Hinologia

Alguns Esclarecimentos Sobre o Hinário “Cantai ao Senhor” (Parte 1)

por: Dario Pires de Araújo [1]

Parte 1

O Hinário “Cantai ao Senhor” [2] foi editado e entrou em uso sem que os irmãos tivessem tido uma explicação sobre o que foi feito, e sobre os critérios de trabalho adotados. Muitos o compreenderam, ao passo que outros não. Julgamos oportuno um esclarecimento, e aqui estamos para fazê-lo.

Devemos ter em mente que a música sacra é sempre um meio, e nunca um fim em si, e que o hinário é para ser usado em práticas religiosas na igreja, no lar, no trabalho etc., como meio de adoração, louvor, educação, terapia, evangelização, ou para servir a ocasiões especiais. Daí a importância de um hinário, uma vez que os fins nem sempre justificam os meios, e a importância do canto certo na ocasião propícia.

Tendo em mente isto, um hinário sacro só pode ser composto de hinos e cânticos sacros. Isto só é suficiente para explicar a eliminação de 29 cânticos do Hinário Adventista, cujas músicas não eram de caráter sacro; os outros 12 eram infantis ou para jovens, que já têm seus hinários próprios; um bom número, porém, foi julgado tolerável, e foi incluído ao lado dos de boa constituição, com o único objetivo de reduzir o descontentamento. O fato de inúmeros adventistas terem seus cânticos prediletos entre os eliminados vem provar que o gosto e o discernimento de uma certa porcentagem de irmãos ainda é de nível bem popular e secular. Sempre fomos, porém, da opinião de que a igreja tem o dever de educar, elevar e santificar o gosto dos membros, e jamais rebaixar o nível da música até ao gosto popular, como está acontecendo, não só com as igrejas e seitas populares, mas também com os próprios protestantes em geral. Estamos convictos de que a igreja de Deus deve ser diferente também em sua música.

Quanto ao trabalho nos hinos em si, devemos esclarecer que cantar é conjugar duas espécies de linguagem que, para pessoas normais, falam igualmente alto; para pessoas com muitos pendores musicais, ou completamente destituídas deles, uma falará mais alto do que a outra. Quando cantamos duplicamos o poder de penetração com o casamento de duas maneiras de expressão; este poder será tanto maior quanto mais feliz for o casamento entre a letra e a música. Ambas conservam entre si semelhanças estreitas (como veremos logo mais).

Assim como o casamento é uma união de dois indivíduos num corpo só e será tanto mais feliz quanto maior for a identidade nos três aspectos do matrimônio (físico, mental e espiritual), também um hino será tão perfeito e feliz, quanto maior for a identidade da música e da letra em seus três aspectos (número de sílabas e sons, ou seja, tamanho das ideias, coincidência de acentuações, e caráter da música e da letra).

É muito fácil compreender que o tamanho das ideias de ambas deve ser igual para que não haja sobras de nenhum lado.

Quando a nossa Bíblia foi escrita, não possuía separação entre as palavras, nem pontuação. Era uma coisa bem mais complicada do que estamos acostumados a ver na linguagem escrita que evoluiu bastante até que se resolveu separar as palavras e pôr a pontuação. Infelizmente a música ainda está escrita daquela maneira ligada. Só a análise das frases da música é que permite distinguir os limites das ideias musicais (“palavras” da música), e como se agrupam para for mar as frases.

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de percepção musical pode perceber facilmente, ao cantar um hino como o de número 29 do “Cantai ao Senhor”, os sons se agrupando para formar as “palavras” da frase musical:

Benditos, / sagrados / serão / Os laços / fraternos /
(Semifrase)
do amor /
(Frase)
Se, junto / a Cristo / ficar
(Semifrase)
mos / unidos na causa, /
(Semifrase)
na luta, / na dor.
(Frase e Período)

Estes sinais, usados sobre os hinos fizeram pela música o que a separação das palavras e a pontuação fizeram para a linguagem comum. É necessário fazer força para não se compreender isto.

No segundo aspecto, não é necessário fazer favor a ninguém para concordar que nem todas as sílabas têm a mesma força; o mesmo peso, a mesma acentuação; quem não sente que numa palavra como, ÁRVORE, o AR (sílaba tônica) é mais acentuado do que o VO e o RE?

A mesma coisa acontece com a música. É necessário que uma pessoa seja destituída de senso rítmico para não sentir que os sons acentuados do primeiro hino do hinário são os que se entoam ao pronunciarmos as seguintes sílabas sublinhadas:

Ó Deus de amor, vimos nós Te adorar.
Vós, ó nações, rendei louvor etc.

Qualquer pessoa perceberá logo que os sons acentuados coincidem com sílabas também acentuadas, e que estes sons sempre vêm após um traço vertical que corta as 5 linhas da pauta musical, chamado barra de acentuação ou divisória. Toda vez que isto acontece, ao se cantar entendem-se acentuações das palavras no lugar correto (Prosódia). Isto é um casamento feliz, porque tanto o marido como a esposa dão valor às mesmas coisas. Seria interessante, a título de exemplo de péssimo casamento, cantar com a mesma música as seguintes palavras:

Senhor, nosso Deus, vimos louvar-Te!

Por mais boa vontade que se possa ter, e por mais lindas que as palavras possam ser, quem não compreenderá isto, ao cantar, da seguinte maneira?

Se / nhor, nossô Deus, vimôs / louvar-Te!

As palavras eram lindas, mas ficaram sensivelmente prejudicadas. Aqui qualquer pessoa inteligente começará a perceber que existe uma diferença bem grande entre fazer poesia e fazer letra para ser cantada. A poesia é uma pessoa solteira, livre, com poucas restrições, (número certo de sílabas com poucas acentuações obrigatórias, e deve ter rima). A letra cantada é um casal que acerta o passo em cada som e sílaba, em cada parcela da frase, em cada acentuação, sem, contudo, deixar de ser música e poesia. Todas estas coisas são tão naturais quanto a própria Natureza, e homem algum as inventou, embora, sentindo, as possa descobrir e utilizar para seu benefício.

No terceiro aspecto do casamento (espiritual), o hino constituirá uma união feliz se tanto a música como a letra criam atmosfera e condições mentais idênticas, ou seja, afetam o estado mental de maneira semelhante.

Como para o inimigo é dificílimo conseguir que os adventistas cantem na igreja palavras profanas ou não religiosas, usa o outro lado da questão, que é bem mais sutil e atrativo. São aquelas uniões infelizes de palavras religiosas com músicas de caráter profano. São as músicas folclóricas dos “Negro Spirituals”, as melodias de caráter popular de tantos corinhos e cânticos que trazem para dentro da igreja a atmosfera sonora dos festivais de música popular, dos salões de danças e lugares de divertimento. São as “músicas de café”, no dizer do crítico musical do mais conceituado jornal de S. Paulo. Quando as palavras inteligíveis de um cântico são enobrecedoras e elevam os pensamentos, mas a música desperta excitação que força algum movimento físico para acompanhar, é por que alguma coisa deve estar errada. E não nos assustemos se as guitarras estiverem algum dia acompanhando os cânticos no estilo de iê-iê-iê em nossas reuniões de jovens, pois as portas já estão escancaradas para isto, infelizmente.


Nota:

[1] Agradecemos à Loide Simon por esta contribuição ao Música Sacra e Adoração.

[2] Apesar de o hinário “Cantai ao Senhor” não estar mais em uso e, por este motivo, muitos dos exemplos dados aqui não serem mais aplicáveis, o presente artigo foi publicado, porque os editores do Música Sacra e Adoração acreditam que os conceitos e princípios aqui explanados são válidos para todas as épocas.


Fonte: Revista Adventista. Julho, 1969, p.11.

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