A Audição

Perdas Auditivas

por: Levi de Paula Tavares

Antes de analisarmos os problemas causadores das perdas auditivas, vamos apresentar o interior de uma cóclea saudável.

Vemos aqui uma ampliação ao microscópio eletrônico do interior de uma cóclea saudável, oferecendo uma visão superior da Placa Cuticular, onde podemos ver os cílios das Células Ciliadas Interiores (CCI) (i), os pilares de Corti (p), três filas dos cílios das Células Ciliadas Exteriores (CCE) (e), e as células de Deiters (d).

Para maiores detalhes da anatomia e do mecanismo envolvidos na audição, veja a Constituição do Sistema Auditivo Humano

Perda de Células Ciliadas Exteriores: Surdez Incompleta e Auxílios à Audição

Quando a lesão afeta somente as células ciliadas exteriores (CCE), como demonstram estas figuras, onde as células ciliadas interiores (CCI) estão intactas, a surdez é caracterizada por uma perda de 50 a 60 db, e uma dramática diminuição na discriminação de freqüências. Veja abaixo um gráfico correspondente a um audiograma da fala.

Este teste é baseado na capacidade do paciente em repetir corretamente palavras apresentadas a ele em diferentes intensidades (sem permitir a leitura labial). Um paciente com a audição normal (curva azul) é capaz de repetir corretamente 100% das palavras ouvidas a 20 db. Um paciente cujas CCEs tenham sido danificadas (curva vermelha) necessita de uma amplificação de 50 db para começar a compreender uma lista de palavras, e nunca chega a 100% de respostas corretas, qualquer que seja a intensidade sonora, pois ele é incapaz de discriminar os sons com a clareza necessária (ou seja, a sua discriminação da fala é alterada).

Note-se que um aparelho de auxílio à audição poderá trazer de volta a perda de 50 db através da amplificação, mas não alcançará 100% de discriminação.

Perda das Células Ciliadas Interiores e Exteriores: Surdez Completa

Quando tanto as CCE quanto as CCI foram perdidas, não é mais possível distinguir o órgão de Corti e a surdez é total. Contudo, conforme demonstrado na figura (asterisco branco), freqüentemente as terminações nervosas permanecem. É desta forma que os implantes cocleares podem funcionar.

Notemos que nestas situações um aparelho de auxílio à audição não terá efeito. Somente um estímulo elétrico direto nestas terminações nervosas (ou seja, um implante coclear) poderá ser de algum auxílio.

Vemos na figura acima outro exemplo de degeneração do órgão de Corti. Mas neste caso, devido ao pequeno número de fibras nervosas remanescentes (asterisco vermelho) um implante coclear não funcionaria muito bem.

Os três principais fatores não genéticos para perda de células ciliadas e, portanto, a surdez adquirida, são:

  1. Drogas ototóxicas:
  2. Entre as drogas reconhecidamente ototóxicas, por induzirem à perda de células ciliadas, estão os antibióticos aminoglicosídeos e agentes antineoplásicos (drogas quimioterápicas), como a cisplatina.

  3. Trauma acústico:
  4. O trauma acústico afeta tanto as células ciliadas quanto os neurônios.

  5. Envelhecimento (presbicusia):
  6. No envelhecimento, a perda auditiva ou presbicusia também é caracterizada por uma perda tanto das células ciliadas quanto de neurônios.

1 – Drogas Ototóxicas

Os antibióticos da família dos aminoglicosídeos são conhecidos há anos por causarem danos severos ao órgão de Corti, especialmente às células ciliadas, de uma forma proporcional à dosagem. Primeiramente as CCE da primeira fila do giro basal da cóclea são afetadas; depois, progressivamente, as outras filas de CCE e então as CCI; o dano progride até o ápex da cóclea.

As figuras seguintes, tomadas por microscopia eletrônica da superfície do órgão de Corti resumem um envenenamento por antibiótico aminoglicosídeo da cóclea de um rato.

A perda de células ciliadas começa com a primeira fila de CCEs do giro basal. Em humanos, uma cóclea nestas condições demonstraria uma perda auditiva média, com problemas de discriminação.

Com uma dosagem maior, o aminoglicosídeo mata quase todas as CCEs, destruindo assim a sua função. Em humanos um órgão de Corti nestas condições demonstraria uma alteração de limite auditivo de cerca de 60 db, sem sensibilidade fina. Um aparelho de auxílio auditivo restauraria facilmente o ganho (intensidade), mas não a seletividade de freqüências (discriminação)

Em doses ainda mais altas, todas as células ciliadas são perdidas (a seta vermelha aponta dois estereocílios gigantes (deformados) em uma CCI danificada). Este órgão de Corti não responde mais, qualquer que seja o estímulo sonoro.

2. Trauma Auditivo

A exposição a ruídos de alta intensidade (acima de 90 dB SPL) causa a perda auditiva induzida por ruído, ou trauma auditivo (TA), através de danos causados ao órgão de Corti. Os danos e o TA dependem tanto do nível do ruído quanto da duração da exposição. A perda auditiva (ou seja, alteração no limite auditivo) pode ser temporária, se o mecanismo de reparo for capaz de restaurar o órgão de Corti. Porém, ela se torna permanente quando as células ciliadas ou os neurônios morrem.

 

A mesma exposição a ruído (6 kHz, 130 dB SPL, 15 min) causa, de forma aguda:

  • Um dano às sinapses (figura à esquerda) com todos os dendritos sendo desconectados da CCI por causa de dano excitotóxico;
  • Um dano à primeira fila de CCE (figura à direita).

Embora o dano sináptico possa ser recuperado, a CCE danificada, entrando em apoptose, está destinada a morrer.

Cuidado!

Na vida diária a exposição a um ruído de 130 dB por 15 minutos é extremamente incomum: uma pessoa precisaria ficar perto dos motores de um avião a jato sem proteção auditiva. Porém, o mesmo dano coclear pode ser obtido com uma exposição mais longa a níveis mais baixos de ruído: por exemplo, algumas horas de exposição a níveis de 100 dB, e isto pode ocorrer em uma discoteca ou pela audição a aparelhos de som com fones de ouvido.

Dano Sináptico

O ruído induz uma liberação excessiva de glutamato, o qual abre os canais para que os íons de cálcio possam fluir para dentro do neurônio. Para saber mais sobre a excitotoxicidade do glutamato, visite o endereço http://www.tudosobreela.com.br/oqueeela/sistemanervoso_04.shtml

O dano excitotóxico resultante ocorre em duas fases (clique sobre cada uma para ver uma animação gráfica):

Os danos da excitotoxicidade às terminações do nervo auditivo podem ser observados nas imagens tomadas por microscopia eletrônica, mostradas abaixo:

 

Imediatamente após a saturação da perilinfa com glutamato, todos os dentritos abaixo da CCI sofrem um edema, suas membranas se rompem e seu conteúdo citoplasmático se perde (foto à esquerda). Em uma maior ampliação (foto à direita) vemos um remanescente da membrana pós-sináptica (seta vermelha) que está diante do corpo pré-sináptico. A CCI está desconectada do nervo auditivo e perdem-se os potenciais cocleares.

Os desenhos abaixo demonstram a restauração sináptica após um trauma agudo:

  1. O complexo sináptico normal abaixo de uma CCI: o corpo pré-sináptico na CCI está junto dendrito aferente (azul), o qual é conectado por uma terminação vesiculada lateral eferente (roxo). A ação coclear potencial é normal.
  2. Exitotoxicidade aguda: a terminação do dendrito aferente sofre uma ruptura e apenas os remanescentes de sua membrana podem ser vistos; um pedaço da membrana pós-sináptica ainda está ligada à pré-sinapse. A ação coclear potencial é nula.
  3. Um dia depois do trauma: o dendrito aferente começou a crescer e alguns filopódios já alcançam a CCI. Neste meio tempo, o eferente órfão está conectado diretamente a CCI. A ação coclear potencial começa a se recuperar.
  4. Cinco dias depois do trauma: O padrão sináptico normal pode ser visto novamente, resultando em completa recuperação funcional, demonstrado pela normalização da ação coclear potencial.

No homem, este mecanismo é provavelmente a base para a recuperação após a surdez súbita causada por isquemia ou trauma acústico (veja desenho animado). Nos estágios 2 e 3 a terminação nervosa passa por alterações dramáticas, algumas delas porque a superexpressão de receptores NMDA do glutamato podem desencadear disparos espontâneos anormais, o que, provavelmente, é a origem do tinitus.

Após repetidos traumas exitotóxicos, o mecanismo de restauração será interrompido pela morte do próprio neurônio.(veja desenho animado).

Dano às Células Ciliadas

 

Dependendo do nível de exposição, o dano às células ciliadas pode:

  1. Envolver os estereocíclios, e algum mecanismo de recuperação pode ser possível, ou
  2. Envolver toda a célula ciliada, a qual entra em apoptose e morre.

No primeiro caso, existe um dano médio, restrito aos estereocíclios, o qual pode variar desde desordem, ligações entre as pontas dos cílios quebradas até estereocílios fundidos ou gigantes; nestes casos a transdução eletromecânica é alterada ou interrompida, mas pode ocorrer uma lenta recuperação.

No segundo caso, ocorre um dano sério e definitivo, quando a própria célula ciliada se altera e desaparece. Não é possível a recuperação neste caso.

Ruídos com Picos de Alta Intensidade

Metralhadoras, máquinas operatrizes e fogos de artifício podem produzir pulsos de ruído acima de 130 ou 140 dB SPL. Nestes níveis, além dos danos aos neurônios e às células ciliadas, um buraco real pode ser observado na membrana reticular, permitindo que a endolinfa e a perilinfa se misturem, e levando à surdez total.

Surdez do Envelhecimento (Presbicusia)

Entre todos os sistemas sensoriais, a audição é certamente o mais comumente afetado com a idade avançada. isto pode ser explicado pela falta de capacidade de regeneração das células sensoriais da cóclea. Com a o passar dos anos, as células ciliadas e os neurônios desaparecem, levando a uma perda progressiva de audição, a começar pelas freqüências mais altas.

Para identificar a perda auditiva, os médicos produzem audiogramas que apresentam as freqüências de tons puros, em diferentes inensidades. Estes audiogramas são produzidos através de testes de audiometria, utilizando fones de ouvido.

Níveis “normais” para cada  freqüência testada são representados pela linha de 0dB no topo da figura. Audiogramas típicos, para pacientes de “audição normal” são mostrados em diferentes estágios da vida (aos 20, aos 40, aos 60 e aos 90 anos). Os limites, especialmente para as freqüências altas e médias sempre são quase sempre mais elevados com a idade mais avançada.

Os gráficos apresentados representam indivíduos de “controle”, ou seja, sem histórico de exposição significativa a drogas ototóxicas ou a níveis elevados de ruído. A geração mais jovem, cada vez mais exposta a níveis elevados de ruído com finalidades de entretenimento, pode perfeitamente alcançar o nível laranja aos 30 anos, e o nível vermelho aos 50!

Patologias Genéticas

Além dos três fatores não genéticos analisados acima, existem ainda muitas alterações genéticas que podem causar a surdez genética (a qual é responsável por quase 75% da surdez congênita ou durante os primeiros anos de vida).

Este assunto está sendo atualmente objeto de intensas pesquisas. Cerca de 60 genes responsáveis por surdez já foram localizados até agora, e um deles, que é responsável pela codificação de uma molécula de adesão (Conexina 26), parece estar envolvido em 50% dos casos de surdez genética.

Note-se que um fator genético também está freqüentemente envolvido na surdez adquirida, sendo o responsável pelas grandes diferenças inter-individuais na susceptibilidade à ototoxicidade, trauma acústico e presbicusia por envelhecimento.


Fonte: Adaptado de Projeto Promenade Autour de la Cochlée

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