por: Rolando de Nassau
Atendendo aos imperativos do mercado e da sociedade, atualmente a música-de-igreja, em certas congregações, é um prolongamento da música profana transmitida por certas emissoras de rádio. Nessas congregações, o canto é pretexto para imitação do comportamento observado nos palcos e platéias dos auditórios das redes de televisão. Nelas, o culto transforma-se em “show”.
Tendo conhecimento dessa tendência em certas igrejas, certos produtores fonográficos e de filmes de vídeo consideram muito necessário o cancelamento da reflexão (por parte dos que pretendem prestar adoração a Deus), por ocasião da aquisição do louvor oferecido como mercadoria nos supermercados e nas lojas especializadas.
A mercantilização da música religiosa significa a capitulação do espírito diante da mercadoria. Alguns cantores e instrumentistas evangélicos começam suas carreiras em “shows” promovidos por igrejas, e são tentados a lançar um CD contendo música-de-entretenimento, mas sem propósito comercial. Mas logo capitulam diante do lucro rápido e fácil. Outros, são logo atraídos para programas na televisão, apresentados por celebridades do “show business”.
Os produtores fonográficos, em certos casos, são negociantes (eles preferem ser chamados de “homens-de-negócios”, ou de “empresários”), que transformam os seus produtos numa necessidade; o canto religioso dos crentes precisa utilizar-se desses produtos, às vezes vendidos à porta do templo, ao término do culto. A indústria fonográfica tolera o consumidor evangélico, na medida em que este aceite, passiva e incondicionalmente, os seus produtos. A indústria, por causa da padronização e produção em massa (exacerbadas pela globalização cultural), ao produzir um disco evangélico, não está preocupada com os anseios espirituais do consumidor. Este tem a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa: música profana com letra religiosa.
Os produtores fonográficos mundanos servem-se da música profana, que será difundida, como se fosse religiosa, nos templos e nos lares. Para facilitar a penetração nesses ambientes, a mensagem evangélica é apresentada num estilo romântico. Evidentemente, o que entra de novidade nos ouvidos dos crentes é a nova melodia da música profana (daí a variedade de estilos, ritmos e instrumentos musicais), não a mensagem evangélica contida nas letras dos cânticos.
Os idealistas e os ingênuos sempre facilitaram o avanço dos bárbaros. Reduzir a comunidade evangélica a um mercado exige um processo intenso e sofisticado; é preciso secularizar esta comunidade, pelo refinamento dos meios de comunicação e de publicidade, de modo que ela confunda o que é sacro com o que é profano; assim, ela dará maior importância ao fato de ter produtos evangélicos (facilmente encontrados nas lojas e supermercados), sem a preocupação de ser evangélica.
Nesse processo, involuntária e inconscientemente, participa a imprensa evangélica (ela precisa de anunciantes daqueles produtos): censura, restringe ou impede que os puristas da música-de-igreja denunciem o mercantilismo de certos artistas evangélicos (e de certos pastores que os apóiam), ao mesmo tempo em que confunde os seus leitores quanto ao que seja a MÚSICA SACRA. Essa parte da imprensa evangélica reforça a ausência de pensamento crítico na maioria dos consumidores de música.
Quando os evangélicos chegarem ao ponto de erigir o pragmatismo em virtude, não necessitarão mais pensar na pureza da música-de-igreja. Quem quiser olhar a vitrine do mercantilismo musical evangélico, basta folhear as páginas de certas revistas.
Devemos temer, não tanto a música profana, praticada no ambiente secular, mas a sua influência sobre a música-de-igreja e penetração na vida privada do crente. Devemos defender a pureza e ortodoxia da música-de-igreja (não confundida com música-de-entretenimento), evitando que se transforme em sal insípido.
O individualismo, numa civilização globalizada, abre caminho para o mercantilismo. O crente individualista ouve e compra a música que lhe agrada; não se importa se é profana. O mercantilismo, por isso, procura satisfazer o desejo-de-ter de cada indivíduo. Há músicos que querem desesperadamente atrair a atenção do povo evangélico, pouco interessados na verdadeira finalidade da música religiosa. Essa ambição é condicionada pelas leis do mercado (por isso, os que conseguem sucesso são os que se cercam de especialistas em “marketing” e “merchandising”), no tocante à composição, edição, interpretação e divulgação de música destinada aos evangélicos, enquanto eles ainda têm alguma identidade. Não tardará o dia em que esse “promissor mercado” será invadido pelos artistas mundanos!
É óbvio que a enorme produção musical evangélica pode ser conseqüência de um ativismo religioso, sem estar relacionado a um despertamento espiritual, toda vez que atende meramente a interesses mercantilistas e técnicas mercadológicas. O ativismo, por sua vez, é determinado pela crescente competitividade entre denominações, igrejas e indivíduos no campo musical. Esse ativismo chega ao ponto de acionar um “marketing” eclesiástico, que procura atrair pessoas com a realização ou promoção de eventos musicais; para tanto, inventa novas formas de louvor e fabrica novos modelos de adoração a Deus, sem limites à ousadia da imaginação. É conveniente inovar, para competir; é necessário competir, para atrair novos consumidores (“adoradores”) de música evangélica.
Nesses possíveis consumidores estão interessados não apenas os produtores, editores e intérpretes evangélicos, mas também os da indústria cultural, que, aliás, promove com mais eficiência e eficácia a música profana. Como se fosse um dragão estético, a indústria cultural abre espaço no “show business” (os negócios ligados ao entretenimento) aos artistas evangélicos, com o pérfido intuito de engoli-los.
É muito provável que os atuais sucessos da música dita evangélica tenham sido forjados por produtores e editores ímpios, em busca do lucro certo, fácil e rápido, obtido de um público dócil. O “marketing” decidirá como Deus será louvado nos lares e nas igrejas. A música “evangélica” está nas prateleiras das lojas, não para servir às igrejas, mas aos produtores e consumidores. A situação se agrava quando a produção musical evangélica é trazida para dentro das igrejas e realiza uma tarefa deletéria: fazer-se passar por sacra, quando, por sua origem e natureza, é substancialmente profana.
O consumismo, até mesmo dos crentes, é estimulado em direção à novidade e ousadia do produto musical, e não à transcendentalidade do seu conteúdo. O consumidor evangélico é manipulado por ímpios.
Certos músicos evangélicos, além de visarem exclusivamente o “vil metal”, na perseguição do sucesso e da popularidade no meio artístico, têm assumido valores e comportamentos que prejudicam sua fé e obnubilam seu testemunho; esquecem sua responsabilidade cristã.
Em 1988, uma revista promoveu um debate sobre música nas igrejas evangélicas do Brasil, com a participação de oito músicos, para discutir prioridades, mas alguns debatedores, mais interessados nos aspectos mercadológicos, preferiram discutir a questão da pesquisa de mercado, para dar ênfase à produção de discos evangélicos (ver: O JORNAL BATISTA, 12 de fevereiro 1989, p.2). Prevaleceu essa prioridade; coincidentemente, nos últimos 15 anos, aconteceu a enxurrada de discos evangélicos com propósitos mercantilistas!
O presente artigo foi publicado em duas edições de “O Jornal Batista“, em 05 de dezembro de 2004 e 06 de fevereiro de 2005. Os editores do Música Sacra e Adoração agradecem ao autor pela contribuição.
Rolando de Nassau é organizador do “Dicionário de Música Evangélica” e tem sido, por vários anos, colunista de O Jornal Batista, atuando como um perspicaz comentarista dos rumos que a música evangélica tem tomado. Informações mais detalhadas sobre o autor poderão ser encontradas em http://www.nassau.mus.br/