por: Filipe Reis
Não sou um especialista em questões musicais – apenas e só procuro ser um ouvinte atento, não somente à música em si mas também ao fenômeno musical de uma forma geral. Poucos aspectos influenciam de forma tão marcante a sociedade e a igreja, que, simplesmente, não podemos ficar indiferentes à sua preponderância.
É por essa razão que desde há algum tempo procurei, como leigo, observar atentamente como a música na nossa igreja se tem desenvolvido, mudado e acompanhado (ou não) o que, de forma geral, vai surgindo na cena musical do mundo em que vivemos.
Assim, esta breve reflexão é apenas e só a partilha daquilo que pude constatar pelas evidências factuais e históricas que estão à mercê de qualquer observador – não tem a mínima intenção de se propor como um tratado, muito menos um estudo detalhado sobre a música na nossa igreja, pois não tenho conhecimentos suficientes para o fazer e há quem o faça muito bem, sendo que eu mesmo já procurei essas fontes para alguma informação. Como sugeri, tentarei apenas partilhar um pouco daquilo que qualquer pessoa pode observar por si mesma, não me propondo a apresentar receitas, mas sim a simples leitura e análise dos fatos.
Então, o que é que pude perceber? Em primeiro lugar, que a música da nossa igreja algumas décadas atrás era não apenas muito diferente do que é hoje, mas também era bem diferente da música secular que havia nesse tempo.
Tomando como base as primeiras décadas em que se começaram a fazer gravações – primeiro em áudio depois também em vídeo – podemos perceber que as nossas músicas tinham uma fortíssima componente vocal em detrimento do acompanhamento instrumental, que era normalmente reduzido, talvez deva dizer discreto. Isto privilegiava a mensagem pregada através das letras, que eram facilmente retidas e repetidas na memória – e assim tinha de ser, até mesmo para estabelecer a melodia.
Em contraponto, hoje quase não dispensamos um belíssimo arranjo instrumental, diria melhor orquestral, que por vezes ocupa uma parte considerável da canção ou do hino.
Isto é um problema? Em si, certamente que não será. Mas o que acaba por provocar é que o instrumental mexe mais com as emoções e os sentimentos do que com as convicções e a razão. No final, somos capazes, até involuntariamente, de nos recordarmos do “lá lá lá”, mas não é tão fácil retermos uma frase, um texto, um verso cujas palavras sejam inspiradoras, textos bíblicos, verdades presentes, etc..
Neste contexto, deixo por agora de parte, sem comentário, algo que nos deveria fazer parar e pensar seriamente: a extrema pobreza bíblica, em termos de conteúdo essencialmente adventista, de muitas canções mais recentes que temos no nosso meio – faço apenas esta menção para estarmos mais atentos.
Recuperando o raciocínio anterior: embora essa instrumentação fosse bem mais escassa, também não havia os melismas que se usam hoje. Se o faziam com palavras nítidas e inteligíveis, não o faziam com aqueles ruídos imperceptíveis que resultam apenas num banal abanar, por vezes estremecer de voz sem sentido e desorientado – já me explicaram que é assim que alguns cultos invocam a presença de demônios…
Também não precisavam abanar o corpo, nomeadamente a cabeça, os braços e o tronco (nem vou falar das ancas, especialmente no caso das senhoras…). A postura contribuía grandemente para que o destaque fosse dirigido para as letras e a sua mensagem, e não para os executantes.
A este propósito, creio haver hoje outro problema: deixamo-nos convencer que apenas as “estrelas”, em alguns casos os profissionais, é que são capazes de louvar através da música. Porque é que fizemos isto? Porque o louvor pela música passou a ser um palco em vez de um simples ato de adoração.
Para percebermos melhor o parágrafo anterior, mais grave ainda é quando constatamos que em muitos casos a música deixou de ser um ministério para passar a ser uma indústria, e o crente deixou de ser um adorador para passar a ser um cliente. A indústria, qualquer uma, só consegue vender se operar sob dois parâmetros, entre outros: produzir um artigo que seja atrativo e rentável, de preferência de forma imediata, e oferecer aquilo que o cliente quer; ora, sendo que a igreja não é um mercado comercial, não devem ser estas as normas orientadoras de qualquer das suas ações, incluindo a do ministério musical.
Acrescentando: já reparou que antigamente também não eram necessárias luzes especiais e fumos multicoloridos para compor o cenário? Talvez a razão disso é que ali havia adoração e não espetáculo.
Certa ocasião estive num local onde o louvor (através da música) era feito, simplesmente, por um irmão ou irmã que quisesse agradecer ou louvar ao Senhor através do canto. Ele ou ela pegava no hinário e com ou sem música erguia a voz para com as estrofes do hino dar largas à exaltação de Cristo que queria apresentar. Todos escutavam atentamente e, no final, respondiam com um bem audível e sincero “Amém!”. Um detalhe: sob um ponto de vista musical, digamos que em jeito de “casting”, alguns não cantavam muito bem; mas não era exatamente isso que importava – eles estavam convencidos que Deus tinha aceitado aquele ato de louvor, desde que sincero e de coração, como se tivéssemos lá o próprio coral de anjos a cantar.
Naquelas músicas mais antigas, reparo que o desempenho vocal fazia uso mais abundante de graves e não tanto de agudos. Isso provocava aquele ambiente sonoro de solenidade que promovia um silêncio reverencial no ouvinte ou na congregação. O ouvinte ficava ali, quieto e sereno, a absorver seriamente o conteúdo das letras como uma mensagem da pregação.
Pelo contrário, hoje chegamos a ter gritos bastante afiados, que penetram o ouvido por incômodo e não por deleite. Confortavelmente, chamamos a isso talento, “performance” musical e elogiamos o artista como portador de um dom especial, sem mais critério algum.
Finalmente, não podemos dizer que tudo isto era assim naquele tempo, naquelas décadas, porque não era; já havia o rock e outros tipos de música, já havia instrumentos “pesados” e até barulhentos, com vocais por vezes estridentes. A questão é que, provavelmente, a música na igreja era muito diferente e não pedia desculpa por isso.
Concluindo: algo mudou e ainda está a mudar. Talvez este seja mais um caso em que estamos a ser demasiado iguais quando deveríamos ser, como em quase tudo, tremendamente diferentes.
Fonte: Os editores do Música Sacra e Adoração agradecem ao autor pela disponibilização deste material.