por: Daniel Oscar Plenc
Sendo que a música desempenha um papel fundamental na expressão humana, convém cultivá-la bem.
A passagem de Isaías 55:10 e 11 expressa, adequadamente, a dinâmica da adoração. “Porque, assim como a chuva e a neve descem dos céus e para lá não tornam, mas regam a terra, e a fazem produzir e brotar, para que dê semente ao semeador, e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei.”
Na adoração existe uma palavra de Deus que desce do alto e uma resposta que ascende do homem. A mensagem divina retorna em frutos de harmonia com a vontade de Deus. Assim a adoração é ação: uma auto-revelação de Deus e uma resposta positiva do homem. Robert E. Webber mostra que como adorar é um verbo, é algo que fazemos para a glória de Deus.
Consideraremos quatro aspectos importantes que criam o lugar da música na adoração da igreja.
1. A música como criação e doação divina
A música é um presente de Deus, parte de sua criação, de tudo “que era muito bom” (Gênesis 1:31) o que o Senhor fez no principio. O grande Artista divino fez os homens a sua imagem, com gosto pela beleza, e com suficiente criatividade e capacidade estética para expressá-la e desfrutá-la (Gênesis 1:27, 28). Deus é a grande gênese da música. Por um tempo Lúcifer foi apenas seu diretor do coro, até que pôs em dúvida a dignidade do único objeto do louvor celestial (Isaías 14:12-14). Neste contexto o homem, como mordomo do Criador, é responsável por usar, preservar e desenvolver o dom da criatividade, e da expressão musical.
2. A música da igreja como arte e missão
Donald P. Hustad afirma que “a música na igreja não é uma arte livre, nem um fim em si mesma. É arte trazida aos pés da cruz: arte dedicada ao serviço de Deus e a edificação da igreja.” Prefere pensar na música cristã como uma arte funcional, uma criação humana, mas destinada ao cumprimento dos propósitos divinos. Diferentemente da arte “pura,” a música cristã supera o prazer estético e é avaliada pelo cumprimento de seu propósito. Esse propósito não pode diferir da missão divina da igreja.
Uma ideia da missão da igreja pode se extrair dos termos que o Novo Testamento utiliza para expressar as facetas do ministério eclesiástico: adoração (leitourgía), ensino (didajé), comunhão (koinonía), proclamação (kerygma), testemunho (marturía), serviço (diakonía). Estes vocábulos sugerem um equilíbrio na clássica tensão entre o ser e o fazer do ministério eclesiástico.
2.1. Adoração (leitourgía): Cabe notarmos que a adoração é “a primeira responsabilidade da Igreja”. A adoração é também o grande objetivo da igreja e de seu culto. A música cristã participa deste objetivo, sendo um instrumento de comunicação entre Deus e os homens. Um meio pelo qual Deus pode expressar-se, e ao mesmo tempo permitir ao homem expressar uma resposta positiva à iniciativa da divindade. De modo que, acima de qualquer outro objetivo, a música eclesiástica deve orientar-se à adoração a Deus.
2.2. Proclamação (kerygma): A música da igreja apregoa os feitos redentores de Deus em favor dos homens, e estende a eles um convite à fé e ao compromisso cristão. As religiões pagãs baseavam sua adoração nos ciclos da natureza; a religiosidade bíblica se baseia nas intervenções históricas de Deus em favor de seu povo. Os grandes atos da criação, preservação, redenção e providência devem proclamar-se na adoração cristã e na sua música. Eles provêem os motivos essenciais para a resposta do homem. Ellen White o expressou desta maneira: “A voz humana tem muito poder efetivo e musicalidade, e que aquele que aprende a cantar realiza esforços decididos adquirirá o habito de falar e cantar que será para ele um poder para ganhar conversos para Cristo”.
2.3. Testemunho (marturía): A música cristã prove a oportunidade para compartilhar a fé e a experiência cristã com os outros. É um veículo adequado para contar o que o Senhor tem feito na vida de cada testemunha. Os que não crêem podem receber esse testemunho, e os crentes serão edificados.
2.4. Educação (didajé): A música sacra constitui um ministério docente porque, como a música é educativa, pode transmitir com eficácia importantes aspectos do caráter e das ações do Criador. A serva do Senhor expressou assim: “É um dos meios mais eficazes para impressionar o coração com as verdades espirituais. Quantas vezes à alma oprimida e pronta a desesperar, vêm à memória algumas das palavras de Deus – as de um estribilho, há muito esquecido, de um hino da infância – e as tentações perdem o seu poder, a vida assume nova significação e novo propósito, e o ânimo e a alegria se comunicam a outras almas!
Nunca se deve perder de vista o valor do canto como meio de educação. Que haja cântico no lar, de hinos que sejam suaves e puros, e haverá menos palavras de censura e mais de animação, esperança e alegria. Haja canto na escola, e os alunos serão levados para mais perto de Deus, dos professores e uns dos outros.”
2.5. Serviço (diakonía): A música cristã é muitas vezes um remédio para o espírito humano. Outorga ânimo, consolo e fortaleza. Por meio dos cantos sagrados em Israel “elevavam-se seus pensamentos acima das provações e dificuldades do caminho; abrandava-se, acalmava-se aquele espírito inquieto e turbulento; implantavam-se os princípios da verdade na memória; e fortalecia-se a fé.” Por esta razão os músicos cristãos devem ver a si mesmos como autênticos ministros de Deus em favor dos conversos.
2.6. Comunhão (koinonía): A música cristã enfatiza a unidade da igreja e fortalece os laços de amor entre seus membros. Além de unir, o canto freqüentemente provê uma das poucas oportunidades de genuína participação conjunta. A oração e o canto unem os pensamentos dos adoradores e os orienta na direção do divino. Por isso, “O canto não deve ser feito apenas por uns poucos. Todos os presentes devem ser estimulados a tomar parte no serviço de canto.”
Todo este fundamento teológico e eclesiológico da atividade musical indica que as palavras dos cânticos são mais significativas que a música que os acompanha. É verdade que a música pode dar força, e servir de realce e complemento à letra, mas também é certo que pode limitar e até bloquear a compreensão das palavras.
3. A música como expressão
Ensina-se que a música é uma arte, e que a arte é basicamente expressão. Mas não se deve esquecer que a música cristã é um meio de expressão religiosa. Uma expressão humana, dentro de um indubitável marco teológico.
Neste contexto a música sacra primeiramente deve ser expressão de Deus. É criada e executada por seres humanos, mas leva à sublime intenção de expressar a Deus. Por isso, “a música cristã deve incluir a melhor expressão humana possível daquilo que a cultura percebe ser a auto-revelação de Deus à humanidade”.
Junto com a pregação bíblica, o canto cristão pode ser um canal de comunicação entre Deus e os homens. A adoração levará em conta a transcendência e a imanência de Deus (Isaías 57:15). Deus é anterior e está além da criação, mas veio a nós em Cristo e no Espírito Santo. A transcendência de Deus promove a reverência, e a imanência torna possível a comunhão. A música da igreja deve apresentar a Deus tal como a Escritura o revela: um Deus que desperta o temor reverente tanto quanto o gozo cristão.
Também é certo que a música é uma expressão de prazer, e que a música cristã não tem porque renunciar a ele. Porque, “a menos que os adoradores encontrem algo de prazer… numa determinada linguagem de música cristã, provavelmente não serão edificados nem pela música nem pela letra”. “Sem dúvida, há perigos potenciais relacionados com a experiência de prazer gerado pela música cristã”. Existe o risco de fazer do prazer da música um fim em si mesmo, de limitá-la a uma experiência puramente estética, transformando-a num “entretenimento religioso”.
A música também é expressão de emoção. As emoções parecem revalorizar-se na adoração atual, e não há dúvida de que “a música fala ao coração”. Alfred Küen expressa que todo o ser: “espírito, alma e corpo, os sentimentos e a vontade, assim como a inteligência, deveriam estar envolvidos no culto”.
Fala-se muito da utilização litúrgica dos dois hemisférios cerebrais; o esquerdo, verbal, lógico, cognitivo, racional; e o direito, não verbal, intuitivo, estético, emocional. Paulo insta aos cristãos de Corinto a cantarem “com o espirito” e “com o entendimento” (I Coríntios 14:15). O perigo se encontra em reduzir a emoção a sua expressão superficial: o sentimentalismo. Isto resulta em desconectar a música do conjunto da realidade cultual, de seu contexto teológico e experimental, e impor com insistência as preferências individuais.
A música sacra deve ser a expressão de autêntica religiosidade. Há de ser julgada em relação com o cumprimento de sua missão espiritual. A música cristã deve servir como um meio eficaz de revelação divina e resposta humana. “Além disso, todas as reuniões e atividades da igreja (com sua música) devem ser avaliadas por quão plena e verdadeiramente Deus é revelado e quão completa e madura é resposta positiva humana.”
A música cristã há de ser a expressão dos princípios fundamentais da fé. Na situação da religiosidade protestante, a música religiosa deve manifestar o sustentáculo de seu pensamento teológico.
3.1. Primazia das Escrituras. O princípio da Sola Scriptura (Somente a Bíblia) tem implicações na adoração e na música da igreja. A adoração tende a ser mais racional que mística, por submeter-se às pautas escriturais. A pregação bíblica passa a ser central na adoração congregacional. A leitura e a pregação da Escritura não é substituída nem ofuscada pela música, apenas realçada por ela.
3.2 A Salvação pela Fé O principio fundamental da Sola fide (Somente a fé) determina que o culto dê ênfase na salvação, e em tudo relativo à justificação, santificação e a glorificação. Nesta atitude o culto não acrescenta mérito à redenção em Cristo, mas é um fruto precioso da salvação. Na realidade só o crente, o homem convertido adora verdadeiramente a Deus.
3.3 O Sacerdócio dos Crentes O princípio do sacerdócio universal dos crentes promove a participação de cada membro da congregação. Por isso, os sermão e o canto devem ser simples e compreensíveis para a grande maioria. Não se prega para teólogos, nem se canta para músicos, apenas para o Senhor e para a igreja.
4. A música sacra como adoração a Deus
Ainda que pareça correto promover a adoração como a atividade mais importante da igreja, este tempo de inovações e mudanças exige reexaminar as bases bíblicas e teológicas da adoração eclesial em busca de adequação e autenticidade.
As palavras originais da Escritura para significar “adoração” oferece chaves importantes acerca da natureza deste encontro entre o humano e o divino. A palavra hebraica mais freqüente, shâjâh, denota a ação de inclinar-se ou render homenagem. A palavra grega equivalente, e a mais importante do Novo Testamento, proskuneô, encerra a conotação primária de “beijar para”. O hebraico ‘abad, ou o grego latréuô significam serviço a Deus. Nesse sentido a adoração é a homenagem, a submissão, a obra e o serviço de todo o povo a Deus.
Em seu livro I and Thou, Martín Buber sustém que a essência da religião é a relação, o diálogo do homem com Deus. Com efeito, a adoração é a expressão da relação do cristão com Deus. A definição mais comum de adoração, descreve-a como resposta afirmativa, transformadora dos seres humanos à auto-revelação de Deus. Evelyn Underhill fez uma afirmação considerada clássica: “A adoração, em todos os seus graus e formas, é a resposta da criatura ao Eterno…”. Martinho Lutero reduziu a ação litúrgica dialogal às atividades concretas do serviço religioso (Gottesdienst): “reunir-se com o fim de escutar e dialogar sobre a Palavra de Deus, e em seguida louvar a Deus, cantar e orar”.
Podemos notar pelo menos duas implicações básicas da adoração corporativa com influência na música: A adoração como uma conversação com Deus, e a adoração como oferta e entrega a Deus.
4.1. Adoração como diálogo. Em Isaías 6:1-8, Deus se aproxima do profeta em revelação de seus atributos e como portador de uma vocação divina, e o profeta responde em confissão, submissão e rogo. O mesmo ocorre no verdadeiro culto. “Deus nos fala através da leitura bíblica, do sermão e dos hinos que cantamos. Também respondemos por intermédio de hinos e de outras palavras que nos tem sido designadas, em louvor, gratidão, confissão, dedicação, petição e intercessão.”
Søren Kierkegaard se refere à adoração como um drama no qual os membros da congregação são os atores e Deus é o ouvinte. Pregadores e coros são o “ponto” ainda que pareçam “dominar a cena”. João Calvino dizia que a congregação é o primeiro coro da igreja.
A ideia de adoração como conversação com Deus deve conduzir a uma cuidadosa seleção da música eclesiástica. “O diálogo da adoração deve ser completo: deve dar um panorama completo da auto-revelação de Deus e prover a oportunidade de gerar uma resposta completa por parte do ser humano tanto em símbolos cognitivos (palavras) como em formas criativas (música e outras artes).”
4.2 Adoração como oferta Adorar é ofertar a quem é o legítimo doador de todas as coisas. A esse Deus benevolente deve se oferecer o melhor sacrifício de louvor (veja Hebreus 13:15-16), sem esquivar-se ao valor (veja II Samuel 24:20-24). Porque a adoração é um doar e um doar-se a Deus. Haverá bênçãos e satisfações, mas serão frutos benéficos dessa piedosa e transformadora doação humana. “Adoração é, no final das contas, submissão a Deus.”
Todo este sentido da música como parte da adoração da igreja pode, todavia, apreciar-se melhor à luz da notável sentença de William Temple: “Adoração é a submissão de todo nosso ser a Deus. É tomar consciência de sua santidade; é o sustento da mente com sua verdade; é a purificação da imaginação por sua beleza; é a abertura do coração a seu amor; é a rendição da vontade a seus propósitos. E tudo isto se traduz em louvor, a mais íntima emoção, o melhor remédio para o egoísmo que é o pecado original.”
Dr. DANIEL O. PLENC é professor na Universidade Adventista del Plata e diretor do Centro de Investigação White
Referências
(Observação – No original não é indicada claramente a correlação entre as citações no texto e as referencias bibliográficas correspondentes.)
– Robert E. Webber, Worship is a Verb: Eight Principles for a Highly Participatory Worship, 2ª ed. (Nashville: Abbott Martyn, 1993).
– Donald P. Hustad, ¡Regozijai!: a música cristã na adoração, trad. Olivia de Lerín, Bonnie de Martínez, J. Bruce Muskrat, Josie de Smith e Ann Marie Swenson (El Paso, Texas: Casa Batista de Publicações, 1998), 21-23.
– Ibid., 9.
– Ibíd
– Ibid, 40-42; Roberto Pereyra, Preparação do obreiro voluntário (Villa Libertador San Martín, Entre Ríos: Seminário Adventista Latino Americano de Teologia, 1985), 22-23.
– Roberto Pereyra, Dinâmica eclesial: Notas de classe (Villa Libertador San Martín, Entre Ríos: Editorial C. A. P, 1983).
– D. Watson, I Belive in the Church (London: Hodder and Stoughton, 1978), 179, citado em Alfred Küen, El culto en la Biblia y en la historia, trad. Eva Bárcena (Terrassa, Barcelona: Clie, 1995), 71.
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– Ellen G. White, El evangelismo (Buenos Aires: Associação Casa Editora Sudamericana, 1975), 367-368.
– White, La educación (Buenos Aires: Asociación Casa Editora Sudamericana, 1964), 167-168.
– Ibíd., 39.
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– Hustad, 42.
– Ibid., 44.
– Ibid., 46.
– Ibid., 47.
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– Ibid., 108-109; Webber, 87-89; Hustad, 48-49.
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– Ibid., 56.
– Ibid., 118.
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– Hustad, 118.
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– Ibid
– Ibid., 130-131.
– Ibid., 140.
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