por: Pr. Douglas Reis
Há razões bíblicas para não frequentarmos o cinema? Antes de analisar a questão, temos que admitir que o problema não é simples. Embora a Igreja Adventista do Sétimo Dia sustente que o cinema constitui um ambiente “mundano”, conclamando seus fiéis a não frequentá-lo, faz décadas que vêm sendo feitas objeções por parte de alguns de seus próprios membros. Em sua maioria, defensores e contrários à prática usam a mesma classe de argumentos, que se fundamentam na cultura e em detalhes técnicos do próprio cinema como mídia.
Aqui a abordagem não seguirá esse caminho, por um motivo bem simples: não é a cultura que determina o que deve ser praticado pelo cristão. Se fosse, a base de nossa fé seria insegura e mutável. Como adventistas, acreditamos em três princípios (ou pressupostos) para orientar nossa experiência e nossas escolhas: sola Scriptura (somente as Escrituras), tota Scriptura (as Escrituras em sua totalidade) e prima Scriptura (as Escrituras acima de tudo).
Nesse caso, quais princípios bíblicos poderiam ser evocados para defender a posição oficial da igreja? Com “posição oficial da igreja”, estou assumindo que a igreja ainda orienta seus membros a não ir ao cinema, uma alegação que pode ser comprovada consultando o manual da denominação e seus documentos envolvendo estilo de vida. Vale notar que edições mais antigas do manual empregavam a palavra textualmente, enquanto as mais recentes utilizam termos mais abrangentes, na tentativa de contemplar outros tipos de mídia que venham a existir.
Voltando à pergunta, reconheço não haver um claro “assim diz o Senhor” no tocante à frequência ao cinema, com todas as letras, por uma série de razões. A mais óbvia: não é um problema dos tempos bíblicos, pois se trata de uma tecnologia mais recente, com pouco mais de um século. Então, quer dizer que o assunto não deveria ser abordado biblicamente? Ora, as Escrituras não encerram apenas ordens diretas (“não matarás”, “lembra-te do dia de sábado”), mas falam de princípios. Eis alguns exemplos de questões não abordadas diretamente pelas Escrituras: Seria proibido consumir maconha? Seria errado viver de forma consumista? A prática da eutanásia seria moralmente aceitável? Em todos esses casos, é necessário mais do que “caçar versículos” para tratar do assunto. Exige-se um tratamento mais amplo.
Por isso, sugiro uma abordagem da teologia sistemática, aquela que faz mais do que simplesmente coletar textos. O ideal seria termos uma teologia da cultura (quando falamos de cinema, estamos procurando entender uma prática cultural à luz da Bíblia) que cobrisse alguns temas, entre os quais a frequência ao cinema. É óbvio que algo dessa natureza é complexo. Assim, não é meu objetivo desenvolver tal teologia neste momento. Primeiro, por causa do espaço; segundo, por achar que outros já fizeram isso com relativo sucesso, especialmente o professor Demóstenes Neves, do Iaene. Neves escreveu um pequeno livro intitulado Entretenimento e Mídia: Cinema, Televisão, Filmes e Internet, o qual traz pesquisa interessante sobre o assunto.
Os princípios elencados a seguir também poderiam servir para abordar outras temáticas que envolvam a matriz de nosso assunto (cultura à luz da Bíblia). Pense no seguinte:
1. A importância da contemplação. Somos transformados por aquilo que contemplamos (Jeremias 2:5; II Coríntios 3:18), o que nos mostra que há consequências espirituais para todo tipo de mídia que consumimos ou objeto a que passamos a nos devotar (ou simplesmente com o que gastamos tempo). Obviamente, alguns podem alegar que se trata de entretenimento, mas nada é produzido no vácuo; há sempre um conjunto de valores oferecidos e isso acaba tendo um efeito cumulativo sobre a mentalidade de quem assiste (não significa que assistir a filmes violentos fará alguém cometer crimes, por exemplo, mas poderá amortizar sua sensibilidade à exposição da violência).
2. O imperativo para renovar a mente. Isso implica fugir de padrões do mundo, que poderíamos igualar à perspectiva secular, capaz de moldar nossas percepções e valores (Romanos 12:2; Efésios 4:22-24), muitas vezes contrários ao plano que Deus tem para nós. Na perspectiva de que vivemos um grande conflito, é de se esperar que as artimanhas de Satanás sejam sutis e disseminadas, para atingir todos sem que percebam.
3. O princípio de filtrar todas as coisas. Devemos selecionar tudo de acordo com critérios do evangelho, constituídos por valores bem definidos (Filipnses 4:8), ao mesmo tempo que há de se cuidar com o “mito da imunidade”. A Bíblia nos ordena a sequer nomear algumas práticas pecaminosas (Efésios 5:3). Isso nos faz entender que filtrar não significa assistir, ler, praticar ou experimentar algo e, em seguida, ponderar (como se fôssemos imunes à exposição de práticas pecaminosas), mas, em alguns casos, nem tomar conhecimento da prática ou consumir a mídia em questão. Filtrar é dizer não ao que é claramente prejudicial, em lugar de tentar extrair lições de um conteúdo negativo.
4. A noção da dimensão imaginativa do pecado. Uso o termo “imaginativa” por ter relação com a imaginação e os pensamentos humanos, embora tal dimensão não seja menos real do que a dimensão prática do pecado, pois Jesus igualou ambas (Mateus 5:21, 22, 27, 28; Jó 31:1). Esse ponto tem estreita ligação com a ficção, pois é comum o envolvimento da pessoa com a mídia e a identificação solidária com personagens (a sensação de que estamos dentro da história). Logo, quando vejo ou leio algo de conteúdo contrário à Bíblia, os pensamentos assumem, por vezes acriticamente, aquela perspectiva (como no exemplo de quando torcemos para o herói matar seu inimigo ou quando queremos que o casal passe a noite juntos, após se conhecerem).
5. A admoestação de fazer uso adequado do tempo. Se o ser humano tem duração limitada de vida (Salmos 90:10; Isaías 40:6-8), ela deve ser muito bem aproveitada, não apenas pela busca de experiências significativas e satisfatórias (perspectiva secular), mas para encontrar verdadeiro significado e satisfação em ser vir ao Senhor (Romanos 14:8; Colossenses 4:3-5). Um fator que contribui para isso é que vivemos em contagem regressiva até o encontro com Jesus. Isso levou o apóstolo a insistir conosco para que vivamos de maneira qualitativamente distinta (Efésios 5:15, 16). O entretenimento, em geral, ocupa muito do tempo de nossa sociedade midiática, fazendo com que várias reflexões e experiências humanas fiquem desvalorizadas (não há tempo para elas). E o que dizer de nossos esforços para pregar o evangelho e para buscar viver o cristianismo? Será que tais preocupações não se perdem devido a interesses divididos, ao tempo que gastamos com diversão, muitas vezes fútil? Creio que é possível suscitar outras razões, embora tais princípios pareçam suficientes para justificar a orientação da igreja.
Obviamente, o assunto aguarda outras contribuições mais amplas. E ainda prescindimos de uma teologia abrangente que lide com questões relacionadas à cultura. Assim, a construção de um pensamento cristão fortemente estabelecido a partir da revelação ajudará a conter tanto o conservadorismo não embasado quanto o liberalismo que desprestigia (por vezes, inconscientemente) a revelação como critério para avaliar cada prática culturalmente aceitável.
Douglas Reis é professor no Instituto Adventista Paranaense
Fonte: Revista Adentista, Julho de 2014, pp. 20-21