há muita gente em nossas igrejas amando-se mais a si mesmo que a Deus, e pensando de si mais alto do que convém. Somos servos. Nossa constituição espiritual foi modelada pelo Espírito Santo de tal maneira que só nos realizamos como servos. As igrejas de hoje têm senhores demais e servos de menos. Por isso encontramos em nosso meio tanta gente frustrada. Porque só nos realizamos espiritualmente quando somos leais à nossa vocação, que é servir a Deus e aos outros. As pessoas mais realizadas na história da igreja não foram os que se julgaram donos dela ou acionistas majoritários, mas os que se viram como servos e desempenharam esta função. Pelo nosso bem estar, inclusive, precisamos nos ver como servos de Deus e da igreja. Este espírito de servo nos vem pela convivência com Deus, pelo cultivo de uma adoração autêntica, que marca nossa vida.

Conclusão

Dei muitas voltas, mas regressei sempre à estrada. Ando bastante impressionado e muito chocado com a baixa espiritualidade da igreja em geral e dos crentes em particular. E isto apesar de tantos encontros e congressos de teologia, de espiritualidade e de encontros de louvor e de adoração. Não consigo assimilar isto. Sempre observei que a convivência entre duas pessoas faz com que a de personalidade mais impressiva deixe marcas na outra pessoa. No meu relacionamento conjugal, minha esposa me civilizou, me domesticou e me deu lições de vida espiritual, com seu caráter. Mas trocamos influências. Nossas letras são parecidas e algumas vezes fomos tomados como sendo irmãos físicos. Acabamos nos assemelhando (isto significa que fiquei bonito!).

Não exercemos influência sobre Deus, mas ele deve exercer influência sobre nós na convivência que alegamos ter com ele. Vejo tanta adoração, tanta comunhão com Deus, e tão pouco do caráter de Deus em alguns crentes que ouso desconfiar desta adoração. As piores pessoas que conheci na minha vida aparentavam piedade e tinham muita atividade eclesiástica. E as marcas de comunhão com Deus? Que piedade é esta que produz gente cruel e falsa?

O compromisso nosso é com Deus. Se ele for o alvo, muita coisa se acertará. Se for outro o alvo, terminará errado. Que assumamos um compromisso com Deus de viver corretamente com ele.

E tenho dito.


Bibliografia

COELHO FILHO, Isaltino. Teologia dos salmos. Rio de Janeiro: JUERP, 2000.

LEWIS. C. S. Letters to Malcolm. N. York: Hartcourth, 1964.

MARTIN, Al. O que há de errado com a pregação de hoje? S. Paulo: Editora Fiel, s/d.

MARTIN, Ralph. Adoração na igreja primitiva. S. Paulo: Edições Vida Nova, 1982.

SHELLEY, Bruce. A igreja: o povo de Deus. S. Paulo: Edições Vida Nova, 1984.

WIERSBE, Warren. A crise de integridade. Miami: Editora Vida, s/d.


Notas:

[1] SHELLEY, p. 80.

[2] MARTIN, p. 14.

[3] COELHO FILHO, p. 13.

[4] LEWIS, p. 4.

[5] O termo “evangelização” como empregado aqui é um anacronismo, mas usado como símbolo de atividade religiosa que propaga a fé.

[6] WIERSBE, p. 33.

[7] AL MARTIN, p. 22


Fonte: Isaltino Gomes Coelho Filho


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