por: Gilson Santos
O culto é oferecido a Deus. Na Bíblia, o verbo “adorar” possui uma estreita relação com o reconhecimento de que Deus está no controle; de que só ele é o Alto e o Sublime, e nós somos meras criaturas, incomparavelmente inferiores. Na cultura hebraica, isso se manifestava através do ato físico de curvar-se ou prostrar-se. Neste aspecto convém lembrar a máxima cristã lex orandi, lex credendi, cuja tradução pode ser “o que se ora, é o que se crê.” Segundo este princípio, adoração e teologia caminham juntas e grande parte de nossa liturgia (forma de adoração), é influenciada por nossa teologia (certa ou errada). Nossa liturgia, em certo ponto, é um reflexo de nossa teologia. Como resultado direto, uma teologia corrompida produzirá uma adoração distorcida.[1]
Um elemento estranho presente no culto contemporâneo é a ênfase humanística. Entretanto, a perspectiva cristã bíblica e histórica sobre adoração não vê o culto público como focalizado na esperteza ou criatividade humana, mas na santidade de Deus. Cultuamos para glorificar o Senhor, receber as suas bênçãos e responder com louvor e gratidão. Assim, temos que definir exatamente qual a audiência que, em rigor, objetivamos em nosso culto, se a congregação ou “o céu”. O fim do nosso culto não é alcançar os perdidos, ainda que isto possa legitimamente ocorrer por meio dele.
James M. Boice corretamente afirma que nossa geração é centralizada no homem e infelizmente “a igreja, traiçoeiramente, tem se tornado egocêntrica”. Como filhos desta nossa geração, exigimos que cada momento do culto venha satisfazer nossas necessidades. Neste contexto, o culto foi transformado em um “programa” e o desejo de se obter “felicidade” é certamente maior do que o de se obter “santidade.” Queremos avidamente alegria, mas o comprometimento tornou-se secundário. Julgamos o culto como “agradável,” não com base na instrução bíblica apresentada, mas no grau de “satisfação” pessoal alcançada. Assim, nossa pregação tornou-se uma homilética de consenso, na qual a boa mensagem não é a que confronta nossos pecados, mas a que nos faz sentir melhor. Além do mais, os sermões tornaram-se mais curtos porque nossa atenção e memória são curtas. Neste sentido, J. I. Packer observa: “Geralmente reclamamos que os ministros não sabem como pregar; mas não é igualmente verdade que nossas congregações não sabem mais como ouvir?” O grande perigo dessa adoração é o de “usar a Deus, antes que atribuir-lhe” a devida glória.[2]
Portanto, a adoração que é digna de seu nome deve ser teocêntrica. No coração da adoração cristã está o próprio Deus. E mais: na adoração o cristão não apenas busca a Deus, mas também o encontra. John Owen evidencia este ponto ao dizer que na adoração, Cristo “toma os adoradores pelas mãos e os conduz à presença de Deus.” E, como disse Richard Baxter: “Se é a Deus que você está buscando em sua adoração, você não ficará satisfeito sem Deus”. Este aspecto teocêntrico na adoração pode ser resumido em dois sub-tópicos claramente ensinados nas Escrituras, a saber, que é a glória divina que requer nossa adoração, e que é a vontade divina que normatiza nossa adoração.
Essência e Forma
Na língua portuguesa os verbos “adorar” e “cultuar”, em sentido amplo, podem ser tomados como sinônimos. A origem dos nossos vocábulos “adoração” e “culto” encontra-se na língua latina. A raiz do vocábulo “adoração” resulta da junção da preposição ad + verbo oro. O verbo latino oro significa pronunciar uma súplica, pleitear, e descrevia, por exemplo, as funções de um embaixador. Daqui deriva nossa palavra portuguesa “oração”.Ad-oro significa “dirigir uma súplica a”, “pedir”, “prostrar-se, ajoelhar-se diante de alguém”. Mais tarde adquiriu o sentido de “venerar”, “admirar”, “reverenciar”.
O radical da palavra portuguesa “culto” é o riquíssimo verbo latino colo, que tem o sentido original de “cultivar”. Mas o verbo latino colo adquiriu também o sentido de “cuidar de”, “tratar de”, “querer bem”, “ocupar-se de”, “adornar”, “enfeitar”. E por fim adquiriu a acepção de “honrar”, “venerar”, “respeitar”, “acatar”. Assim, o vocábulo latino cultus (particípio de colo) adquiriu o sentido de “culto”, mostrar respeito, acatamento, reverência, adoração.
Concluímos, pois, que à luz de sua etimologia, os nossos vocábulos “adoração” e “culto” podem ser tomados como sinônimos em seu sentido amplo. Entretanto, um estudo semântico das duas palavras verifica que, com o desenvolvimento histórico dos termos, uma distinção stricto sensu pode ser verificada entre os dois vocábulos, desde um tempo relativamente mais recente. Assim, a palavra portuguesa “adoração” parece relacionar-se mais com a essência, enquanto “culto” parece estar mais relacionada com a forma, algo bem próximo ou idêntico à nossa palavra liturgia. Realmente, por vezes nos parece que na Língua Portuguesa a palavra “adoração” tem mais a ver com sentimentos, com uma dimensão não material, um ato mental, interior, invisível, enquanto “culto” tem mais a ver com a manifestação externa, a prática externa e visível desse ato. Colocando isto em miúdos, significaria que a adoração se manifesta ou se expressa em culto.
Um fato é que o culto que oferecemos a Deus pode consistir-se de práticas externas em que, muitas vezes, falta o essencial. Isto aconteceu no tempo em que Jesus Cristo andou neste mundo. Uma vez, citando o profeta Isaías, disse ele: “Este povo honra-me com os lábios; o seu coração, porém, está longe de mim; mas em vão me adoram…” (Marcos 7:6).
Como seres humanos, temos uma tendência de confundir a forma com a essência. Dificilmente paramos para pensar se o nosso culto corresponde à adoração que Deus procura. Um culto que não representa uma atitude interna de amor pelo Senhor é prestado em vão. Isaías declara que Deus rejeitava os rituais dos israelitas de seu tempo. Deus os achava uma abominação: “as vossas solenidades, a minha alma as aborrece” (Isaías 1:14). O culto externo pode impressionar aos que dele participam. Mas Deus, que sonda os corações, é apto para verificar se a essência está presente, se o culto pode ser classificado como verdadeira adoração. Alguns assumem, neste ponto, um tipo de subjetivismo ou “relativismo estético”, respondendo que a forma do culto não é relevante. Entretanto, Deus se importa tanto com a forma e conteúdo da adoração quanto com seu espírito.
Um Espetáculo para os Sentidos?
No que diz respeito à adoração que o povo redimido presta a Deus, a atual concepção eminentemente estética de louvor associa-o ou vincula-o ao contexto específico da arte. Como portador da imagem de Deus, o homem possui certamente a possibilidade tanto de criar algo belo como se deleitar nele. Esta é a origem da arte. Alguém definiu a arte como a incorporação do conceito de beleza em formas sensoriais. Não colocamos em discussão se a arte pode glorificar a Deus, mas ela deveria encontrar a plenitude do seu espaço próprio. No culto cristão a finalidade não é a expressão artística que apela aos sentidos humanos, mas o louvor a Deus “em espírito e em verdade”. Em diversos momentos da história da Igreja, o casamento da arte com o culto redundou em que este foi devorado por aquela. Novamente estamos presenciando este fenômeno, com a explosão sensorial e artística do “culto evangélico” brasileiro. Se por um lado “todo brasileiro é um artista”, por outro, e tristemente, nem todo brasileiro membro das igrejas evangélicas é um adorador.
O louvor, assim, é apresentado, cada vez mais, como um evento das capacidades sensoriais e visuais, e não como um acontecimento caracterizado por palavras, através do qual nos envolvemos em um profundo diálogo da alma com o Deus triúno.
Em um de seus artigos, Sinclair Ferguson escreveu que “a atitude predominante do evangelicalimo contemporâneo consiste em focalizar a centralidade daquilo que ´acontece` no espetáculo da adoração… A estética, quer seja musical, quer seja artística, recebe prioridade acima da santidade. Mais e mais é visto, menos e menos é ouvido. Acontece uma festa dos sentidos, mas existe fome de ouvir… Agora, tem de haver cores, movimento, efeitos audiovisuais, etc., pois, de modo contrário, Deus não pode ser conhecido, amado, adorado e crido”.
E Dr. Michael Horton escreveu:
A “música cristã” é freqüentemente uma desculpa para artistas inferiores conseguirem vencer numa subcultura cristã que imita o brilho e glamour do entretenimento secular, inclusive suas próprias cerimônias de premiação e seu ambiente de superestrelato. Pode ser que essa não seja a intenção por parte de muitos artistas que querem contribuir para o cenário da música cristã contemporânea, mas a indústria acaba produzindo, na maioria, imitações nada criativas, repetitivas, superficiais da música popular. Produzir música em conformidade com os gostos anestesiados duma cultura consumista já é ruim; imitar a arte comercializada é desperdiçar os talentos (…) Isto trivializa tanto a arte quanto a religião.[3]
A Adoração e a Arte na Cosmovisão da Reforma
No Antigo Testamento, a adoração teve todo um apelo à sensorialidade. A adoração divina apareceu inseparavelmente unida à arte, e mediada fortemente pela forma estética. Naquele período, todas as artes estavam envolvidas no serviço religioso, não somente a música, a pintura, a escultura e a arquitetura, mas, circunstancialmente, também a dança, a mímica e o drama.
Durante a Idade Média, a Igreja Romana retrocede e recupera os elementos da Antiga Dispensação. A mesma forma de religião é imposta sobre uma nação, tanto pelo príncipe como pelo sacerdote, com a união entre Igreja e Estado. Há um retorno às práticas sacerdotais, e o culto ganhou novamente forte apelo sensorialista. A adoração divina forneceu o laço que unia as diversas artes. O estilo da arte e o estilo da adoração coincidiam.
O Dr. Abraham Kuyper, que em seu pensamento certamente é influenciado em alguns aspectos pela filosofia platônica, chega mesmo a expressar a opinião de que “a aliança da religião com a arte representa um estágio inferior de religião, e em geral do desenvolvimento humano”. E Kuyper cita Von Hartmann:
(…) Quanto mais a Religião se desenvolve em maturidade espiritual, tanto mais se livrará das ataduras da arte, porque a arte sempre é incapaz de expressar a própria essência da religião. E o resultado final deste processo histórico de separação deve ser que a Religião quando plenamente madura se absterá completamente do estimo pelo qual a pseudo-emoção estética a intoxicou, a fim de concentrar-se total e exclusivamente sobre o avivamento daquelas emoções que são puramente espirituais.[4]
O conceito Kuyperiano da relação entre religião e espiritualidade pode (e deve) certamente ser submetido ao rigor da crítica, mas suas inquietantes conclusões acerca do binômio adoração e arte merecem toda a nossa melhor ponderação.
Na Idade Moderna começamos a ver a emancipação da religião da tutela sacerdotal e política. E a Reforma contribuiu decisivamente para esta transição. E na tradição de Ulrico Zuinglio (1484-1531), João Calvino e os reformados, o tema principal, em rigor, não era a justificação, conquanto reconhecessem sua vital importância. O foco deles era a adoração. O foco dos zuinglianos estava em que o homem pecador deveria voltar-se da idolatria para o Deus verdadeiro. E assim, os teólogos da tradição reformada pregaram “Soli Deo Gloriae” em todas as áreas da vida, porque eles tinham em vista a adoração.
Retornando ao Novo Testamento, o Calvinismo compreendeu que Deus não mais será adorado no monumental templo em Jerusalém, e que na literatura apostólica não se encontra o apelo às artes com propósito de adoração. Para o calvinismo – e desde então esta tem sido a direção em todo o Ocidente – a adoração e a arte têm cada uma sua própria esfera de vida. Isto não significa que um estilo de arte possa originar-se independentemente da religião, pois o tronco da arte está firmemente enraizado na concepção teológica do artista. Mas significa emancipar a adoração divina mais e mais de sua forma sensorial e encorajar sua vigorosa espiritualidade.
Como exemplo deste princípio reformado, em Zurique, Zuinglio desencorajou a arte e a música na igreja, insistindo na centralidade única da Palavra e dos sacramentos. Contudo, ele próprio tocava instrumentos e fundou a orquestra de Zurique. A atitude do reformador estava longe de ser antiarte ou antimúsica. “Pelo contrário”, escreve Dr. Horton, “ele queria libertar a Palavra no culto e as artes na criação, desde que estas não tivessem primazia sobre a Palavra”.
Horton cita ainda outros exemplos. Ele relembra que, conquanto muitos anabatistas defendessem desprezar as artes como sendo “mundanas”, Lutero contra-argumentava: “Não sou da opinião de que as artes devam ser jogadas de lado ou desprezadas pelo Evangelho, como protestam algumas pessoas superespirituais; eu quisera ver, com prazer, todas as artes, especialmente a música, a serviço daquele que as deu e as criou”. Sendo compositor de hinos, o próprio Lutero inspirou toda uma tradição de hinologia evangélica. E João Calvino não encontrava o mal na representação teatral pública, como tal. No tempo de Calvino, e com sua aprovação, representações públicas eram feitas para todas as pessoas em Genebra em praça pública.
Assim, a cosmovisão da Reforma concedeu que a arte fosse um empreendimento com terreno próprio, que, conquanto devesse também ser para a glória de Deus, não estivesse amarrada à adoração. O calvinismo exerceu forte influência sobre o culto cristão, quando teve a coragem de superar o apelo à demonstração externa e ao simbolismo, e insistiu na beleza interior, espiritual, da alma adorando.
Neste sentido, o culto no Protestantismo Reformado é simples, em acordo com o caráter e processo da revelação bíblica acerca da adoração. De fato, a adoração do Novo Testamento é destituída de normas e complexidade cerimonial.
Terry L. Johnson, em seu livro Adoração Reformada, escreve:
Não há Jerusalém, nem Templo e nem instruções levíticas… e a ausência de um livro de Levítico no Novo Testamento reflete a simplicidade da adoração na Igreja de Cristo… O Novo Testamento está cheio, como um guia completo, de afirmações que sustentam a adoração simples dos filhos de Deus em Espírito. Nenhuma liberdade é dada no Novo Testamento para inventar formas de adoração, mais do que a que é dada no Velho.
No Antigo Testamento há todo um ritual para se achegar a Deus, com procedimentos definidos, rico em simbolismo e ancorado num calendário. Na adoração do Novo Testamento não há nada disso. O que não significa que a igreja está livre para fazer a adoração do modo que ela desejar. Mas quer dizer que a nossa adoração é para ser simples, direta, sem ritual elaborado, destituída de formas complexas, liberta de um calendário e ciclos naturais, contudo, limitada ao uso daqueles símbolos instituídos por Cristo, a santa Ceia e o Batismo. Se a igreja inventar uma adoração jungida por ritual, simbolismo, e normas, estará minando o propósito de Deus de que nossa adoração seja simples, e estará voltando às sombras do Antigo Testamento. Rejeite isso, não aceite a pompa e circunstância da liturgia medieval. Não abrace tão pouco a extravagante alta-voltagem da adoração contemporânea. Não crie um novo sacerdócio de técnicos, artistas e atores. Nossa adoração é simples e, portanto, universalmente válida; ela pode ser conduzida e usufruída em qualquer lugar, a qualquer hora, seja qual for o salário, educação, ou perícia tecnológica dos envolvidos. Pode ser feita num iglu no Alasca, numa cabana de palha no Congo, ou numa grande catedral em Paris. Deus agora pode ser adorado tanto em Samaria como em Jerusalém.[5]
Também a este propósito, escreveu o pastor Paulo Anglada:
Desejo, portanto, concluir sugerindo que, à luz da história da revelação bíblica, ênfases sobre pompa, ritos, símbolos, gestos e demais práticas litúrgicas inventadas pelo homem, não constituem avanço, e sim, um retrocesso. Significam um retorno a formas de culto mais rudimentares, apropriadas apenas à velha dispensação. A glória e beleza do culto na nova dispensação não está no templo, na sua decoração, nos ritos, nos símbolos, nos gestos, nas luzes, nos corais, na pompa, nas cerimônias, nos instrumentos musicais, ou em quaisquer coisas do gênero. Está, sim, na sua simplicidade, na sua natureza espiritual, na santidade do adorador, na conformação do culto à verdade revelada nas Escrituras, na realidade do acesso do crente á presença de Deus pela intermediação de Cristo e a ação do Espírito Santo.[6]
As ordenanças levíticas foram “sombras das coisas celestiais” (Hebreus 6:5,6). Foi uma “sombra dos bens vindouros” (Hebreus 10:10). Não deveríamos retornar aos símbolos complexos, aos rituais, e normas pelas quais o povo de Deus se aproximava dEle no Antigo Testamento. Essa forma de adoração foi abolida por Cristo, que cumpriu todas as funções sacerdotais e sacrificiais, em nosso favor de uma vez por todas. A adoração praticada pela igreja primitiva, conforme registra o Novo Testamento, reafirma este ponto. Os cristãos primitivos devotaram-se à “doutrina dos apóstolos, à comunhão, ao partir do pão e às orações” (Atos 2:42). Seu culto não se assemelhava ao ritual ricamente elaborado do templo, estando mais próximo da simples e singela adoração da sinagoga. Os cultos da igreja cristã primitiva eram simples ministrações da Palavra, ordenanças e oração. E eles estavam satisfeitos com a mediação espiritual do Senhor Jesus Cristo, entronizado à direita de Deus.
Concluindo este ponto, vale uma citação de Kuyper a este respeito:
[O fato] de uma reintrodução do simbólico em nossos lugares de adoração ser ardentemente desejada, devemos à triste realidade de que a pulsação da vida religiosa em nossos dias está muito mais fraca que estava nos dias de nossos mártires (…) esta fraqueza da vida religiosa deve inspirar à oração por uma obra mais poderosa do Espírito Santo.
E o pensamento de Kuyper o conduz às veementes palavras: “A segunda infância, em sua velhice, é um movimento retrógrado, doloroso. O homem que teme a Deus e cujas faculdades permanecem claras e inalteradas, não retorna do ponto de maioridade para os brinquedos de sua infância.”
No louvor, a música é eminentemente um meio.
No que concerne à música, há um entendimento popular de que o louvor que o povo redimido presta a Deus é “uma celebração em palavras e músicas”. Mas este entendimento precisa ser colocado em questão. O maestro brasileiro, Parcival Módolo, diz acertadamente que no culto “a música é serva do texto, é veículo para o texto”. Nós acreditamos que o Senhor permite que cantemos e também usemos instrumentos para acompanhar os cânticos, mas, em rigor, não são estes que verdadeiramente expressam louvor ao Senhor. Eles são secundários; não são conforme a imagem de Deus, e não têm almas redimidas. Isto não significa que a Igreja deva desprezar a preocupação com a qualidade estética da música em si mesma – aliás, Horton está certo quando diz que “temos que ser rigorosamente analíticos quanto à música sacra”. Porém, significa que, no louvor, a música é eminentemente um meio, ainda que muito nobre e adequado. No louvor que o povo redimido deve prestar a Deus, o que Ele procura são palavras e pensamentos que resultem da objetiva condição do adorador. A música nos auxilia num nível prático, mas, em rigor, não é ela em si mesma que expressa o nosso louvor. O canto do povo de Deus certamente deve ser grande e glorioso nos termos de esforço e fervor, mas são as palavras e o coração do adorador que Deus deseja.
Donald P. Hustad diz que “a adoração cristã primitiva era estritamente vocal, visto que a música instrumental era primordialmente associada com os sacrifícios no templo hebraico, provavelmente não era usada nas sinagogas, e foi abandonada até pelos judeus quando o templo foi destruído em 70 A.D.”.[7]
Qual a finalidade da música na Igreja Cristã? Há quem entenda que ela deve ser utilizada apenas como veículo para exprimir adoração a Deus. Outros entendem que ela situa-se num contexto eminentemente de ensino. De fato, no Novo Testamento as referências à música na Igreja (I Coríntios 14:15; Colossensses 3:16; Efésios 5:19b; Hebreus 13:15; Tiago 5:13) encontram-se num contexto principalmente de ensino: “falando entre vós”, “ensinai-vos”, “admoestai-vos”. Mas também dizem respeito ao louvor a Deus: “louvando a Deus com gratidão a Deus em vossos corações”, “entoando e louvando de coração”, “ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto dos lábios”. Além disto, há aqueles que sugerem haver também lugar para a evangelização na música da Igreja, em que a letra seja dirigida ao incrédulo. Ela seria um meio de “proclamar as virtudes daquele que nos chamou das trevas para sua maravilhosa luz” – ainda que este uso da música para o testemunho cristão tem sido bastante questionado, talvez porque muitas vezes seja centralizada na pessoa do descrente, e não no Deus que lhe é apresentado.
Notas:
[1] Santos, Valdeci. Refletindo sobre a Adoração e o Culto.
[2] Boice, James M. O Evangelho da Graça. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, 224 pp.
[3] Horton, Michael S. O Cristão e a Cultura; Nem separatismo nem mundanismo. São Paulo: Cultura Cristã, 1998, 206 pp.
[4] Kuyper, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, 208 pp.
[5] Johnson, Terry. Adoração Reformada. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2001, 68 pp.
[6] Anglada, Paulo. O Princípio Regulador do Culto. São Paulo: PES, s.d., 46 pp. Conteúdo de palestra proferida em 1997.
[7] Hustad, Donald P. A Música na Igreja. São Paulo: Edições Vida Nova, 1991, 310 pp.
Fonte: Publicado originalmente em: http://www.gilsonsantos.com.br/htm/post-042.htm.