Interpretação Musical

Música e Beleza

por: Orlando Fedeli

I – O Romantismo subjetivista(voltar)

Com a revolução francesa, triunfou em todo o mundo o liberalismo, sistema filosófico e político que nega a existência da verdade objetiva e que, por isso, produziu naturalmente dois frutos loucos – o subjetivismo e o relativismo – responsáveis, hoje, pela destruição de toda lógica e da sabedoria.

Na estética, o subjetivismo liberal e romântico leva à negação da existência da beleza objetiva. Tal como a verdade e o bem, a beleza também seria subjetiva. Belo seria o que cada um considera como tal. Conseqüentemente, não haveria critérios objetivos de beleza nem leis estéticas. Foi esse modo de pensar subjetivista e relativista que preparou a explosão anarquista da Arte Moderna, em nossos dias.

II – Proporção e beleza(voltar)

Não há quem não conheça o drama vivido por Cyrano de Bergerac, o herói imortalizado nos versos de Rostand. Cyrano era fisicamente feio: seu nariz era demasiado grande para seu rosto, isto é, era desproporcionado. Em qualquer época, em qualquer lugar que tivesse vivido, Cyrano seria conhecido por seu nariz… e por seu “panache”. Pelo nariz, ele seria materialmente feio, e pelo “panache” de sua alma, seria belo. Era a desproporção do nariz que tornava Cyrano feio. Logo, feio é o que é desproporcionado. Belo é o que tem proporção.

Ora, a proporção é uma igualdade de duas razões:

a / b = c / d ou 1 / 2 = 3 / 6

A proporção é um valor matemático, objetivo e universal. Ela não depende nem de nós, nem do tempo, nem do lugar. A relação 1/2 = 3/6 é verdadeira não porque alguém ache, mas porque ambas as divisões, 1/2 e 3/6, são iguais a 0,5.

Mas, se a beleza depende da proporção e esta é objetiva, então a beleza também o é. Algo é belo porque tem proporções e não porque alguém o considere como tal.

Portanto, a beleza material é objetiva porque depende das proporções e das medidas, isto é, dos números.

III – A arte grega e as proporções(voltar)

Os grandes descobridores das proporções como causa da beleza material foram os gregos. Na arte grega tudo era medido, tudo era proporcionado.

Na arquitetura, todas as medidas dos edifícios gregos eram múltiplas e submúltiplas do diâmetro médio da coluna. Na escultura, as estátuas eram feitas tendo por módulo a cabeça. Foram os helenos que primeiro descobriram as admiráveis proporções com que Deus criou o homem. Em todas as artes, os gregos tiveram essa preocupação com a medida, com as proporções e com os números.

IV – Números, beleza e música(voltar)

Os gregos não foram só grandes artistas, mas também grandes filósofos. Se a beleza material provém das medidas proporcionais, isto é, dos números, perguntavam-se eles: – Por que as proporções são belas?

O primeiro filósofo a tratar das relações entre a beleza e os números foi Pitágoras, e sua influência se estendeu, através de Platão e dos neo-platônicos, por longos séculos. Santo Agostinho e Boécio foram os transmissores dessa concepção numérica de beleza, nos primeiros tempos da Idade Média.

No livro “De Institutione Musica” (I, 10), Boécio narra uma antiga lenda sobre como Pitágoras teria descoberto a relação entre os números, a beleza e a música.

Diz ele que Pitágoras, passando um dia perto de uma forja, percebeu que os martelos, golpeando a bigorna, produziam sons harmoniosos. A princípio, julgou que a causa estava na força com que os ferreiros batiam os martelos. Para verificar se isto era certo, fez com que eles trocassem os martelos entre si. Percebeu, então, que os sons continuavam sendo harmoniosos. Portanto, a causa da beleza não estava na força dos ferreiros. Pesou, então, os vários martelos e verificou que eles tinham pesos tais, que era possível formar entre eles uma proporção. Os pesos dos martelos eram 12, 9, 8 e 6, e assim era possível montar a seguinte proporção:

6 / 8 = 9 / 12

E diz Boécio: “Os martelos que tinham pesos 12 e 6 ressoavam uma harmonia em “dobro”. O martelo (que pesava) 12 com o (que pesava) 9, assim como o martelo (de peso) 8 com o (de peso) 6 se uniam com uma harmonia “diatessaron”, segundo proporção epítrita; o 9, porém, com o 6, e o 12 com o 8 ressoavam o tom em proporção “sesquioitava” (Boécio, “De Institutione Musica”, Ed. Teub., 1857, p. 196, 197, 198).

Em outros termos, os martelos que pesavam 12 e 6, golpeando, produziam a oitava. Os que tinham peso 12 e 9, ou 8 e 6 produziam a quarta. Entre o de peso 9 e o de peso 8 havia um tom inteiro. Com efeito, em número de vibrações duplas por segundo, as proporções entre os diversos sons naturais são:

DO 9/8 RÉ 10/9 MI 16/15 FA 9/8 SOL 10/9 LA 9/8 SI 16/15

Por exemplo, supondo que o DO fosse produzido por 24 vibrações duplas por segundo, as demais notas teriam os seguintes números de vibrações:

DO=24; RÉ=27; MI=30; FÁ=32; SOL=36; LÁ=40; SI=45; DO=48

A oitava, isto é, de DO a DO, corresponde o dobro de vibrações por segundo. Chama-se quinta o intervalo equivalente a 3/2 (de DO a SOL, 3/2). Quarta é o nome do intervalo de DO a FÁ e corresponde a 4/3. Tom é o intervalo de DO a RÉ, por exemplo, e corresponde a 9/8.

Os sons agradáveis ao ouvido correspondem a números proporcionados, e esses números e proporções seriam a causa da beleza musical. Quanto mais a relação numérica é simples, mais harmonioso é o intervalo, mais facilmente o ouvido capta a harmonia, e mais rapidamente a razão a compreende.

As harmonias fundamentais, resultantes de relações que são as mais simples e mais facilmemte perceptíveis, são o dobro, o triplo, o quádruplo, a unidade mais a metade (1+1/2 = 3/2), isto é, o intervalo de quinta, a unidade mais o terço (1+1/3 = 4/3), isto é, a relação de quarta.

V – Relação entre números e formas(voltar)

As leis que regem a beleza musical são, portanto, de ordem matemática. É a proporção que causa a beleza sonora. Ora, como a vista está submetida a leis semelhantes às do ouvido, a beleza das formas visíveis também deve derivar dos números e das proporções.

É a proporção numérica que produz a beleza, quer traduzida em formas sonoras, quer expressa plasticamente. Por isso, assim como na música, as figuras mais belas são as mais simples e mais fáceis de serem compreendidas, isto é, aquelas cujas partes formam proporções facilmente perceptíveis de 1/1, 2/3, 3/4.

A proporção mais fácil e mais simples é a de 1/1 e corresponde ao quadrado. Tudo no quadrado lembra o um. Ora, o número 1 representa, simbolicamente, o princípio de identidade, a simplicidade, a constância, a indivisibilidade, a força, etc.

De outro lado, o número 2 simbolizaria o composto, a divisibilidade, a variedade, a multiplicidade. Boécio, no “Institutione Arithmética”, trata longamente das relações dos números e das formas. Ele mostra que a unidade se relaciona com os ímpares, e o número 2 com os pares. Mostra, ainda, que os quadrados são gerados pela soma do 1 com os números ímpares:

1 (1 x 1)
1 + 3 = 4 (2 x 2)
1 + 3 + 5 = 9 (3 x 3)
1 + 3 + 5 + 7 = 16 (4 x 4)
1 + 3 + 5 + 7 + 9 = 25 (5 x 5), etc.

Por sua vez, a soma do número 2 com os números pares produz os retângulos:

2 = (1 x 2)
2 + 4 = 6 (2 x 3)
2 + 4 + 6 = 12 (3 x 4)
2 + 4 + 6 + 8 = 20 (4 x 5), etc.

Ele observa ainda, entre muitas outras coisas, que na seqüência de quadrados e de retângulos pode-se encontrar proporções contínuas:

Quadrados: 1 – 4 – 9 – 16 – 25 – 36 – 49…
Retângulos: 2 – 6 – 12 – 20 – 30 – 42…
Assim: 1/2 = 2/4; 4/6 = 6/9; 9/12 = 12/16; e etc.

Portanto, todo retângulo é a média proporcional entre o quadrado que o antecede e o quadrado que o segue.

Além disso, todo número pode ser reduzido a quadrado e retângulos.

Boécio, como os pitagóricos, vai além de uma simples observação aritmética, e parte para uma simbologia e, mesmo, uma metafísica dos números – porta ambígua por onde podem se infiltrar o Panteísmo, a Gnose e a Cabala.

Eis o que ele diz: “Por outro lado, postos os ímpares em ordem a partir da unidade, e sob estes os pares, a partir da dualidade, a acumulação dos ímpares forma tetrágonos; a dos pares, por outro lado, transforma os superiores (os pares) em retângulos. Portanto, esta é a natureza dos tetrágonos gerados pelos ímpares: que são os partícipes da unidade, isto é, de uma mesma e imutável substância, e iguais a todas as suas partes, porque os ângulos são iguais aos ângulos, os lados iguais aos lados, e a largura ao comprimento; por isso, deve-se dizer que tais números são de uma mesma natureza e partícipes de uma substância imutável; aqueles porém, aos quais a paridade cria retângulos, diremos que são de outra substância” (Boécio, “De Inst. Arithmetica”, Ed. Teub., p.117-118).

E mais: “Todo número, portanto, consta daquelas coisas inteiramente desunidas e contrárias, que são os pares e os ímpares. Aqui, pois, a unidade, ali, a variação da instabilidade; aqui, o vigor imóvel, ali, a mudança do móvel; aqui, a solidez definida, ali, a geração infinita da multiplicidade…

Pelo que, não sem razão, foi dito que todas as coisas que constassem de contrários seriam unidas e compactas por uma certa harmonia. A harmonia dos múltiplos é, pois, o consenso e a união dos dissidentes” (Boécio, “De Inst. Arithmetica”, p.125-126).

Daí os filósofos medievais afirmarem que algo é belo na medida em que harmoniza a unidade e a variedade, a estabilidade e o movimento, o par e o ímpar, o grave e o agudo, o pesado e o leve, o quadrado e o retângulo, etc.

Ora, é exatamente isto que explica a beleza das proporções. Porque o que é, no fundo, uma proporção, senão a redução de quatro elementos diversos a um só quociente, isto é, a uma só unidade?

A proporção é a redução da variedade à unidade. Simbolicamente, ela nos mostra que toda a variedade das coisas criadas componentes do universo espelham, de alguma forma, a unidade do seu Criador. Essa variedade das criaturas pode ser reduzida a unidade – daí o total dos seres criados formarem o UNI verso – a fim de através dela compreendermos algo de Deus infinito.

Há vários tipos de proporção. Aquela que Pitágoras encontrou ao pesar os martelos dos ferreiros era composta de quatro números diferentes:

6:8 :: 9:12.

Se tivermos uma proporção entre três números apenas, em vez de quatro, essa proporção será mais simples, e, por isso será mais facilmente apreendida pela inteligência. Esta é a proporção chamada de contínua pelos matemáticos e de analogia, pelos gregos antigos. Por exemplo a proporção 1/2 = 2/4.

Nela, o termo médio é repetido, facilitando a apreensão da relação entre as duas razões.

Se houvesse uma proporção ainda mais simples, ela teria que ser mais agradável ainda, pois que a simplicidade das coisas as faz mais semelhantes a Deus. que é a simplicidade absoluta.

Ora, se tomarmos uma reta e a dividirmos em duas partes de tal forma que a reta inteira esteja relacionada com a parte maior, da mesma forma que esta esteja relacionada com a parte menor, teremos uma proporção de dois números apenas. O que será uma proporção mais simples, e portanto, mais bela.

_____________________________|____________
Maior menor
Reta Inteira = Parte Maior
Parte Maior = Parte menor

O resultado desta proporção dá o chamado número de ouro: 1, 618…

Este número é uma constante no universo. Ele pode ser encontrado em variadíssimas coisas. Assim, ele se encontra no corpo e no rosto humano.

A razão entre a altura de um rosto e a medida do queixo até a base do nariz é igual ao número de ouro ou próxima dele. E quanto mais próxima for desse número de ouro, mais o rosto será belo. A mesma medida se acha entre a medida do braço junto com a mão, para a medida do cotovelo ao punho; do queixo até a boca, para a distância da boca até a base do nariz,; de um dedo inteiro para a medida de duas falanges, etc.

Também, a altura de um anel de um caracol, dividida por sua largura dá exatamente o número de ouro. E se se fizer o cálculo do maior crescimento do caracol para o menor dispêndio de material (lei da economia) se achará que ele deve crescer na razão de 1,618.

Se medirmos a distância de dois anéis de uma trepadeira em torno de um tronco, e dividirmos essa medida pelo diâmetro do tronco, encontraremos a mesma medida.

O livro Le Nombre D’Or, de Matila C. Ghyka (Gallimard, Paris, 1959) é riquíssimo em comprovações desse número constante na natureza, comprovando o que diz o livro da Sabedoria quando afirma que “Deus tudo fez com medida, número e peso”(Sab. XI, 21).

Voltando às formas geométricas, entre os retângulos, os que têm uma proporção de dois para três, ou de três para quatro, são os chamados retângulos privilegiados, nos quais o lado maior supera o menor de uma unidade. Assim, na arquitetura medieval, as fachadas das catedrais góticas eram em forma de retângulos privilegiados (3 x 2).

Conforme Vitruvio, o cubo e o quadrado dariam a beleza perfeita. Nas cidades da Grécia, a praça principal era sempre quadrada. O fórum romano tinha a proporção 3/2, isto é, a da proporção musical da quinta.

Villard de Honnecourt traça o plano de uma igreja cisterciense ideal. Seu comprimento seria de 12 e a largura de 8; logo, na proporção de 3/2. O coro da igreja seria a projeção da quarta (4/3). Cada braço do cruzeiro teria a relação de oitava (4/2). O transepto seria quadrado (4/4). A nave teria a projeção da terça (5/4). O coro e nave juntas, tirando-se o transepto, seriam iguais à nave transversal. Nave, transepto e coro juntos estariam para a nave transversal na proporção de 9/8, isto é, de um tom musical inteiro.

Comprimento total =12 / 8 = 3/2

Intervalo de quinta (Dó aSol)

Largura total = 8

Coro = 4/3

Intervalo de quarta (Dó a Fá)

Braços do Cruzeiro: 4/2

Intervalo de oitava (Dó a Dó)

Transepto = 4/4

A unidade

Nave = 5/4

Cruzeiro total: 8/4

Intervalo de oitava (Dó a Dó)

Nave + Cruzeiro: (sem o transepto): 8/4

Intervalo de Oitava (Dó a Dó)

Nave + Transepto = 99/8

Intervalo de um tom (Dó a Ré)

Cruzeiro total = 8

VI – Tudo é belo, pois tudo é musical(voltar)

Por tudo o que se expôs, filósofos antigos e medievais consideravam que a beleza de um ser provinha das relações proporcionadas de suas partes. Nas medidas, nas proporções, e, portanto, nos números, é que estava a causa da beleza. Ora, Deus fez tudo com peso, número e medida, diz a escritura (Sab. XI, 21). Logo, no mundo, tudo é belo, tudo é harmonioso e musical.

Música, harmonia e beleza são resultantes do número, do peso e da medida, quer na música sonora, quer nas formas plásticas.

“Quando a razão percorre o céu e a terra, descobre que nada lhe agrada fora da beleza; e na beleza, as figuras; nas figuras as dimensões; nas dimensões os números” (cf. Santo Agostinho, “De Ordine”, II, XV, 42).

E o mesmo Santo Agostinho, no “De Musica”, pergunta: “Podemos amar outra coisa senão a beleza? Mas é a harmonia que agrada na beleza; ora, nós já vimos, a harmonia é o resultado da igualdade nas proporções. Esta proporção igual não se acha apenas nas belezas que são do domínio do ouvido ou que resultam do movimento dos corpos, mas ela existe ainda nessas formas visíveis, às quais damos mais comumente o nome de beleza” (S. Agostinho, “De Musica”, VI, 13, 38).

VII – Música, compreensão e prazer estético(voltar)

Em todo ser materialmente belo é preciso distinguir:
a) a matéria;
b) o número e as proporções, causadores da beleza.

Diante de algo belo, o homem não deve limitar-se a sentir, mas deve procurar compreender as razões da beleza. Porque Deus tudo revestiu de beleza e a fez compreensível, afim de que, por meio dela, o homem chegasse até o Criador, Beleza Infinita. Daí a tese do Pseudo Dionísio de que “o amor de Deus pelo homem envolve o inteligível no sensível” poder ser aplicada perfeitamente à beleza (cf. Pseudo Dionísio, “Os nomes Divinos”, I, 4).

Como se explicaria, então, que os homens sintam a beleza de modos e graus diversos?

Por que certas belezas nos causam mais prazer que outras, se todas têm harmonia e proporção, se todas têm música?

Para responder a estas questões é preciso considerar:

1o: O semelhante se agrada com o seu semelhante. O homem sente prazer estético quando encontra algo que tenha uma harmonia semelhante àquela que existe nele mesmo.

2o: O prazer estético será tanto maior quanto maior for a semelhança das harmonias do objeto belo e do homem que o contempla.

3o: O prazer estético será tanto maior quanto mais o sujeito for capaz de sentir a beleza, e tanto mais elevado quanto maior for sua compreensão dos números causadores da beleza, isto é, das razões pelas quais a coisa é bela.

4o: Quanto mais facilmente sentida, mais agradável será a harmonia.

5o: Quanto mais simples e mais facilmente compreendida, maior será o prazer que a harmonia causará no sujeito.

VIII – Tipos de música(voltar)

Para os filósofos antigos e medievais, a palavra música designava qualquer harmonia. Daí a estética poder ser qualificada de musical.

Boécio, no “De Institutione Musica” (I, 2), distingue três tipos de música:
1. música mundana ou cósmica – seria a resultante da harmonia dos elementos do universo;
2. música humana ou harmonia existente no homem;
3. música artificial, instrumental ou sonora, que seria a música propriamente dita.

Esta última é apenas uma expressão da beleza das proporções através dos sons. Por meio dela, o homem procura exprimir as harmonias que ele encontra no universo ou em si mesmo. Por isso, as leis que regem a música instrumental são as mesmas que regem os outros tipos de música.

“Música é a ciência da relação harmoniosa enquanto tal, feita a abstração da matéria dos elementos relacionados entre si” (cf. E. de Bruyne, “Estudios”, vol. I, p. 326). Esse mesmo autor apresenta um quadro geral sobre os vários sentidos em que os pensadores medievais empregavam a palavra música.

IX – Análise dos vários tipos de Música(voltar)

A) Música sobrenatural ou espiritual – “Música Coelestis”

O céu é uma eterna sinfonia de glória a Deus. São Tomás, na Suma Teológica (1, q. 108) trata das hierarquias angélicas, cada uma das quais possui três ordens ou coros de anjos, formando o total de nove coros angélicos. Ele mostra, ainda, que esta hierarquização dos anjos continua dentro de cada coro, embora não saibamos qual seja a função de cada anjo dentro de um mesmo coro.

No artigo 8 dessa mesma questão 108 da Prima, ele demonstra que os santos serão elevados, não pela natureza, mas pela graça e liberalidade de Deus, às ordens angélicas, podendo participar, conforme o seu mérito, da glória dos vários coros de anjos. Assim, a música celestial seria o produto da ordem sábia e proporcionada em que os anjos e santos se hierarquizam. Diziam os medievais que estas proporções, nas relações entre os anjos e os santos entre si, poderiam ser comparadas às relações de oitava, quinta, quarta e de tom inteiro. O amor de Deus seria o elemento unificador de tantas desigualdades proporcionadas. Esta “música” das proporções celestiais traduzir-se-ia, também, em música sonora, nos cânticos dos bem-aventurados.

Dante, no canto XXVII do Paraíso, poeticamente, assim descreve essa harmonia e essa música:

“Al Padre, al Figlio, al Spirito Santo
cominció “glória” tutto il paradiso,
si che m`inebriava il dolce canto.
Ció ch`io vedeva mi sembiava un riso
dell`universo; per che mia ebbreza
intrava per l`udire e per lo viso”.

[Ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo /prinicipiou “Glória”todo o Paraíso/ de tal modo que todo me inebriava o doce canto. / Aquilo que eu via me parecia um sorriso/ do universo; pelo que meu inebriamento me penetrava tanto pelo ouvir quanto pelo ver”]

B) Música mundana de Boécio – Música do Universo

A música mundana, diz Boécio, “deve ser principalmente percebida naquelas coisas que são vistas no próprio céu, ou na conexão dos elementos, ou na variedade dos tempos. O que poderá fazer com que a tão veloz máquina do céu se mova num curso tácito e silencioso? Ainda que aquele som não chegue aos nossos ouvidos, o que se deve a muitas causas, contudo, tão veloz movimento de corpos tão grandes não poderá deixar de produzir algum som” (Boécio, “De Inst. Musica”, I, 2, Ed. Teub. p. 187-188).

(Evidentemente, Boécio não conhecia a Física acústica, e usava a palavra “som” num sentido amplo, que só podemos aceitar de modo analógico, isto é, como proporção, e não em sentido próprio.)

Esta “canção” que resplandece nas estrelas provém da disposição ordenada e proporcionada das massas e do movimento dos astros. Ela é uma imagem da proporção existente entre os anjos e entre os santos no Paraíso, já que São Paulo, falando da desigualdade dos anjos e das autoridades eclesiásticas, compara-as às diferenças existentes entre os astros ao dizer: “stella differt stella”…

Mas não só nos astros há desigualdade proporcionada e ordem, isto é, “música”. Em todo o universo, há um ritmo das estações, uma ordem atômica, um ciclo vegetativo. E também o organismo dos animais revela equilíbrio, ordem e proporção. Assim, em toda natureza, se encontra a harmonia de elementos diversificados na unidade.

São Tomás mostra que sendo Deus sábio, deve fazer tudo ordenadamente, mas que a ordem exige diversificação de elementos constituintes. Logo, Deus devia fazer tudo com desigualdade para poder fazer tudo com uma ordem que refletisse sua Sabedoria infinita (S. Tomás, “Suma contra Gentiles”, II, cap.XLV).

Essa ordem, essa proporção de toda criação, essa harmonia que existe em todas as criaturas, constitui a “música” do universo. Os medievais diziam que, considerado no tempo, o Universo é como um poema esplêndido ou como uma sinfonia maravilhosa – “universum est tanquam pulcherrimun carmen”, nas palavras de São Boaventura (São Boaventura, “Sententiarum Liber”, I D. XLIV, A. I,Q. IV). Considerado espacialmente, o Universo seria como uma sublime e imensa pintura. Pintura, poema ou música, cada criatura e, mais ainda, o Universo como um todo cantam a glória de Deus.

C)”Música” humana

O homem é como um resumo da criação, um microcosmo em que se refletem todas as harmonias do universo.

No homem, podemos distinguir:

1- a “música” do corpo – proveniente da harmonia, das proporções dos seus membros e do equilíbrio de suas funções orgânicas.

2- a “música” da alma – que é a harmonia que vem da proporção das suas potências.

Há uma perfeita adaptação entre o corpo e a alma, e a “música” humana seria a resultante da harmonia entre a “música” do corpo e a “música” da alma.

O corpo e, especialmente, o rosto refletem a alma e são proporcionados a ela. Como o único corpo animal que tem alma racional é o do homem, o corpo humano tem que ser mais belo que o dos animais. Daí a nobreza do porte ereto do homem e sua beleza física, causada pela união do corpo com a alma.

Pode-se falar ainda de música moral e de música social.

A “música” moral é proveniente da proporção e da harmonia de todas as virtudes unificadas pela Sabedoria. A alma de um santo é comparável a uma sinfonia, tal a ordem que ele põe em todos os seus atos. Isto explica porque os medievais consideravam a virtude uma harmonia, e o sábio um “músico”.

A “música” social é o fruto da justa proporção das diversas classes e grupos sociais entre si. São Tomás, na 1§ q. 106 a 3 ad 1, diz que “a hierarquia eclesiástica imita, até certo ponto, a celeste”. Leão XIII, na encíclica “Quod Apostolici Muneris” desenvolve esse mesmo pensamento ao dizer que “assim como no céu quis (Deus) que os coros de Anjos fossem distintos e subordinados uns aos outros, na Igreja constituiu graus nas ordens e diversidade de ministérios, de tal forma que nem todos fossem apóstolos, nem todos doutores, nem todos pastores (I, Cor. XII, 27). Assim, estabeleceu que haveria na sociedade civil, várias ordens diferentes em dignidade, em direitos e em poder, afim de que a sociedade fosse, como a Igreja, um só corpo, compreendendo um grande número de membros, uns mais nobres que outros, mas todos reciprocamente necessários e preocupados com o bem comum”.

Por isso, uma sociedade bem organizada deve ter por modelo a Igreja, que por sua vez tem por paradigma a ordem angélica. De uma sociedade bem proporcionada e harmônica poder-se-ia dizer que é musical. E Leão XIII, na encíclica “Imortale Dei”, diz que exemplo desse tipo de sociedade foi a cristandade medieval, feudalmente harmoniosa, cruzada e vibrante como o soar das trombetas, doce e sacral como a melodia de um órgão nas ogivas góticas. Esta “música social” exige desigualdade proporcionada e ela contraria do modo mais absoluto o ideal marxista de uma sociedade igualitária e monótona. Ela contraria, por sua harmonia, a doutrina socialista da dialética e da luta de classes.

Finalmente, se a música é a ciência da proporção, qualquer que ela seja, o verdadeiro músico é o sábio que reúne, em si, a música humana moral e a própria ciência da música. Daí perguntar Platão se existe mais alta música do que a filosofia (cf. Platão, “Fedon”, 61).

X – Desigualdade, ordem e beleza(voltar)

Há, deste modo, toda uma pirâmide de “músicas”, umas “encaixadas” nas outras, a inferior sempre tendo por causa e modelo a superior. É a música celeste que produz e modela a música universal, na qual está encaixada a música humana. A música celeste é modelo da música social. A música artificial exprime, em sons, a harmonia do universo e a harmonia da alma humana, imagens da harmonia celeste e da beleza de Deus. É esta beleza divina que o homem deve buscar através das harmonias do mundo. Amar a beleza e a harmonia da criação é meio para amar a beleza de Deus e a harmonia de Sua sabedoria. Isto é, de fato, o fim do homem. Por isso, Santo Agostinho lembra, no seu “De Musica”, o que diz o Eclesiastes (VII, 26): “Eu percorri o universo para aprender, para considerar, para procurar a sabedoria, a harmonia” (VI, 4, 7).

E nos livros da Sabedoria pode-se ler que “foi o autor da formosura que criou todas as coisas”, e “pela grandeza e formosura da criatura se pode visivelmente chegar ao conhecimento do seu criador” (Sab., XIII, 3 e 5). Portanto, amar a “música” é amar a Deus.

XI – A beleza é irmã gêmea da virtude(voltar)

Tratando a respeito da música, no diálogo sobre a República, Platão assevera que a graça e a harmonia são irmãs gêmeas da bondade e da virtude, e sua fiel imagem, e que há uma ligação íntima entre a falta de graça, de ritmo, de harmonia e a maldade em palavras e modos de ser (cf. Platão, “República”, livro III).

Mais ainda, ele admite que a harmonia musical e a “música da alma”, isto é, a virtude, se atraem, se amam e se inflenciam reciprocamente. Se o semelhante agrada ao semelhante, é evidente que a alma entregue aos vícios sentirá atração pelo que é feio.

Boécio repetirá essa lição no “De Institutione Musica”, ao mostrar que se a harmonia causa prazer ao homem é porque nele há uma harmonia semelhante, ambas entram em acorde. O prazer estético seria o efeito do encontro amoroso entre duas harmonias irmãs: a que existe no sujeito e a do objeto.

Além disso, Boécio, seguindo Platão, mostra que há sempre uma interação entre a música e a alma; ou, utilizando termos medievais, a música humana e a música exterior, qualquer que seja ela, se influenciam mutuamente. É natural que uma pessoa alegre componha cânticos jucundos e se rejubile ainda mais quando ouça canções alegres. Por sua vez, uma alma impura, se deleita com melodias lascivas, que aumentam ainda mais sua lascívia.

Tais princípios valem, segundo Boécio e Platão, quer para os indivíduos quer para os povos. Uma nação belicosa ama e produz marchas militares heróicas que excitam e aumentam sua tendência à bravura. Um povo decadente entregar-se-á a músicas e canções lânguidas, que aumentarão sua moleza.

Tendo em vista isso, Platão pergunta qual deve ser o papel da música na educação, e qual o papel do Estado em face à preservação dos bons costumes do povo.

Para ele, a educação musical era a mais poderosa, porque permitia introduzir na alma da criança, desde a mais tenra infância, a graça e o amor à beleza e à virtude. A pessoa assim educada seria a que mais facilmente perceberia a beleza e a harmonia. E como não há amor sem ódio, tal pessoa seria também a que mais odiaria o feio e o mal, a que seria mais suscetível a qualquer coisa que ferisse a harmonia, a que mais fortemente reagiria contra as deformidades. E pergunta Platão: “não saberá (tal pessoa) louvar o que há de bom, recebê-lo com deleite e, acolhendo-o em sua alma, nutrir-se dele e fazer-se um homem de bem, ao mesmo tempo que, detesta e repele o feio desde criança, mesmo antes de poder raciocinar? E assim, quando chegar a razão, a pessoa educada dessa forma a reconhecerá e acolherá com maior alegria, como uma velha amiga (Platão, “República, livro III).

Educados musicalmente “os jovens crescerão numa terra salubre, sem perder um só dos eflúvios de beleza que cheguem aos seus olhos e ouvidos, procedentes de todas as partes, como se uma aura vivificadora os trouxesse de regiões mais puras, induzindo nossos cidadãos desde a infância a imitar a ideia do belo, a amá-la e a sintonizar com ela” (Platão, idem, ibidem).

Conseqüentemente, o filósofo grego afirmava que não se deveria permitir que os artistas exibissem “as formas do vício, da intemperança, da vileza ou da indecência na escultura, na edificação e nas outras artes criadoras…”

Diz ele: “não admitiremos que nossos guardiães cresçam rodeados de imagens de depravação moral, alimentando-se, por assim dizer, de uma erva má que houvesse nascido aqui e ali, em pequenas quantidades, mas dia após dia, de modo a introduzirem, sem se aperceber disso, uma enorme fonte de corrupção em suas almas” (Platão, “República”, livro III).

Evidentemente, esta afirmação de Platão merece reparos, por que pode dar origem a um Estado totalitário

Se ela for entendida – como Platão parece querer dizer – que cabe ao estado controlar a arte, dela nascerá, certamente,. um governo de caráter totalitário. É à Igreja que compete dar a última palavra sobre a moral na arte. Não pretendendo ela assumir as funções próprias do Estado, este controle da arte pela Igreja, evita os abusos de um estado super controlador.

XII – Revolução e Contra-Revolução na Música e na História(voltar)

Boécio, sempre seguindo o pensamento de Platão, mostra que a música é a arte que maior influência pode ter numa pessoa ou num povo, pois que “para a alma nenhum caminho é mais acessível às disciplinas do que o dos ouvidos. Como, portanto, por eles os ritmos e modos descem até a alma, não se pode duvidar que do mesmo modo que eles são, afetam e conformam as mentes. Isto também pode ser entendido para os povos…”

“E aqui deve ser muito retido que, como que por pequeníssimas mudanças algo acaba sendo mudado, não se percebendo nada, de momento, mas dando-se depois uma grande mudança, e isto chegando até a alma pelos ouvidos. De onde Platão julga que é uma grande guarda para a república uma música bem constituída e modestamente equilibrada, de tal maneira que seja modesta, simples e varonil, e não efeminada, feroz ou complicada” (Boécio, “De Inst. Musica”, I, 1, Ed. Teub., p. 180-181).

Platão demonstra que é fácil deformar a alma de um povo e destruir um Estado por meio da música, “pois é aí que a ilegalidade se insinua mais facilmente, sem ser percebida… sob forma de recreação, … primeira vista inofensiva”.

Nem a princípio causa dano algum. Mas esse espírito de licença, depois de encontrar um abrigo, vai-se introduzindo imperceptivelmente nos usos e costumes; e dali passa, já fortalecido, para os contratos entre os cidadãos, e após os contratos, invade as leis e constituições, com a maior imprudência, até que, ó Sócrates, transforma toda a vida privada e pública” (Platão, “República”,livro III).

Daí a tese de Platão de que “toda inovação musical é prenhe de perigos para a cidade inteira” e que não se pode alterar os modos musicais sem alterar ao mesmo tempo as leis fundamentais do Estado” (Platão, “República”, livro III).

A música, pois, atuando lenta e imperceptivelmente nas tendências mais profundas das almas pode provocar verdadeiras revoluções. Essa tese é facilmente comprovada na História.

As três grandes Revoluções – Renascimento e Reforma, Revolução Francesa e Revolução Comunista – bem como a revolução hippie, foram precedidas por grandes transformações artísticas, que influíram poderosamente nas tendências, e prepararam as próprias explosões revolucionárias.

BIBLIOGRAFIA(voltar)

BOÉCIO – De Institutione Musica, Edição Teubneriana. – De Institutione Arithmetica, Ed. Teubneriana.

PLATÃO – Diálogos – A República, Edições de Ouro, Tradução de Leonel Vallandro. – Fédon, Ed. de Ouro, tradução de Jorge Paleikate e João Cruz Costa.

E. DE BRUYNE – Estudios de Estética Medieval, Ed. Gredos, Madrid, 1958, 3 volumes. – História de la Estética, B.A.C, Madrid, 1963, 2 volumes. – Esthétique du Moyen áge, Louvain, Editions de l`Institut Superieur de Philosophie, 1947.

SANTO AGOSTINHO, De Musica, De Ordine

SANTO TOMÁS DE AQUINO – Suma Teológica, B.A.C. La Editorial Católica, Madrid.

DANTE ALIGHIERI, La Divina Comedia, Col. Comento Scartezziniano, Ed. Hoeplli, Milano, 1965

BIBLIA SAGRADA, Tradução da Vulgata, Pe. Matos Soares, Ed. Paulinas, São Paulo, 1953.

HENRI MARTIN, L`Art Grec et l`Art Romain, la Grammaire des Styles, Flammarion, Paris, 1927.

JEAN CHARBONNEAUX et PIERRE DEVAMBEZ, La Grèce, in Histoire Génerale de l`Art, Flammarion, 1950

MATILA C. GYKA — Le Nombre D’Or, Gallimard, Paris, 1959.

UMBERTO ECO — Arte e Bellezza nell ‘Estetica Medievale – Bompiani, Milano, 1987.


Fonte: https://www.montfort.org.br

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