Especial Liturgia

Liturgia Ontem e Hoje

por: Carlos Molina

Em seu sentido eclesiástico, a palavra “liturgia” pode ser definida como “rito ou conjunto de rituais prescritos para a adoração pública”. O termo, de origem grega, é dividido em duas partes: leithos, que significa “público”, com relação a pessoas, e ourgía, termo relativo a “trabalho”, “técnica”, “arte”, “produto”, “matéria”. [1]

Contudo, hoje, a utilização da palavra “liturgia” na igreja é diferente do significado original de leitourgéo grega, que era um termo totalmente secular. Seu emprego era comum entre os antigos gregos para descrever a política de tributação fixa anual – imposto pago pelos cidadãos ricos para sua cidade-estado local. [2] Essa tributação também poderia ser tomada por virtude da inteligência. [3] A transferência de significado da palavra, do uso secular para o eclesiástico, ocorreu quando o termo leitourgia foi inserido na versão Septuaginta, onde é empregado para descrever o papel dos sacerdotes e levitas no culto (Números 18:2). [4] Desde então, o vocábulo adquiriu uso cultural e sacerdotal. No século 4, d.C., a referida palavra era amplamente usada na literatura cristã cultural e eclesiástica. [5]

Na igreja primitiva, leitourgéo aparece relacionada à separação de Paulo e Barnabé como missionários, em Antioquia, provavelmente na primeira igreja estabelecida fora de Jerusalém, aproximadamente em 38 d.C. [6] Na carta aos romanos, leitourgéo também aparece ligada ao ministério sacerdotal do Antigo Testamento. Portanto, Paulo usou o termo no sentido figurativo, ao descrever seu trabalho como “ministro de Cristo Jesus entre os gentios” (Romanos 15:16). [7] O mesmo sentido de ministério referente a leitourgéo é aplicado aos anjos envolvidos na salvação das pessoas (Hebreus 1:14). [8]

Falando eclesiasticamente, o termo liturgia não trabalha no vazio. Está em íntima interação com o culto, cuja terminologia é encontrada em diferentes palavras como asah, shahah, saghadh, abhadh, abundantes no Antigo Testamento (Gênesis 24:25; Isaías 44:15,17,19; Êxodo 4:31; 34:8; Daniel 2:46), e cujo significado implica “curvar-se”, “adorar”, “servir”. [9] Também envolve o significado de “prostrar-se em respeito a”. A Septuaginta traduz asah como latreuo, palavra encontrada vinte vezes no Novo Testamento e que também descreve o serviço de adoração a Deus no coração e na vida (Romanos 1:9; Filipenses 3:3). [10] Proskunéuo é outra palavra que expressa a ideia de “curvar, respeitar e reverenciar”, contendo um significado de relacionamento corporativo com Deus (João 12:20; Atos 8:27). Em Romanos 1:25, sebomai se refere ao mundo pagão, demonstrando reverência às criaturas em vez de ao Criador. No Apocalipse, o termo envolve o conceito de louvor e culto. [11] Esse culto é constante lembrete de adoração a Deus, o Criador e Salvador da humanidade (Apocalipse 5:14; 11:16; 19:4).

No cristianismo primitivo

Estudiosos têm reconhecido a influência da liturgia no estilo de culto, no início do cristianismo. [12] Foi através do templo e da sinagoga que a liturgia judaica deixou sua marca temporária no início das reuniões cristãs. A Mishnah enumera cinco ações litúrgicas no culto, cuja sequência não poderia acontecer a menos que houvesse um quórum de dez homens presentes à reunião. Eram estes os passos litúrgicos: Recitação da Shema (Deuteronômio 6:4,9-11); recitação, em pé, da Fillah – oração – depois chamada Amidah; bênção sacerdotal; leitura da Torah e dos profetas; Kaddish, ou bênção. [13]

A esse estilo de culto os cristãos adicionaram saudações, batismo, refeições comunitárias, santa comunhão, salmodia, sermão, oração e confissão. [14] Durante o Império Romano, os cultos cristãos tinham saudações e reposta, salmodia, sermão, oração intercessora e despedida dos catecúmenos. [15] Uma linha liturgia semelhante é também citada por Eusébio. [16]

Em nossos dias, alguns autores têm construído e selecionado um ou mais estilos “pós-modernos” para aplicar o conceito de culto nas igrejas. [17] Porém, qualquer estilo de culto tem que ser avaliado através de consistente investigação bíblica, especialmente quando os conceitos de entretenimento são introduzidos no culto. [18] Sem dúvida, essa é uma controvérsia espiritual em que os pastores são chamados a tomar parte. Eles executam importante função bíblica e educacional, especialmente quando a igreja precisa escolher uma liturgia de acordo com a abordagem bíblica de adoração.

Atribuição do pastor

A liturgia do culto deve ser planejada com cuidado e oração. Algumas congregações podem achar útil a criação de uma comissão para analisar suas realidades internas e externas sobre o assunto. Para todas essas realidades é preciso encontrar apoio bíblico para as decisões a ser tomadas. Isso é fundamental em qualquer situação, mas é obrigação quando a igreja confronta situações de divisão na adoração.

O verdadeiro significado da liturgia é levar o povo a adorar a Deus e a encontrá-Lo, dentro dos princípios bíblicos que devem dirigir a cultura, não o inverso. Afinal, “a adoração não é uma questão de gosto ou preferência cultural, mas um estado da mente e atitude do coração. Pastores e crentes precisam entender a clara distinção bíblica entre adoração e estilos litúrgicos”. [19] O pastor pode ser um valioso moderador, conselheiro e equalizador espiritual nesse esforço.

Ao ter início a programação, as palavras de Cristo devem ser o centro para o qual toda liturgia de culto deve ser direcionada. Esse é o principal motivo pelo qual crentes e descrentes vão à igreja. Entretanto, a Palavra também pode ser exposta através de várias e bem planejadas formas da liturgia. O importante no planejamento da liturgia é renunciar à exaltação própria e ao desejo de popularidade que prejudicam e destroem o objetivo da adoração. Um dos sinais do fim dos tempos, e que deve ser combatido, é a criação de cultos antropocêntricos, fundamentados no entretenimento e abordagem autocentralizada (II Timóteo 3:1-5).

Tome nota

Ao analisar e estruturar a ordem litúrgica de sua congregação, o pastor deve ter em mente o seguinte:

  • Liturgia deve servir como meio, não como fim em si mesmo.
  • Deve ser planejada de acordo com os princípios bíblicos.
  • O culto não é mero entretenimento. Foi projetado para influenciar o crescimento cristão na comunhão, no serviço, conhecimento bíblico e amor.
  • O adventismo não é um movimento congregacional, mas de representatividade mundial. Isso implica que alguns dos programas devem incluir a igreja mundial com suas culturas submetidas aos princípios bíblicos.
  • A liturgia não pode ser vista como oportunidade para extensas promoções e divulgações de programas. Em vez disso, deve ser centralizada em Cristo e buscar a aproximação dEle.
  • Muitos itens periféricos à liturgia roubarão o tempo que deve ser dedicado à exposição da Palavra de Deus.
  • O tempo deve ser bem distribuído entre louvor, oração, pregação, ensino e promoção do reino de Deus.
  • Algumas tradições culturais locais ferem os princípios bíblicos.
  • O culto não pode ser tratado como sistema de marketing, mas como oportunidade de encontro com Deus, obtenção de esperança e força através dos ensinamentos de Cristo.

Considerando que a igreja se aproxima do fim dos tempos, o círculo de atribuições do pastor, em muitas áreas, requererá cada vez mais tempo e desafios. Encontrar e usar equilíbrio cristão na liturgia é uma delicada responsabilidade pastoral a ser abraçada. Para o pastor, o objetivo principal deve ser o de manter a sensibilidade à presença de Deus nas igrejas. Isso é possível somente quando as igrejas têm os princípios bíblicos como centro do planejamento do culto e adoração. É assim que a Divindade é honrada e exaltada. Afinal, “adoração pode existir sem liturgia, mas liturgia não tem sentido sem adoração”. [20]


Referências:

  1. Webster, New Collegiate Dictionary, 1981, p. 667. (voltar)
  2. Gerhard Kittel, Theological Dictionary of the New Testament, 2006, p. 215-232. (voltar)
  3. Oseas O. P. Spicq, Theological Lexicon of the New Testament, 1994, p. 379. (voltar)
  4. Ibid. (voltar)
  5. Napthali Lewis, Greek, Roman and Byzantines Studies, 1960, v. 3, p. 175-184; v. 6 (1965), p. 226-230. (voltar)
  6. B. Williams, H. Anstall, Ortodox Worship (Mineápolis: Light and Life, 1990). (voltar)
  7. O. Lawrence Richards, Expository Dictionary of Bible Words, 1985, p. 639, 640. (voltar)
  8. Oseas Spicq, Op. Cit., p. 382. (voltar)
  9. O. Lawrence Richards, Op. Cit., p. 640. (voltar)
  10. Ibid. (voltar)
  11. Ibid. (voltar)
  12. E. George Laurence Saint, Journal of Early Christian Studies, nº 4, 1993, v. 1, p. 443, 444. (voltar)
  13. Megiloth, 4, 3. (voltar)
  14. Gergory Dix, The Shape of the Liturgy (Nova York: Salisbury, 1982), p. 20-22. (voltar)
  15. Ibid. (voltar)
  16. Eusébio, Ecclesiastic History, 18, 1. (voltar)
  17. Wagner Nick, Modern Liturgy Answer, 1996. (voltar)
  18. Keith Pecklers, Liturgy in Postmodern World (Londres: Blomsbury Academies, 1996) (voltar)
  19. Fernando Canale, Principles of Worship and Liturgy, Perspective Digest: Theological Adventist Society, v. 16. (voltar)
  20. Ibid. (voltar)

Carlos Molina é professor na Faculdade Adventista do IAENE, Cachoeira, BA


Fonte: Revista Ministério, julho/agosto 2013, pp. 10-11


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