Grandes Obras da Música Sacra

A Paixão de Cristo, Sentida por Bach

por: Rolando de Nassau

A “Paixão de Cristo, segundo São Mateus”, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), foi executada, na igreja de São Tomás, em Leipzig (Alemanha), na sexta-feira da chamada Semana Santa de 1727, 1728 e 1729 (BWV-244-b), de 1736 e 1740 (BWV-244).

Depois da morte de J.S.Bach, em 1750, a música sacra protestante declinou. Ficou negligenciada até o dia 11 de março de 1829, quando Felix Mendelssohn (1809-1847) a recuperou e regeu na “Singakademie” de Berlim.

Estava presente o filósofo Friedrich Hegel (1770-1831) que escreveu: “O gênio erudito, robusto e verdadeiramente protestante de Bach, que só recentemente conhecemos, pudemos apreciar em seu completo valor”.

Em 1820, Ludwig van Beethoven (1770-1827) tinha escrito: “Nicht Bach. Meer sollte er heissen” (Seu nome não deveria ser „riacho“, e sim “mar”).

A “Paixão” foi executada em Breslau (atualmente Wroclaw, na Silésia polonesa), então importante centro do reavivamento religioso que fazia restrições à música bachiana, em 1830. Só voltou a ser apresentada em 1841, em Leipzig, onde Bach foi ministro de música (1723-1750).

Esta “Paixão”, na opinião de Karl Geiringer (1899-1989), “representa o clímax da música de Bach para a igreja protestante” (J.S.Bach – The culmination of an era. London: Allen & Unwin, 1967; J.S.Bach – O apogeu de uma era. Rio de Janeiro: Zahar, 1985).

A obra é uma meditação profunda e apaixonada de Bach sobre a morte de Jesus.

Escrito por Christian Friedrich Henrici (1700-1764), jovem poeta de Leipzig, inicialmente era um diálogo entre a Filha de Sião e o Fiel. Ouvindo o coro introdutório, descobrimos que ele usou o método literário da interpolação e uma técnica de reportagem até hoje ensinada nas escolas de jornalismo. Essa técnica requer que o repórter responda a certas perguntas de possíveis leitores: quando?, quem?, como?, o que?, onde?, por quê?

Sob o pseudônimo “Picander”, escreveu o texto abaixo, pelo qual verifica-se que, com perguntas concisas e respostas categóricas, foi um bom repórter.

  1. “Kommt, Ihr Tochter, helft mir klagen” (Vinde agora, vós filhas, ajudar-me no pranto);
  2. “Sehet! Wen? Den Brautigan”(Vede! Quem? O Noivo);
  3. “Seht ihn! Wie? Als wie ein Lamm“ (Vede-o! Como? Como um Cordeiro);
  4. “Sehet! Was? Seht die Geduld” (Vede! O que? Vejam a paciência);
  5. “Seht! Wohin? Auf unsre Schuld” (Vejam! Onde? Em nossas culpas);
  6. “Seht ihn! Aus Liebe und Huld” (Vede-o! Por amor e clemência);
  7. “Holz zum Kreuze selber tragen” (A madeira da cruz Ele mesmo carrega).

O “libreto” foi constituído com: 1) o relato de Mateus, capítulos 26 e 27; 2) poemas de Picander; 3) versículos de corais.

Em 15 de abril de 1729, ninguém em Leipzig jamais tinha ouvido uma composição musical tão inusitada, que impôs ao público uma imagem tão elevada e luminosa do compositor, pois irradiava ao mesmo tempo gênio e piedade.

A Ordem do Culto previa:

  1. toque de sinos;
  2. canto coral;
  3. “A Paixão de Cristo”, oratório, 1ª. parte, pelo coro;
  4. hino “Herr Jesu Christ, dich zu uns wend”, pela congregação;
  5. sermão;
  6. 2ª. parte do oratório, pelo coro;
  7. Hino “Nun danket alle Gott”, pela congregação.

O coro ocupava as duas tribunas laterais, à esquerda e à direita. Christian Gerber registrou, em 1732, o evento em sua história.

A “Paixão” começa com um monumental trecho coral, que impressiona por sua estrutura musical e sua temática teológica. Desde os primeiros compassos, Bach nos submerge abaixo de um clima espiritual de amargura.

A introdução orquestral, musicada por Bach, cria um ambiente sonoro de sofrimento e dor, sendo realizado por meio de figuras instrumentais que representam, para nossa surpresa, a Ascensão, e de um cânone vocal: os baixos imitados pelos tenores, enquanto as vozes femininas cantam um contra-cânone; o efeito é incomparável; o coro adulto executa duas antífonas, seguido pelo coro de meninos, que canta “O Cordeiro de Deus”. Tudo isso é altamente dramático e profundamente teológico: o Justo sofrendo pelo injusto, o Inocente morrendo pelo culpado.

Picander, na quarte frase do coro introdutório, induz-nos à imitação do paciente e inocente sofrimento de Cristo, ressaltando a palavra alemã “Geduld” (paciência) para rimar com a palavra “Schuld” (culpa). Bach, por sua vez, arranjou a música para confirmar a tese de que a paciência de Cristo deve ser imitada pelos Seus seguidores.

A palavra “Unschuldig” (inocente) é inequívoca em seu significado; no coral é composta nas notas mais longas e mais altas. Quando Bach vai para a quinta frase (“Onde?”), ele se demora na pessoa do pecador; é o mais duradouro segmento, quando são feitas várias repetições da questão “Wohin?”; é, como salientou Jaroslav Pelikan (Bach Among the Theologians. Philadelphia: Fortress Press, 1986), “o inocente Cordeiro de Deus x humanidade culpada”.

Essas palavras eram bem conhecidas no século 18 pelos luteranos de Leipzig, como são atualmente conhecidas pelos Batistas do Brasil; mas eles, e nós, não refletimos sobre sua importância.

Durante o julgamento de Jesus (trecho no. 46 da “Paixão”), o mesmo coral aparece pela terceira vez, quando a turba quer que Ele seja crucificado; Bach e Picander põem na boca da soprano solista “Er hat uns allen wohlgetan” (Ele fez o bem a todos nós). Logo em seguida, Bach ressalta o amor de Jesus, na ária para soprano (no. 49) “Aus Liebe will mein Heiland sterben” (Por amor meu Salvador quer morrer), exprimindo uma dor quase infinita.

A “Paixão” termina por um coro fúnebre para representar a deposição do corpo de Jesus na sepultura, por isso Bach foi criticado. Mas, convenhamos, trata-se de um oratório passional com finalidade litúrgica: fazer com que os ouvintes contemplem a profundidade do seu pecado, e a profundidade, muito maior, do amor do Salvador.

Friedrich Nietzsche (1844-1900) – quem diria? – em 1870 escreveu: “Durante esta semana ouví três vezes a “Paixão” do divino Bach e a cada vez com o mesmo sentimento de infinita admiração”.

A primeira vez em que ouvimos esta “Paixão” foi em 13 de setembro de 1957, por meio de gravação em disco LP (“Westminster”, WAL-401) realizada em 1953 no “Konzerthaus” de Viena (Áustria), com os maiores cantores solistas da época, acompanhados por coro e orquestra sinfônica, e regidos por Hermann Scherchen. Durante quase 30 anos foi nossa preferida fonte de música.

Depois de 1985 passamos a ouví-la com os discos LP (“Deutsche Grammophon”, 2711-012) gravados pela orquestra filarmônica de Berlim (Alemanha) regida por Herbert von Karajan. Uma gravação muito elogiada na década de 80 foi a de Karl Münchinger, com a orquestra de Stuttgart.

Em 1998 a evolução tecnológica da fonografia levou-nos à gravação em discos CD realizada pela “Philips”, com a orquestra real do “Concertgebouw”, de Amsterdã (Holanda), dirigida por Eugen Jochum, que, no dizer de Rogério Cerqueira Leite, “consegue conciliar expressividade e autenticidade”.

Esses discos vinham acompanhados por folheto contendo os textos, algumas vezes bilíngues (alemão e português), outras vezes multilíngües (alemão, português, inglês e francês), o que permitia ao discófilo acompanhar o canto, mesmo sem conhecer alguma dessas línguas. Nunca frequentamos curso de aprendizado da língua alemã, mas, de tanto ouvir as obras corais de Bach, em 2012, quando fomos à Alemanha, estávamos em condição de ler livros, folhetos, jornais e revistas na língua de Lutero. Você quer ler em alemão? Então, ouça Bach …

Pretendemos ouví-la, pela 48ª. vez, no próximo dia 03 de abril [de 2015], quando serão comemorados os 288 anos de sua existência, sempre tendo em vista “a maior glória de Deus e a melhor instrução dos homens” (Rolando de Nassau, Introdução à Música Sacra. Rio de Janeiro: edição do Autor, 1957).


Fonte: O Jornal Batista, 01/03/2015. Agradecemos ao autor por gentilmente nos enviar este texto


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