A Forma da Adoração

Os Tambores de Jeremias

por: Levi de Paula Tavares

"Ainda te edificarei, e serás edificada, ó virgem de Israel! Ainda serás adornada com os teus tamboris, e sairás nas danças dos que se alegram." Jeremias 31:4

O texto acima tem sido utilizado por muitos cristãos sinceros para justificar ou defender o conceito de que os tambores e danças teriam sido sancionados por Deus, mesmo após o cativeiro Babilônico, ou seja, após as orientações dadas através dos profetas acerca desta questão, durante período do templo de Salomão.

Ao pesquisar o assunto, foram encontradas poucas referências a este texto, e nenhuma delas faz uma análise detalhada do versículo em questão. Assim, iremos tentar nos aprofundarmos no significado deste verso através das ferramentas comuns de exegese, a começar pelo contexto imediato do verso citado.

Ao lermos o capítulo 31 de Jeremias notamos que este não é um texto de admoestação ou instrução, mas sim um texto profético. A expressão "naquele tempo", encontrada no verso 1, demonstra que Jeremias está emitindo uma profecia para o futuro. Este fato é reforçado pela repetição desta expressão (ou expressões semelhantes) nos versos 6,27,29,31 e 38. Além disso, deve ser notado que todos os verbos chave deste capítulo estão conjugados no tempo futuro.

Portanto, temos aqui a nossa primeira lição a partir desta análise: O texto não é uma instrução sobre como deve ser o culto a Deus, mas uma profecia, de cumprimento futuro.

Precisamos agora compreender o significado dos termos utilizados em nosso texto chave, para que possamos entender o sentido do que está escrito. Para isto, é necessário entender o assunto tratado por esta profecia.

Ampliando a análise contextual, vemos que esta profecia se inicia no capitulo 30, com a expressão "Esta é a palavra que veio a Jeremias da parte do Senhor". A ligação entre os capítulos 30 e 31 é óbvia pela expressão "naquele tempo", existente no início do capítulo 31. Qual seria "aquele tempo"? Certamente, o tempo ao qual o capítulo 30 se refere.

Ao lermos os capítulos 30 e 31 de Jeremias, o assunto da profecia fica claro: ela trata da restauração futura do povo de Israel.

Na época em que estes capítulos foram escritos, o povo de Israel estava cativo em Babilônia (ver Jeremias 29:1-2). Este cativeiro era uma provação permitida por Deus com o objetivo de que, através do sofrimento, o povo de Israel pudesse compreender a sua total dependência de Deus e permitisse que o Senhor fosse o seu Deus, e aceitassem ser o Seu povo (Jeremias 31:1).

O próprio Jeremias havia profetizado por várias vezes que esta catástrofe nacional aconteceria e, de fato, ocorreu. Deus está prometendo lhes devolver a terra e restaurar Seu pacto com eles. Esta profecia refere-se, portanto, à restauração futura do povo de Israel, após o cativeiro Babilônico.

Tendo isto em mente, podemos ver aqui a segunda lição que podemos extrair desta análise: esta profecia sobre a futura libertação de Israel não está falando em adoração no templo, mas de expressões de júbilo em uma possível festividade futura de celebração nacional, popular, nas quais era comum ocorrerem danças a som de tamboris e adufes.

Tendo compreendido o contexto imediato do verso em questão e o significado da profecia na qual ele se insere, vamos fazer uma análise mais detalhada do próprio verso. A primeira pergunta que surge ao lermos o texto de Jeremias 31:4 é: Quem seria a "virgem" citada como utilizando tamboris e dançando?

Conforme já demonstrado, a nossa análise contextual indica que a profecia tem como destinatário todo o povo de Israel no cativeiro. O propósito de Deus com relação aos israelitas é um só: Que o Senhor seja o seu Deus e que eles sejam o Seu povo (verso 1). Portanto, a virgem, neste caso, é o Israel remanescente, aquele a quem a restauração prometida se aplica.

Essas mesmas pessoas são chamadas, no verso 20 de "filho" (masculino) e novamente no verso 21 de "virgem" (feminino). Portanto, temos aqui um vislumbre da nossa terceira lição: A linguagem utilizada nesta profecia possui um caráter altamente poético e figurativo, como é comum no belo estilo de escrita oriental. Este ponto será ampliado mais adiante.

Outro ponto intrigante neste verso é a expressão "serás adornada com os teus tamboris". Desde quando tamboris são elementos de adorno? Parece haver uma evidente incoerência textual neste ponto. Há duas explicações possíveis:

1 – A Nova Versão Internacional traduz esta expressão da seguinte maneira: "você se enfeitará com guizos". De acordo com esta tradução, a palavra original "toph" significaria, neste contexto, os guizos com os quais se adornavam as vestes. Esta interpretação faz ainda maior sentido por estar associada à imagem de "danças", já que os guizos seriam um ornamento apropriado para as vestes de uma dançaria, soando em harmonia com seus movimentos corporais.

2 – A palavra original, "toph" possui um outro significado, de acordo com o Léxico de Gesênio, [1] que seria um "engaste", no qual as pedras preciosas e semipreciosas seriam incrustadas para uso em joalheria. Este significado faz muito sentido na expressão que estamos analisando, uma vez que trata-se, efetivamente, de um objeto de adorno, sendo amplamente admitido como a melhor tradução desta palavra hebraica em Ezequiel 28:13. [2]

Esta dificuldade de tradução do texto bíblico não é surpreendente: A língua hebraica não é fácil de ser traduzida, devido à sua pobreza de vocabulário. A língua portuguesa, por exemplo, contém cerca de 280 mil palavras, enquanto que a língua hebraica possui apenas cerca de 7 mil. Esta pobreza gera complicações na hora de traduzir determinadas frases, pois, uma única palavra pode possuir mais de 30 significados diferentes e até contraditórios. Neste caso, o contexto é quem deverá contribuir para uma tradução mais próxima da realidade.

Pessoalmente, acredito que a segunda interpretação para o vocábulo "toph" esteja mais correta, mas, qualquer que seja a interpretação utilizada, a nossa quarta lição é que a expressão "serás adornada …" não admite que esta palavra hebraica seja traduzida, neste contexto, como "tamboris".

Continuando a nossa análise, e compreendendo a fundamental contribuição do contexto para a tradução correta dos termos hebraicos, vamos verificar o termo “danças”, que no original é "machowl", ou "mãchôl". Este termo pode ser traduzido como dança, volteios, ou até mesmo como saltos circulares. No caso do texto em análise, podemos notar que o contexto admite a tradução como “dança”, embora saibamos que as danças orientais, utilizadas nas festas populares, são completamente diferentes das danças sensuais aos pares, conforme é o costume no mundo ocidental.

Porém, qualquer que seja o significado que possamos atribuir a essas palavras hebraicas, podemos compreender facilmente que, à luz de nossa terceira lição – a qual indica que a linguagem aqui é altamente figurativa – "toph" (tamboris, guizos ou engastes) e "machowl" (danças, saltos ou volteios) referem-se à alegria do povo em ver cumprida esta profecia.

Em vários outros textos estas mesmas palavras originais, descrevendo músicas e danças em festas populares são empregadas de forma figurativa para indicar uma exuberante alegria, ou seja, são imagens que representam o júbilo pelo livramento divino. Por exemplo, em Jó 21:11-12; Salmos 30:11; 149:3; 150:4; Isaías 30:32; Jeremias 31:13. Estas mesmas palavras também são utilizadas, de maneira negativa, para indicar profunda tristeza, conforme pode ser verificado em Isaías 24:8; Lamentações 5:15.

Chegamos assim à nossa quinta lição: os termos "tamboris" e "dança", conforme utilizados nesta tradução, não representam um evento literal, mas são figurativos e poéticos, para expressar a alegria da libertação e restauração.

Tendo realizado esta análise, podemos chegar à conclusão de que o texto de Jeremias 31:4 não constitui, de forma alguma, uma chancela divina para a utilização de tambores e/ou danças nos cultos do antigo Israel após o cativeiro babilônico.

Se, ainda assim, após termos extraído essas 5 lições acerca deste texto e seu contexto imediato, alguém menos informado queira utilizar este verso bíblico para tentar defender o conceito de que após o cativeiro babilônico os israelitas usavam tamboris e danças em sua adoração no templo, temos uma sexta lição adicional, embasada pelos textos de Esdras 3:10; Neemias 12:27 e 36: isto de fato nunca aconteceu, pois os parâmetros para os instrumentos, utilizados quando da restauração do serviço levítico após o retorno do cativeiro babilônico, foram aqueles deixados por Davi, relatados em I Crônicas 15:16 e 25:1. Inclusive, a lista dos instrumentos utilizados é exatamente a mesma: voz, címbalos, harpas e liras [3].

Ampliando esta lição, podemos citar que o Dicionário Internacional de Teologia admite que o uso de "toph" ou "tõp" jamais foi mencionado em situações de adoração dentro do templo sagrado. Fazendo menção específica ao nosso texto de Jeremias 31:4, o mesmo dicionário concorda que este verso se refere a contextos completamente dissociados da adoração, referindo-se a um contexto de festejos sociais alegres, ou algo desta natureza [4].


Notas:

[1] – Ver https://www.blueletterbible.org/lexicon/h8596/kjv/wlc/0-1/ (em inglês)

[2] – Para maior detalhamento acerca desta argumentação, ver https://musicaeadoracao.com.br/28966/uma-resposta-com-todo-respeito-sobre-o-tema-dos-tambores-terem-sido-criados-ou-nao-por-deus/

[3] – Para maiores detalhes, ver:

[4] – HARRIS, Laird R.; ARCHER, Gleason L. Jr.; WALTKE, Bruce K., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 1656)


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