por: Gilson Santos
“Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo”
Parte II – O Livro de Salmos e o louvor cristão
Qual o lugar das Escrituras Sagradas naquilo que cantamos em ato de culto ao Senhor? Creio que uma reflexão acerca do papel que as Escrituras devem ocupar em nosso canto no ato de culto é muito digna de ser feita, e devemos estar dispostos e abertos a aprender com ela. O Apóstolo Paulo diz em Colossenses 3.16: “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão em vosso coração”. Ao comentar este texto, João Calvino (1509-1564) relembra que “toda a Escritura é útil para o ensino” (II Timóteo 3.16). Ele insta a que façamos uso verdadeiro da Palavra de Cristo, e que cantemos poeticamente músicas apropriadas que sejam ricas em conteúdo bíblico.
Isto nos adverte do rigor teológico que deve ser aplicado à oração, ao canto e à pregação no culto cristão. Podemos dizer que a oração aceitável é aquela que Jesus Cristo pode encaminhá-la ao Pai em nosso nome. Isso está de acordo com o ensino sobre “tudo que pedirdes em meu nome”, que alguns exegetas propõem significar não “por meu intermédio”, mas “como meus porta-vozes”. E o rigor teológico aplicado ao canto cristão não pode ser menor do que aquele que deve ser aplicado à pregação. Tanto um quanto outro devem estar rigidamente conformados à Palavra de Deus. Ninguém, pois, deve se sentir livre para ensinar outros a errar. Que a Palavra de Deus habite ricamente entre nós, e que, “enchendo-nos do Espírito”, falemos “entre nós com salmos, hinos e cânticos espirituais” (Efésios 5.19-20).
O Saltério
O Livro dos Salmos é o livro litúrgico por excelência da religião judaica, contendo cantos e orações coletados ao longo dos séculos. Trata-se de uma coletânea de 150 cânticos ou poemas espirituais, muitos dos quais foram compostos para adoração, por meio da música, no Tabernáculo e no Templo. Tornou-se o livro de cânticos de Israel, e o cerne da sua adoração religiosa.
Denise Cordeiro de Souza Frederico, em sua obra Cantos para o Culto Cristão, traz uma boa introdução:
O Livro de Salmos recebeu o nome hebraico seper tehillîm, livro de louvores, usado principalmente sob a responsabilidade dos músicos levitas durante a liturgia hebraica. O nome “Salmos” veio da versão grega do AT. Sua estrutura atual só foi definida no século IV da era cristã, quando passou a ser lido como extensão da lei mosaica e dividido em cinco livros. Essa divisão levou em consideração a expressão “Bendito seja o Senhor Deus de Israel”, elemento divisor dos cinco livros dos Salmos, por analogia com o Pentateuco. Sua colocação litúrgica poderia ser ou no início ou no fim de uma oração. Supõe-se que os escribas a tenham registrado no final de pequenas coleções de salmos. O Livro I abarca os Salmos 1 a 41 e a grande maioria deles pode ser catalogada como “orações de pequenos grupos”; o Livro II, contendo os Salmos 42 a 72, é conhecido como o saltério “eloístico”, porque há 164 ocorrências da palavra Elohim, em contraste com 30 menções de “Javé”; o Livro III tem duas seções: de 73 a 83 são salmos eloísticos e de 74 a 89 são javísticos; os Livros IV (Salmos 90 a 106) e V (Salmos 107 a 150) englobam uma série de salmos dos mais variados assuntos. O último bloco mostra uma linguagem de júbilo, na sua maioria, sendo que os cinco últimos salientam o tom de louvor enaltecedor a Javé. No Templo, um salmo era destacado para cada culto diário e, nas grandes festas, o grupo dos salmos conhecidos como Hallel ganhava destaque. As autorias dos salmos são atribuídas a Davi (73), a Salomão (salmos 72 e 127), aos filhos de Coré (42-49, 84-85, 87-88), a Asafe (50, 73-83), a Hemã (88), a Etã (89) e a Moisés (90).[1]
Os Salmos revelam a atitude da alma na presença de Deus, quando contempla a história vivida, a experiência presente e a esperança profética. Cada salmo é a expressão dum consciencioso auto-exame da alma frente a seu Deus, sentido e conhecido profundamente. Cada salmo é uma expressão viva do conhecimento de Deus. Nenhum outro livro da Bíblia magnífica tanto a Palavra de Deus. Há muita evidência substanciando a inspiração das Escrituras. Lutero chegou a referir-se aos Salmos como “a Bíblia em miniatura”. Todos os cristãos devem conhecer bem esse livro de orações, porque ele foi escrito por inspiração do Espírito Santo. Ele contém modelos de orações, meditações, cânticos e bênçãos; confissões, queixas, petições, ações de graças, aspirações – todas as vibrações e sentimentos da alma acham uma linguagem nos Salmos. E se alguém deseja saber como se aproximar de Deus em adoração, de um modo aceitável, este é o melhor manual para se oferecer.
Como temos dito, os Salmos foram escritos, em grande parte, com o objetivo de serem cantados com acompanhamento musical, especialmente instrumental. Muitos instrumentos eram usados, inclusive os de sopro, tais como a corneta ou chifre de carneiro; de cordas, harpa; de percussão, tamborim e címbalos. Muitos salmos eram acrósticos (a letra inicial de cada verso era uma letra do alfabeto), tais como os de números 9, 10, 25, 34. 37, 111, 112, 119, 145. Os salmos de “romagem” eram geralmente cantados por ocasião das romarias feitas às festas do templo. Muitos salmos eram cantados de forma antifonal, responsiva, valendo-se da estrutura característica de paralelismo da poesia hebraica.
C. H. Spurgeon (1834-1892) gastou vinte anos de sua vida envolvido numa obra sobre os Salmos – “O Tesouro de Davi”.[2] Depois que terminou seu grande comentário sobre esse livro, eis o teor do seu testemunho:
Mística tristeza pesa em meu espírito ao completar o “Tesouro de Davi”, visto que, jamais encontrarei na terra repositório mais rico, embora tenha aberto, para mim, todo o palácio da Revelação. Abençoados têm sido os dias despendidos em meditar, prantear, esperar, crer e exultar com Davi. Posso esperar usufruir dias mais alegres aquém da porta dourada? O livro dos Salmos nos instruiu, tanto no uso das asas como no uso das palavras. Ele nos prepara tanto para voar como para cantar.
Alguns sugerem que a palavra chave do livro de Salmos é “adoração”, e sua mensagem central poderia ser resumida em “Dai ao Senhor a glória devida ao seu nome…”. Os salmos de louvor são os mais numerosos. Essas expressões de exultação e gratidão com freqüência surgiram como seqüência natural de algum grande livramento. Um tema importante é a pessoa e a obra de Cristo, que se vê claramente em muitos Salmos. Nosso Senhor o sugere em Lucas 24.44. Os Salmos são mencionados noventa vezes no Novo Testamento. O próprio Jesus, na cruz, achou nos Salmos palavras para a sua hora mais difícil e para seu último suspiro (22.1; 31.5). Assim, o cantor por excelência dos Salmos é o próprio Jesus (e não David ou Moisés). O texto dos Salmos é o Verbo, pelo Verbo e para o Verbo, ainda que, neste sentido, toda a Escritura é a Palavra de Deus, e toda a Escritura é digna de ser exposta, ensinada, meditada, orada… Os que têm dons para metrificar e musicar a sã doutrina devem fazê-lo.
Um exame dos Salmos nos conduz à conclusão de que o cântico dos hebreus no Antigo Testamento era teologicamente muito rico. Além disto, eram hinos fortemente “encarnados”, isto é, algo substancial na realidade de quem cantava. Como temos dito, os Salmos retratam a história vivida. Há vinte e um salmos que se referem à história de Israel, desde os tempos do Êxodo até os dias da restauração. Nos Salmos históricos, os salmistas meditam sobre o modo como Deus tratou com Israel nos dias passados. Por todos esses salmos há inúmeras referências aos livramentos miraculosos e aos favores divinos conferidos a Israel em tempos idos. Também tratam intensamente da experiência presente. Muitos foram escritos em época de grande crise. O Salmo 51 foi por ocasião do grande pecado de Davi; o Salmo 18, da libertação de Davi. E os Salmos estão plenos da esperança profética. De alguma maneira, o Evangelho está nos Salmos. Os Salmos vislumbraram a Nova Aliança, ainda que não em sua plenitude, porém como uma sombra. Os salmos messiânicos indicam profeticamente certos aspectos do Messias, conforme Ele foi revelado no Novo Testamento. Notabilizando-se dentro dessa classificação acha-se o Salmo 22, que contém várias referências paralelas à paixão de Jesus Cristo – focalizada nos quatro Evangelhos.
A Igreja Cristã, portanto, deve incorporar os Salmos em seus cultos. Deve usá-los para leitura particular e pública, para meditação, para pregação, e para o canto na adoração pública. Em um de seus artigos, o Dr. W. Gary Crampton diz que “é um rico privilégio, rendendo bênçãos espirituais, ser capaz de cantar os cânticos inspirados de Sião como encontrados no Saltério. Se desejamos aprender como cantar – e como orar – bem, precisamos estudar os Salmos”. Ele chega mesmo a endossar a opinião do teólogo e filósofo Gordon H. Clark (1902-1985) quando disse que “um hinário sem uma boa proporção de Salmos não é apropriado para o culto da Igreja”.[3]
No Diretório de Culto de Westminster, publicado no século XVII, lemos alguma instrução na seção acerca “Do Cântico dos Salmos”. Diz-se que “é dever dos cristãos louvar a Deus publicamente cantando Salmos juntos na Igreja, e também em particular na Família”. Conquanto manifeste preocupação com os aspectos técnicos do canto, o diretório recomenda que “o cuidado maior precisa ser o de cantar com entendimento e com Graça no coração, erguendo melodias no Senhor”.[4]
Atente para este fato: se o Saltério era o hinário hebreu, então o menor dos cânticos era o Salmo 117.
Aleluia!
Louvai ao Senhor, vós todos os gentios,
Louvai-o, todos os povos.
Porque mui grande é a sua misericórdia para conosco,
E a fidelidade do Senhor subsiste para sempre.
Amém.
“Este salmo minúsculo é grande na sua fé, e seu alcance é enorme”, observa Kidner. E arremata: “O salmo mais curto revela-se, na realidade, como um dos mais possantes e germinais”.[5] Sua mensagem ainda era grande demais para alguns dos leitores de Paulo compreenderem (Romanos 15.7-12). No menor dos cânticos hebreus, o foco está nos atributos de Deus. A causa do louvor é a grande misericórdia do Senhor e a sua eterna fidelidade – misericórdia e verdade, aliás, são pilares de nossa salvação. Se sua misericórdia é grande e sua fidelidade é eterna, isto não quer dizer que as duas se coloquem em contraste, pois são aspectos da mesma graça.
No menor dos Salmos, o Deus que é louvado tem nome e personalidade, em toda a riqueza descritiva do nome Iahweh (“Senhor” em caixas altas em nossa tradução portuguesa). Iahweh é digno de ser louvado por todos. E, por isto, uma proclamação e convite são dirigidos a todas as nações, com um testemunho muito vivo da realidade do Senhor, na experiência deleitável de comunhão que desfruta o povo da aliança. Tal exortação, dirigida ao mundo inteiro, declara os direitos de Deus sobre os homens. Mesmo assim, esta exortação ficará vazia em grande parte, a não ser que as nações e as tribos a ouçam como uma chamada genuína e inteligível. A convocação, portanto, recai sobre aqueles que a empregam, com a obrigação de fazer com que o convite seja ouvido além das paredes e círculo imediato daqueles. O que é mais surpreendente neste salmo é a declaração de que todas as nações haveriam de achar bênçãos em Abraão. E, na realidade, elas estão achando. Os gentios estão louvando a Iahweh, e dentre todos os povos O estamos glorificando.
Notas:
[1] FREDERICO, Denise Cordeiro de Souza. Cantos para o Culto Cristão. São Paulo: Sinodal, 1999, 414p. Cf. online: https://musicaeadoracao.com.br/28289/a-selecao-de-cantos-para-o-culto-cristao-capitulo-2
[2] Para uma versão online, em inglês: http://www.spurgeon.org/treasury/treasury.php
[3] Um artigo sobre “Salmódia Exclusiva” encontra-se em: https://www.monergismo.com/textos/liturgia/Salmodia_Exlcusiva_Crampton.pdf
[4] Diretório de Culto de Westminster, O. São Paulo: Editora os Puritanos, 2000, 72pp.
[5] KIDNER, Derek. Salmos 73-150; introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova & Mundo Cristão, 1984, pp.425-426.
Fonte: Publicado originalmente em: http://www.gilsonsantos.com.br