A Forma da Adoração

Música, Adoração e Pós‐Modernismo

Misturas, Efeitos e Caminhos de um Cristianismo Desgovernado

por: Tiago Zortea

Neste ensaio gostaríamos de discutir sobre a influência pós-moderna no cristianismo protestante, mais especificamente nos âmbitos da música e da adoração. A expressão “pós-modernismo” se refere a um período marcado por algumas transformações, momento este que sinaliza uma linha divisória, mas não fixa e nem tanto inteligível, entre o que é “moderno” e “pós-moderno”.

O modernismo se caracterizou por momento histórico-cultual da sociedade ocidental que rompeu com os princípios mantidos até então, na idade média. A “Idade Moderna” trouxe a ciência e com ela o uso da razão para a explicação de fenômenos naturais e humanos. Deus deixa de ser a verdade absoluta e fonte de todas as coisas e é morto pelo homem moderno com as armas da metodologia científica, tal como ilustrado por Nietzsche. O homem econômico liberal com seu “super-poder” – a Razão – irá buscar criar um mundo ideal, mais ou menos previsível, determinado, organizado, lógico, racional e, principalmente, ordenado – condições essenciais para que se possa atingir a felicidade também inventada pelo homem moderno. A era moderna foi marcada, sobretudo, pela crença na razão e no progresso – em outros termos, pela inversão do pólo transcendental para o terreno.

Mas o século XX iria colocar em xeque o mundo do progresso e da razão até então estabelecidos. A ordem e a inteligibilidade pareciam se tornar anêmicas diante de grandes colapsos gerados pelas guerras, revoluções, estragos ambientais, atrocidades e mortes em massa e outros conflitos marcados pelo horror. A ciência e os “avanços” começam a ser questionados e o homem não alcança o que havia planejado. A euforia no progresso dá lugar à incerteza no futuro – eis aqui um dos componentes essenciais das “almas pós-modernas”. Nesse contexto de profundas crises humanas, mudanças irão surgir nas múltiplas faces sociais e culturais. Podemos dizer que nas últimas décadas do século XX entra em cena um espectro fantasmagórico e um ar perfumado de incertezas e dúvidas: o pós-modernismo.

Há uma ruptura com o mundo ordenado da modernidade e a crença no progresso vira piada. Mudanças ocorrem em vários campos, as “certezas” se diluem em incertezas e a liberdade, tão cultuada, trata de dar os contornos das novas configurações econômicas, sociais, culturais, políticas, artísticas, científicas e cotidianas – e ninguém sabe dizer para onde estamos indo; a modernidade respondia com autoridade que estávamos caminhando para o progresso, mas a pós-modernidade mantém-se na caducidade, e também não está interessada em responder questões existenciais. O pós-modernismo busca a todo instante a intensificação das sensações e dos prazeres da felicidade, mas jamais quer conhecer a face daquilo que procura. Dentre as várias características que compõem o pós-modernismo estão o individualismo exacerbado; o narcisismo [1]; o apelo constante ao consumo; o apregoamento da liberdade e da incerteza; a “emocionalização” da vida; o excesso de informação sem a possibilidade de questionamento; a sociedade do espetáculo, do show, do exibicionismo e da imagem; defesa do niilismo [2]; a generalização da descartabilidade; a redução dos espaços coletivos; a reemergência do hedonismo [3] acompanhado pela força da liberdade e da imagem; a doutrina do aqui-e-agora; a crítica pela crítica; a busca pelo fascínio estético; a transferência de parte da vida para o mundo da virtualidade; o fortalecimento da competitividade e a redução da cooperação; a defesa de opinião própria em detrimento absoluto do bem estar coletivo; e vários outros fatores que compõem o que estamos chamando de “modo de vida pós-moderno” que vagarosamente emerge, mas cujos efeitos são marcadamente visíveis.

Tudo bem. Mas e música cristã, o que tem a ver com isto? Iniciamos, então, com o “mercado gospel”, “o disco de platina”, os fã-clubes e consumidores das “mercadorias evangélicas” e, obviamente, o reflexo disso: o povo canta “casca”, canta “superfície”, quando, sequer, sabe e pensa no que está cantando. Inúmeros cantores, cantoras e grupos tem surgido também em nossas igrejas locais, em função desta realidade “mercadológica”. Nelson Bomilcar [4] completa: “A mensagem do evangelho tem sido sucateada, colocada em segundo plano, escondida em letras superficiais e que não ajudam a pessoas a conhecerem mais do Deus das Escrituras Sagradas. Pobreza poética, excesso de reocupação com a imagem, mais do que com a fidelidade à mensagem do evangelho que professamos ou com a integridade dos músicos”.

A liberdade também toma conta, mas não no sentido de estar livre do pecado, mas uma liberdade “para correr, para dançar, para tirar o pé do chão”, levando multidões a um “extravasamento emocional” nos “shows” e “espetáculos cênicos” em que, muitas vezes, Jesus é um mero detalhe do que ocorre ali. Descreveu bem João Alexandre: “é proibido pensar!” O culto agora é “emocional” e não mais “racional” como rogou o apóstolo Paulo em Romanos 12:1.

Se não bastasse, a doutrina pós-moderna do “aqui-e-agora” também entra em cena. Este pressuposto é claramente identificado nas letras das músicas (…): “hoje o meu milagre vai chegar, eu vou crer, não vou duvidar. O preço que foi pago ali na cruz me dá vitória nesta hora”; e (…): “Adora, pois a sua vitória vai chegar nesta hora. Deus marcou na agenda e não passa de hoje não; hoje é o dia da vitória”. O imediatismo cria interface com a lógica da felicidade: eu tenho que ser feliz e para isto Deus fará um milagre na minha vida, e este milagre tem que ser agora, não pode passar de hoje; eu preciso desta vitória. O que as pessoas se esquecem é de se perguntar: o que é vitória para um cristão? O que é felicidade para um cristão? E o que fazer com as palavras de Jesus: “Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (João 16:33)? Que vitória é essa? E as aflições?

O narcisismo toma conta. As músicas que cantamos no meio cristão dizem, a todo momento, dos nossos sentimentos, das nossas emoções feridas, das nossas crises, e tentam a todo custo nos trazer alento, afirmando que somos “especiais”. Não se fala mais de “pecado”, “pecador”, “errante”, “arrependimento” e “salvação”. Aliás, fala-se sim em salvação; numa salvação que é “minha”, que é “meu privilégio”, “minha herança”; afinal de contas, “tudo o que Jesus conquistou na cruz é direito nosso! É nossa herança! Todas as bênçãos de Deus para nós, tomamos posse, é nossa herança!”. Desta forma, todas as coisas giram em torno do “eu”, tal como expressam muito bem os carregadores a arca: “Onde eu colocar as minhas mãos prosperará, a minha entrada e a minha saída bendita será, pois sobre mim há uma promessa. Prosperarei, transbordarei.” É o auge do “eu”. E a graça, onde fica?

Diversas outras influências se materializam na música cristã contemporânea. Um dos grandes perigos é cair em extremos. Não estou negando a existência de promessas de Deus para o homem; a questão não é esta. A questão é exatamente a permanência excessiva e maçante nas promessas que dizem respeito ao “bem-estar” humano, à vitória, ao fim do sofrimento terreno. Entretanto, há promessas que não são ditas, tais como: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; […] Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Mateus 5:10 e 20), “A falsa testemunha não ficará impune e o que respira mentiras não escapará.” (Provérbios 19:5). São promessas, mas não são cantadas. Não são cantadas por que não massageiam o “eu”, e por que trazem incômodo, trazem desafios que não queremos abraçar, visto que o comodismo é mais interessante, não dá trabalho, não cansa, e nos faz bem à mente! Canta-se que “Deus é fiel” e cumpre suas promessas. Mas esquece-se que “Deus é fiel” e cumpre todas as suas promessas, inclusive aquelas que não são cantadas!

O apostolo Paulo nos diz coisas importantes em Romanos 12:2, Efésios 4:14-15, e II Coríntios 4:1-2. O pós-modernismo é um movimento advindo das raízes modernas, que negam a Deus como verdade absoluta.

O princípio para esta confusão desregrada é exatamente a negação de Deus como fonte de todas coisas, como verdade primeira, como o verbo do princípio. A avaliação de tudo tem um critério único: a Bíblia. Só saberemos quais caminhos estamos trilhando, que efeitos estamos produzindo e que tipo de cristianismo estamos vivendo se olharmos para a palavra, se olharmos para Cristo, a raiz perfeita!


[1] Narcisismo. Amor excessivo e mórbido à própria pessoa.

[2] Niilismo. Doutrina segundo a qual não existe nada de absoluto (inexistência de realidade substancial) nem possibilidade de conhecimento do real e que, por isso, se caracteriza por um pessimismo metafísico e por um cepticismo relativamente aos valores tradicionais (morais, teológicos, estéticos).

[3] Hedonismo. do Grego hedoné, prazer. Antigo sistema filosófico que considerava o prazer como único fim da vida; doutrina que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princípio e fim da vida moral.

[4] Nelson Bomilcar é pastor, compositor e músico, e tem trabalhado na adoração e música cristã nos últimos 30 anos, ministrando e pastoreando músicos, tendo produzido inúmeros cantores e grupos no Brasil. Participou de Vencedores Por Cristo, Semente, Igreja Batista do Morumbi. É membro da Associação de Músicos Cristãos (AMC) do Brasil.


Fonte: Música & Adoração


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