A Seleção de Cantos Para o Culto Cristão – Capítulo V

por: Denise Cordeiro de Souza Frederico

A Tensão Entre Tradição e Contemporaneidade na Música Sacra Do Século XX

5.1 – Introdução

O principal objetivo deste capítulo é focalizar a música sacra do século XX, para descobrir como as pessoas lidaram e ainda lidam com a tradição e contemporaneidade nos cantos de suas igrejas cristãs e desse procedimento retirar critérios com os quais se possam selecionar os cantos sacros. Por ser um assunto muito amplo, foi necessário limitar a pesquisa à Europa Ocidental, aos Estados Unidos e ao Brasil. A limitação deveu-se, em parte, a duas razões: a exigüidade de tempo e a literatura acessível à autora.

O capítulo inicia esclarecendo o que entende por música tradicional e música contemporânea em igrejas protestantes e na Igreja Católica Romana no século XX. Abordando a seguir as características e as principais tendências da música no século XX. Para uma melhor compreensão do assunto, dividiu-se a música em três principais grupos: a música da linha evangelical, a música “pop” e a que recebeu influência do folclore local, e a que foi resultado da busca por uma renovação litúrgica do culto.

O capítulo trata, a seguir, com maior profundidade, de como a Igreja Católica Romana situou a música de sua liturgia no presente século, verificando os documentos oficiais e outros provenientes de congressos específicos sobre música e liturgia. A pesquisa deseja averiguar a maneira como, no Brasil, a Igreja Católica Romana se comportou em relação aos pronunciamentos do Vaticano II sobre música sacra e o que, de palpável, foi realizado. Antes, porém, traça um pequeno histórico acerca do que foi realizado em solo brasileiro antes de 1963, data da promulgação da SC.

O estudo segue dando atenção à música das igrejas protestantes brasileiras, enfocando as dificuldades pelas quais elas passaram para que sua religião fosse oficialmente aceita no país. Embora o primeiro tratado que favoreceu o protestantismo fosse entre o Brasil e a Inglaterra, verifica-se que foram os missionários americanos os que mais influenciaram o fazer protestante em terras brasileiras. Passa-se, então, à história de como isso ocorreu e aos elementos que foram vitais para que o protestantismo, principalmente o não-litúrgico, tivesse as características que tem e que tanto afetaram a música dessas igrejas.

Tendo levantado as influências que o protestantismo recebeu no Brasil, o capítulo focaliza ainda com maior rigor

como cada denominação protestante histórica lidou com a música, como os hinários chegaram a ser editados e que pessoas foram responsáveis por essas atividades. Dá ouvidos também às análises efetuadas por eminentes historiadores sobre a hinodia brasileira, chegando à análise da recente produção hinológica. Quer ainda saber quais têm sido as últimas tendências musicais nessas igrejas, e o faz não somente através da literatura, mas com subsídios retirados de uma análise discográfica. O estudo ainda deseja averiguar as razões por que muito da tradição musical sacra norte-americana do século passado ainda hoje é tido como sendo a música sacra dentro dessas igrejas.

Verificada a tensão entre a música tradicional e a contemporânea no século XX, trata-se de levantar que conseqüências isso acarretou e que critérios úteis podem ser retiradas dessa tensão para o proveito das pessoas que trabalham com música nos cultos cristãos atuais.

5.2 – Características gerais e principais tendências da música sacra no século XX na Europa Ocidental, Estados Unidos e Brasil

5.2.1 – Características gerais

Nas igrejas protestantes, entende-se música tradicional como a herança deixada pelos precursores do movimento evangélico no Brasil, os quais transplantaram para cá a hinodia de seus países de origem, traduzida. Música sacra tradicional dos protestantes, em termos de século XX, é entendida como aquela que vem sendo cantada há, pelo menos, duas gerações e cujo estilo musical é aceito pela geração mais velha sem causar perplexidades. Esse estilo de música detém uma percentagem alta nos hinários das denominações cristãs protestantes. Nos principais hinários cristãos evangélicos, essa música vem mais ou menos padronizada seguindo critérios do século passado: a estrutura musical possui uma quadratura formal, com frases metricamente correspondentes; a melodia é reconhecida facilmente e, nos hinários a quatro vozes, vem no soprano; a harmonia segue os princípios da chamada harmonia tradicional, com seus encadeamentos harmônicos girando em torno da tônica, subdominante e dominante do tom principal; o estilo mais constante é o do coral, com uma ou duas enunciações rítmicas para cada tempo musical. O acompanhamento mais usual é feito pelo órgão ou pelo piano. O texto segue os parâmetros do verso medido, com métrica regular e rima. A linguagem ainda segue as tendências do período romântico, herdada diretamente do protestantismo americano, cuja teologia se fundamenta nos avivamentos dos dois séculos anteriores. Antonio Mendonça destaca quatro classificações para o canto do protestantismo brasileiro, que se passa a destacar como características fundamentais da linguagem da música tradicional cristã protestante: linguagem acentuadamente individualista, expectação pelo porvir (ênfase na escatologia), sentido provisório do caminhar cristão na terra (a peregrinação) e textos que se referem ao povo de Deus como “exército”, usando termos militares. Acrescentaria a esse grupo uma quinta característica: hinos que chamam o não converso ao arrependimento de pecados e à “conversão”.

Quanto à música sacra da igreja católica, entende-se como tradicional a anterior ao movimento Vaticano II, entendidos como os cantos que Gelineau classifica como da liturgia, sendo, preferencialmente,os cantos gregorianos.

A música sacra contemporânea está apenas parcialmente ligada à estética musical do século XX. É principalmente a que utiliza novos conceitos de ritmo, de harmonia e melodia, mas de uma forma menos “arrojada” do que a não sacra, pois seus padrões não rompem totalmente com a tonalidade maior e menor do sistema modal, nem aderem ao sistema de música serial ou aleatória ou a qualquer das novas técnicas composicionais do século XX. Ela varia bastante de acordo com os diversos segmentos cristãos. Para um determinado tipo de igreja, sua principal característica é o uso da eletrônica e da percussão. Para outros, a substituição do órgão ou do piano por qualquer outro instrumento (como o violão e instrumentos de sopro e de percussão) indica haver uma tendência de contemporaneidade. As igrejas pentecostais dão destaque às improvisações individuais durante seus cultos. Nessas igrejas e em outras protestantes sem um rígido padrão litúrgico, a forma de apresentação da música sacra contemporânea mais usual é a que imita os grupos musicais denominados seculares (de fora do âmbito da igreja), os quais se colocam no palco à frente da platéia com um líder para o canto. Em outras denominações, o fato de se usar cantos não pertencentes ao hinário oficial já será um marco suficientemente explícito de que ali os cantos não são apenas tradicionais. Porque existe uma grande e rápida mutação para o conceito do que é atual, a música sacra contemporânea no presente estudo será entendida como aquela que usa as seguintes características: nova concepção rítmica, com tendência para abraçar os ritmos autóctones (no Brasil; o samba, o baião, o sertanejo, a bossa-nova entre os mais usuais) e reforço na pulsação através do uso da percussão; aceleração do andamento musical; harmonia não mais centrada nos encadeamentos óbvios da harmonia tradicional (como o encadeamento harmônico dos graus I, IV e V), melodia não quadrada, isto é, a que serve como veículo da métrica ditada pelo texto, que, atualmente, não vem necessariamente medido. Quanto ao verso, foge das rimas antigas mais usuais (como a abab ou aabb ou a abba), preferindo a rima livre. O texto dá destaque a temas relacionados com os interesses da atualidade. Nas denominações preocupadas com a teologia da libertação, os cantos falam de luta em favor dos pobres e oprimidos e convoca os cristãos a se engajarem na luta contra a opressão dos mais fortes. Existe preocupação com a unidade dos cristãos (influência do ecumenismo), por essa razão há cantos voltados para a fraternidade dos crentes. Nos segmentos carismáticos e evangelicais existe uma grande inclinação para os cânticos doxológicos e koinoníacos, grande parte de procedência americana. Quanto à forma de apresentação e veiculação há uma clara tendência de tomar as características da música secular. Qualquer tipo de instrumento musical é aceito como possível de ser usado como próprio à música sacra contemporânea, embora os mais adequados sejam os eletrônicos. Os cantos, cuja forma musical se identifica com a do passado, só serão considerados contemporâneos se a sua letra expressar conteúdo de problemas atuais (como os da teologia da libertação) ou se, mesmo contemplando assuntos pertinentes ao acervo cristão, sua linguagem está comprometida com o modernismo literário. Cantos do passado serão considerados contemporâneos se houver alterações melódicas, rítmicas ou harmônicas que modifiquem a versão original, revestindo-a das características modernas acima mencionadas.

O século XX apresenta uma diversidade de estilos e linguagens musicais como nunca ocorreu anteriormente em nenhum período da história da música. Muitas tendências até contraditórias aparecem simultaneamente, expressas em estilos e sistemas de composição ousados, como os que empregam materiais não – musicais. As características mais presentes podem ser catalogadas em dois tipos: as que perpetuam os procedimentos do romantismo e as que rejeitam as marcas desse período e buscam modificação. Estão arroladas no primeiro tipo as obras conhecidas como neo-românticas. No segundo bloco, acham-se as pós-românticas, as expressionistas, as impressionistas, as futuristas, as dadaístas, as dodecafônicas, as microtonais, algumas nacionalistas, passando à música eletrônica, à música conhecida como “pop” e ao jazz. A diferença entre os dois grupos está em que as obras do último bloco não respeitam mais o sistema tonal instituído desde o século XVI, com seus princípios harmônicos e cadenciais, sistema também conhecido como “tonalidade funcional”. Além disso, essas obras buscam uma experimentação que cria novos códigos ou ordena, de forma diferente, os antigos códigos musicais:

(…) o cromatismo; o uso ampliado e mais livre da dissonância; a consolidação da liberdade harmônica e melódica; a utilização das ideias harmônicas, melódicas e estruturais derivadas da música popular genuína e da primitiva música do Ocidente; o conceito de inter-relações estruturais entre várias partes de uma composição musical; a vasta expansão da técnica instrumental e do timbre; a nova liberdade, a complexidade e a independência de ritmo, de expressividades dinâmicas e de colorido total – todas essas ideias modernas mergulham fundamente suas raízes no último século [XX].

Dessas últimas características citadas, interessa particularmente ressaltar a tendência à música nacionalista, iniciada nas três primeiras décadas do século XX. As composições nesse estilo tendem a favorecer as expressões locais e nacionais, resultando em obras próximas à música folclórica e de temas populares. A música sacra cristã ocidental irá receber grande incentivo para ser expressa com essas características.

Ao lado das maneiras mais evidenciáveis de a música sacra poder ser expressa, que serão enfocadas a seguir, existiram outras tendências, mas nem por isso menos importantes. Entre elas, citem-se a continuação da “febre” por hinários e a multiplicação de suas publicações, que foi um movimento muito valorizado no século XIX. As publicações de hinários, quer denominacionais, quer ecumênicos, obtiveram grande impulso a partir dos anos 60 do presente século e expandiram-se nas décadas seguintes. Na década de 70 apareceram muitos hinários, alguns como suplementos, que eram de natureza experimental. Dentre os hinários dessa década, destacam-se o Laudamus, hinário da Federação Luterana Mundial, o Cantate Domino, editado pela Universidade de Oxford e tendo como editor-chefe o hinologista Erik Routley, o Hymn Book, das igrejas Anglicana e Unida do Canadá, The Book of Praise, da Igreja Presbiteriana do Canadá. Worship II foi editado em Chicago pela Igreja Católica Romana. Na ala evangelical, surgiram também inúmeras publicações voltadas para os jovens, para serem usadas em acampamentos e em reuniões mais informais. Na década de 80 ocorreu uma maior proliferação de hinários, principalmente os que representavam o esforço de várias denominações em conjunto. Essa tendência deveu-se em parte ao trabalho de George Shoney, editor principal da Companhia de Impressão Hope, nos Estados Unidos, fato que se tem estendido aos anos 90.

Existiu ainda a tendência de se escrever para a igreja usando as mesmas técnicas e os recursos dos compositores seculares. A música passou a ser considerada indispensável na função litúrgica de proclamar o evangelho e de adoração a Deus. Compositores alemães, como Johann David (1895-1977), Ernst Pepping (1901-1981) e Hugo Distler (1908-1942), começaram a escrever música sacra usando as recentes técnicas usadas na música erudita:

These composers allowed the natural rhythm and contour of dramatic speech to shape the musical lines, not the other way about. In this respect they share common ground with the most outstanding opera composers of their time such as Debussy, Janácek and Britten, but the inspirations still springs from Lutheran music of the past.

O hábito de levar para os palcos a música sacra, que havia sido norma por mais de 300 anos, no século XX não logrou êxito ou foi pouco praticada. Entre aqueles que empreenderam esforços nesse sentido está O. Messiaen, que levou a música para fora dos muros da igreja católica, usando música concertista de cunho religioso, como as suas duas obras Trois Petites Liturgies de la Présence Divine e La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus Christ. O inglês Edward Elgar (1857-1934) musicou o poema do Cardeal Newman The Dream of Gerontius. Alguns compositores mais novos estavam colocando as novas técnicas composicionais em obras corais. Arthur Honegger (1892-1956), suíço, compôs vários oratórios euma cantata de natal. Igor Stravinski (1882-1971), russo, mas expatriado para outros centros europeus e, por fim, para os EUA, fez música com textos litúrgicos da Igreja Eslava, escreveu a Sinfonia dos Salmos e, mais tarde, em 1948, escreveria Missa para Coro e Dez Instrumentos de Sopro. Na década de 60, Benjamin Britten compôs Réquiem da Guerra, como uma reação contrária à Segunda Guerra Mundial, e três peças de concerto, que também poderiam ser apresentadas em igrejas: Rio Curlew, A Fornalha Ardente e O Filho Pródigo. Depois da Segunda Guerra Mundial, a música na Alemanha reagiu à supressão das artes ordenada pelo TerceiroReich de maneira surpreendente. Muitos compositores começaram a compor utilizando as técnicas de Béla Bartók (1881-1945), Paul Hindemith (1895-1963) e Arnold Schoenberg (1874-1951). K. Stockhausen (1928- ) escreveu Gesang der Jünglinge, baseando-se no cântico Benedicite, entoado por Sadraque, Mesaque e Abdenego, ao serem lançados na fornalha por Nabucodonosor. A primeira apresentação dessa obra teve lugar na Catedral de Colônia, na Alemanha, mas não recebeu aprovação das autoridades, que não puderam suportar a “ousadia” da técnica de gravação ali utilizada.

Foi na Alemanha que teve início o movimento de renovação da construção de órgãos, cuja ênfase passava a ser a habilidade profissional em produzir órgãos que refletissem clareza e qualidade timbrísticas próprias para o instrumento, requisito já apregoado na época anterior ao romantismo. Esse entusiasmo determinou mudanças no repertório da música sacra, exigindo cada vez mais uma qualidade melhor de música congregacional e habilidade profissional para a execução das peças. Nesse sentido, foi valiosa a contribuição de dois hinários, The Yattendon Hymnal e The English Hymnal, o primeiro de 1899 e o segundo de 1906, que estabeleceram parâmetros de excelência, com material de diversas fontes e caráter interdenominacional.

A disseminação da música cristã contemporânea tem-se efetuado de maneira vertiginosamente rápida em virtude da existência de computadores. Um computador pessoal tem condições de armazenar organizadamente grandes volumes de dados. Hoje é possível ter em um computador a representação de uma música em vários formatos, como partituras e performances gravadas ao vivo. Um dos meios criados para representação e troca de dados entre instrumentos eletrônicos é a interface MIDI. Através da interface MIDI, sintetizadores e computadores trocam informações de timbre, intensidade, altura e duração de notas em tempo real. O som requer muito espaço de armazenamento e, até há bem pouco tempo, não existiam meios físicos economicamente viáveis de representação de dados. O CD-ROM é um dos meios que veio preencher esta necessidade, tendo-se popularizado devido ao seu baixo custo e grande capacidade de armazenamento. Para se ter uma ideia, um CD-ROM pode ter vídeos de concertos ao vivo ou letras de músicas.

A Internet também contribui para a facilidade de propagação de dados e informações. Ela contém hoje um grande acervo de informações referentes à música, acessível a qualquer pessoa, independentemente de sua localização geográfica, constituindo-se, em grande parte, um serviço gratuito. A Internet dispõe de inúmeros serviços, como grupos de discussão, pesquisas bibliográficas, conferências e bancos de dados, que, embora existissem há algum tempo, só foram abertos à área comercial quatro anos atrás.

Quanto às possibilidades de expressão da música sacra em igrejas ocidentais no presente século, serão destacadas em especial três formas, a saber, a música da linha evangelical (majoritariamente herança da chamada gospel song) e a música gospel; a música “pop” e a música escrita nos estilos nacionais, próxima da folclórica; e a tendência ao reexame das tradições, esta em grande parte fruto dos movimentos de restauração da liturgia e de centros ecumênicos.

5.2.2 – Música da linha evangelical

Nos círculos protestantes, principalmente nas igrejas não-litúrgicas, na década de 20, iniciou-se nos Estados Unidos da América a era do gospel song no rádio, que seria, 25 anos depois, seguida pela televisão. Esse tipo de canção, mais tida como “música especial”, não congregacional, pois era principalmente para solos, duetos, trios, quartetos e pequenos conjuntos, iria ser transplantada para os países evangelizados pelos americanos. Na década de 40, o evangelismo nessas igrejas estava principalmente relacionado a Youth for Christ (YFC), que mais uma vez reteve a tradição gospel das reuniões avivalistas. A era do evangelista Billy Graham iniciou-se também sob os auspícios da YFC no ano de 1949, tendo como diretor musical Cliff Barrows, que utilizou repertório da tradição avivalista do século anterior, comprovadamente eficaz para esse propósito:

Dr. Graham evidently purposes to be conservative- fresh and appealing, but shunning the sensational and overemotional. Consequently Barrows has used materials that have been already proven to be widely popular, choosing them from the compositions of Ira Sankey, Fanny Crosby, Charles H. Gabriel, Haldor Lillenas, Merril Dunlop, John Peterson, and finally, Bill Gaither.

As igrejas protestantes não-litúrgicas mostraram-se mais resistentes a mudanças e muitas têm, até hoje, conservado principalmente a tradição da hinodia romântica:

Evangelical groups have retained more ninetenth-century-style church music than any religious group. Few have been brave enough to say, despite their earlier associations, “I would like to see what this new musical style can accomplish”. Nearly always the response, “I don’t like it”, indicates a psychological resistance to music which is unfamiliar; the unfamiliar is usually disturbing.

No Brasil, esse tipo de música foi “transplantado”, quer nos meios protestantes históricos, pentecostais ou neopentecostais, através das igrejas de missões americanas. Esse resultado é facilmente verificável, se se analisam os hinos dos hinários oficiais das principais denominações protestantes ainda em vigência no Brasil. A maior parte deles enfatiza mais os assuntos escatológicos e a piedade individual. Revelam com isso uma completa alienação em relação aos assuntos do cotidiano e esquivam-se de falar sobre as preocupações do povo, que sofre social e politicamente grande descaso.

Além da defasagem de conteúdo, existe outra tendência rondando a hinodia protestante cantada no Brasil. Com exceção das tradicionalmente litúrgicas, a luterana da IECLB e a episcopal, as demais igrejas históricas protestantes estão abandonando seus hinários tradicionais e adotando os corinhos das igrejas carismáticas. Existe, portanto, um sério risco de banimento da tradição do uso de hinários. Ao classificar os tipos de música usados nas igrejas, João Faustini colocou os corinhos dentro da “canção evangelística”, por entender que provêm das reuniões de avivamento, como a de Moody e Sankey, por serem informais e mais apreciados pelas “massas”. A palavra “corinho” não está dicionarizada e parece ser o diminutivo de “coro”. As igrejas protestantes receberam esse tipo de música através da influência norte-americana, iniciada na década de 50 e intensificada nos anos 60 e 70, por missionários americanos vindos ao país especialmente para os acampamentos jovens. O termo “música gospel” vem dos Estados Unidos e se refere àquela produzida a partir dos anos 60, que usa “novo som”, apresentado por corais de todas as idades, solistas e pequenos conjuntos corais, muitas vezes acompanhados de play-backs. Desse movimento resultaram muitas cantatas “testemunho”. No Brasil, o modismo dos corinhos de cunho doxológico foi disseminado principalmente, no início, pelo grupo paulista “Vencedores por Cristo”, que gravou o disco “Louvor I”, seguido de outros da mesma série. Na década de 80, os cânticos doxológicos predominaram graças à divulgação da mídia e ao crescimento dos carismáticos no Brasil. Ainda na presente década, esses são os cantos dos cancioneiros mais vendidos nas alas evangelicais no país, o que pode ser constatado em qualquer livraria evangélica de qualquer cidade brasileira. A música gospel multiplicou-se e os neopentecostais hoje, no Brasil, têm-se apropriado dela. Três jovens brasileiros ligados à música gospel, consultados através da Internet, deram algumas características atuais desse tipo de música cristã. Segundo eles, falar sobre música gospel é o mesmo que falar de música evangélica atual. O termo foi escolhido por uma questão de marketing e oferece múltiplas interpretações, tendo de ser interpretado dentro de um contexto de comércio, com muito interesse financeiro em jogo. Um dos entrevistados sumariou as principais características dessa música assim: texto atual, com muitas letras “urbanizadas”; busca uma linguagem secular para alcançar os não-conversos e evita recorrer ao discurso conversionista, abolindo os chavões dos crentes; criou expressões próprias e “marqueteiras”, como J. C. (para Jesus Cristo), ou brother Jesus (irmão Jesus); sua “teologia” é “antitradicional” e interdenominacional.

5.2.3 – Música “pop” e estilo folclórico popular

A igreja cristã no mundo ocidental recebeu influência dos diversos gêneros musicais que acabavam de ser concebidos no presente século, e a reação a esses novos postulados musicais era altamente facciosa. Os contrários às novas tendências, em geral, levavam em consideração pontos de vista embasados em formulações morais, muitas delas em razão da conexão com a vida desregrada de alguns dos músicos “pop”. De qualquer forma, nos anos 50, a música “pop” e o estilo folclórico popular começaram a ser introduzidos nas igrejas. Um dos objetivos mais diretos era a contextualização do evangelho, levando-o ao nível daquela linguagem aceita pela juventude:

The church is now being confronted by many forms of music which seem alien to its long-standing traditions. There are advocates of jazz, of “pop” music, of eletronic music, of twelve-tone music, and there is no telling what the next suggestion may be. (…) When we talk of alien music nowadays in reasonably cultivated church circles we mean jazz, pop, eletronics, and twelve-tone.

It was thought that employement of vernacular musical idioms would provide a quick and easy method for evangelizing and attracting the young to the church.

Entre os primeiros exemplos de música com essa finalidade, acha-se a “Missa Popular do Século XX”, de Geoffrey Beaumont. A obra foi escrita a pedido de um vigário de Londres, que estava preocupado porque nada novo, segundo ele próprio, havia sido criado desde a era elizabetana que pudesse ser denominado de “adequado ao povo”. O título “Popular” (“Folk”, em inglês) significava que a música usada equivalia à música cotidiana popular. Beaumont quis colocar a igreja em contato com as pessoas “normais” do presente século. A estrutura composicional da missa é simples: a parte que a congregação canta é feita através de um “ditado”, cuja frase é cantada por um solista, sendo imediatamente repetida pela congregação. O padre apresenta a sua parte com música conhecida de Marbecke. A obra foi planejada assim para que pudesse ser apresentada sem ensaio.

Nos Estados Unidos, a primeira publicação que saiu, no estilo da Missa Popular de Beaumont, foi Rejoice, de Herbert G. Draesel, em 1964, que propagaria o uso de guitarras elétricas e bateria nos cultos. Muitas outras publicações seguiram-se nos círculos católico e protestante. Nas igrejas evangelicais, ficou famosa a obra Celebrate Life, de Buryl Red, que se somou às composições de Ralph Carmichael. O estilo de música desse tipo, também conhecida como música de “testemunho”, acabou vingando com a ajuda dos equipamentos eletrônicos que estavam sendo admitidos nos cultos e mais os movimentos evangelísticos noscentros universitários. Também ajudaram a divulgá-la os editores que viram nela uma grande oportunidade de expansão de seu comércio. Foi ainda na década de 60 que os musicais Godspell e Jesus Christ Superstar apareceram com grande popularidade. Esse tipo de música logo foi transportada para os cultos cristãos, principalmente pela juventude. A mídia muito colaborou nessa transferência, reproduzindo com freqüência essas canções nas rádios, televisões, e em discos e fitas cassete. Os estilos gospel folk e gospel rock começaram a aparecer sobretudo nas igrejas mais liberais, contudo as igrejas tradicionalmente evangélicas reagiram fortemente contrárias a essas inclinações, tidas por elas como “mundanas”, uma vez que copiavam as tendências da música secular do momento. Não demorou muito para que esses mesmos segmentos entendessem a necessidade de a juventude se expressar através de baterias e guitarras, ainda que muitas igrejas só permitissem essa participação fora do santuário principal de culto, em salas adjacentes.

Nas décadas de 50 e 60, sob a influência dos Beatles e da obrade Geoffrey Beaumont, despontaram compositores e grupos do chamado gospel folk, ou gospel rock na Inglaterra, também conhecidos como 20th Century Church Light Music Group, entre os quais destacaram-se Patrick Appleford, com Mass of Five Melodies, e John Alldis, com Festival Te Deum. Muitos hinários da década de 60 publicaram música nesse estilo, que acabou por revolucionar a música vigente nas igrejas, contextualizando uma linguagem que estava sendo disseminada rapidamente nos círculos não-eclesiásticos, graças à moderna tecnologia de comunicação. O próprio Grupo editou os hinários Thirty 20th Century Hymn Tunes e More 20th Century Hymns Tunes, os quais abarcam os mais variados estilos musicais, como o que introduz acompanhamentos “pop” para as melodias convencionais no estilo das usadas para as escolas dominicais do século anterior. A filosofia de ação desse Grupo atesta o espírito do que se denominou de “O novo pietismo”. Essa tendência valorizava tanto as obras tradicionais quanto as contemporâneas, dando ao culto um sentido festivo, que acabou traduzido pela palavra “celebração”. Esse tipo de culto apela à participação coletiva através de formas e expressões gestuais na música e no drama. A linguagem caracteriza-se por ser mais pessoal em toda a liturgia, inclusive com o uso de linguagem atualizada da Bíblia. Nas comunidades com essas características, é costume dar grande ênfase à comunhão (koinonia) entre os crentes. O Grupo tinha o intuito de transmitir o evangelho numa linguagem acessível aos jovens dentro e fora da igreja. Os hinários Youth Praise I, Youth Praise II, de 1966 e 1969, editados em Londres, e ainda o Psalm Praise, editado em 1973, em Chicago, representam a tentativa de oferecer à juventude cantos sacros no estilo vigente no âmbito secular. Para exemplificar o tipo de linguagem usado nesse tipo de hinário, observe-se, no hinário Rhythm in Religion, de 1960, o canto a seguir que trabalha o sentido religioso da palavra Rock (rocha = Jesus) com o significado secular da palavra como “ritmo musical dos anos 50”:

Medium Rock tempo

You’ve got a Rock to scare your blues away,
You’ve got a Rock to turn your night to day,
You’ve got a Rock that will not roll away,
It’s true –

You’ve got a Rock, there’s no denying it,
You’ve got a Rock, you can rely on it,
You’ve got a Rock, and I’m applying it
To you –

You may be low and feeling lost
But you don’t have to count the cost,
You may not know just where to turn,
Then you’ve got one thing
To learn –

You’ve got the strongest Rock that’s ever been,
You’ve got a Rock and on it you can lean,
You’ve got a Rock, for that’s what Christ can mean
To you…

Em termos amplos, como tendência internacional, os anos 70 foram ainda mais produtivos para a música “pop”, principalmente em razão da expansão das igrejas carismáticas ou neopentecostais. Alguns compositores de música sacra surgiam das fileiras das próprias comunidades, o que tornava o movimento mais peculiar, diferindo dos movimentos anteriores de aproximação com o povo, encabeçados por líderes denominacionais. Esses cantos, embora muito semelhantes aos da música contemporânea secular, enfatizavam a contemplação e a simbologia. Por causa da influência carismática, a música escrita para a igreja “fugiu” das mãos dos profissionais e se colocou ao alcance de todos.

Na Igreja Católica Romana, o documento Musicam Sacram (MS), embora severo quanto às normas de execução musical, é farto em indicações da valorização da participação do povo no culto e do respeito pela tradição musical de cada povo. A inclinação pelas manifestações locais denotou uma preocupação de caráter contextualizador. Tornou-se também conhecido o documento norte-americano Liturgical Music Today (LMT), principalmente por sua contribuição à tradição popular. Os seus artigos 54 e 55 lembram a importância do cultivo da “herança cultural”, ressaltando a necessidade de adaptar o canto à diversidade existente na sociedade:

Just as the great liturgical music of the past is to be remembered, cherished and used, so also the rich diversity of the cultural heritage of the many peoples of our country today must be recognized, fostered and celebrated. (…) Liturgical music today must be as diverse and multi-cultural as the members of the assembly. Pastors and musicians must encourage not only the use of traditional music of other languages, but also the composition of new liturgical music, appropriate to various cultures.

No Brasil, as adaptações das características da música aos cantos sacros, principalmente aos gêneros populares, deveriam ser testadas “por uma coletividade, não se admitindo para uso litúrgico melodias que já revestiram outros textos profanos”. Os vários congressos projetados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e levados a cabo pelo comitê de “Música e Liturgia” da Igreja Católica Romana no país vieram determinar as normas a serem seguidas por todos os que exercem funções pastorais – musicais nas diversas paróquias brasileiras.

5.2.4 – Música de movimentos de reexame de tradição

O século XX produziu movimentos para o reexame das tradições litúrgicas e, conseqüentemente, da música. Essa renovação surgiu em diversos lugares, mas tomou vulto principalmente nas igrejas evangélicas alemães, que passaram a valorizar a liturgia como elemento central da vida eclesial: “In Germany, as elsewhere, the renewal of the church music had its corollary in the new awareness and appreciation of the role of the liturgy as the central core of the life of the church”. As igrejas inclinadas à renovação de sua liturgia também queriam um culto mais participativo, tanto que restauraram a Eucaristia como parte vital do culto e puseram-se a fazer os Ofícios Diários (as Matinas e as Vésperas). Também retornaram ao ciclo anual, com lecionário e com um calendário determinando os dias santos e as festas. Todas essas práticas motivaram o surgimento de um novo repertório de música sacra. O movimento ficou conhecido como “Movimento Litúrgico” e as igrejas litúrgicas protestantes que aderiram a ele mais do que nunca passaram a considerar a música sem fundamentação litúrgica como “inadequada”, fosse ela congregacional, instrumental ou coral. A “inovação”, portanto, consistiu em trazer de volta o interesse pelas práticas antigas de ênfase à tradição litúrgica. Esse “Movimento Litúrgico” foi assim descrito: “That is the label given to efforts across the breadth of the Western church to restore full and vital corporate worship that centers in a eucharistic celebration where Sermon and Supper coexist in complementary fashion”. As raízes desse movimento podem ser encontradas no século XIX com suas investidas para oferecer um culto corporativo, em que tanto a liturgia da palavra quanto a da Eucaristia eram priorizadas. Na Igreja Anglicana, o movimento havia sido iniciado por John Keble e John Newman, líderes do Movimento de Oxford, e continuado mais tarde por A. G. Hebert e pelo historiador Gregory Dix. Outros que buscaram fomentar o movimento de valorização da liturgia foram Edward Ratcliff, de Cambridge, e Massey Shepherd Jr.. A Igreja Luterana também foi influenciada pelo movimento de preservação litúrgica e seu grande entusiasta, no século XIX, havia sido Wilhelm Loehe, com muitos seguidores. Essas pessoas queriam mostrar que havia uma história eclesiástica expressiva e significativa a ser preservada na liturgia.

No seio da Igreja Católica Romana, estudiosos como Prosper Guéranger, Odo Casel, Romano Guardini e J. A. Jungman deram o máximo de si mesmos para que a reforma litúrgica fosse concretizada. O ponto culminante desses esforços veio com a promulgação da SC pelo Concílio Vaticano II, em 1963. O documento Musicam Sacram (MS), de 5 de março de 1967, viria esclarecer a forma como a igreja iria lidar com a tensão entre tradição e contemporaneidade nos cantos. O documento foi importantíssimo para efetivar o apreço dos católicos romanos por sua tradição. O Motu Proprio de 1903, do papa Pio X, havia redefinido a função da música no culto, permitindo o canto polifônico coral ao lado do canto gregoriano e proibindo o estilo musical das óperas, que era o legado do século que mal acabava de existir. O edito foi confirmado pelo papa Pio XII, na encíclica Mediator Dei, de 1947, com a inovação de ter permitido o uso de música moderna vocal e instrumental. Foi somente a partir desse edito que a Igreja Católica abriu as portas para a música atual, embora alguns organistas franceses, como Louis Vierne (1870-1939) e Oliver Messiaen (1908-1992), já estivessem usando as novas técnicas composicionais, mesmo sob protestos de alguns que consideravam essa música imprópria para o culto.

Das tendências modernas, pode-se dizer que tanto as comunidades históricas protestantes como as carismáticas e a católica romana têm dado realce ao canto dos salmos, que nada mais é do que o resgate de algo bastante antigo. Joseph Gelineau foi o pioneiro, no século XX, da técnica do salmo em antífona. Os seus salmos são esquematizados em estrofe e refrão, de forma simples, com melodia e harmonia ligeiramente “avançadas”, ajustando-se bem ao acompanhamento instrumental. Mais recentemente, outros que escrevem salmos em antífonas são: da Igreja Católica Romana, James Quin, Jay Hunstiger e Howard Hughes; da Episcopal, George Black, Peter Hallock, Richard Proulx e Betty Pulkingham; da Metodista, Carlton Young, Jane Marshall; da Presbiteriana, Hal Hopson e da Luterana, Richard Hillert. As comunidades carismáticas também promoveram o retorno ao canto dos salmos e de trechos da Bíblia, em geral, para expressarem o “novo cântico”. Existem hoje, na América do Norte, e já se espalharam pelo mundo através dos canais modernos de comunicação, companhias inteiras destinadas à promoção, edição e gravação desse tipo de música. Entre outras, destacam-se: Maranatha! Music, Word e ainda Integrity’s Hosanna Music. Em terras britânicas, e já disseminadas por todo o mundo, encontram-se as composições de Graham Kendrick, cantor e guitarrista evangelista, presente nos hinários mais atuais. Embora sua música assemelhe-se à música usada pela mídia para comerciais, ele ainda consegue equilibrar sua produção usando muito das características musicais do século anterior, características que são facilmente evidenciadas nas cadências harmônicas usuais do tonalismo. Kendrick tem sido o elemento – chave do movimento iniciado em 1987, a Marcha para Jesus, que no ano de 1994 levou cerca de 12 milhões de pessoas às ruas de todo o mundo. Sua música tem servido a essa marcha e circula no meio protestante e carismático com grande aceitação.

No meio anglicano, Ralph Vaughan Williams (1874-1934) trouxe enorme contribuição à hinodia, não só com a edição de hinários atualizados, mas principalmente através de suas composições, como as coletâneas de salmos e cânticos de sua lavra. Trabalhou também dando novas feições aos hinos antigos. Herbert Howells (1892-1983) compôs Collegium Regale para o coro da capela real de Cambridge, misturando o caráter modal com as técnicas mais contemporâneas. Michael Tippet (1905 – 1998) e Benjamin Britten (1913-1976) escreveram peças bastante elaboradas, que exigem pessoas profissionalmente habilitadas para sua execução. Ao lado das novas composições, o movimento de restauração da música antiga e do canto gregoriano, fomentado desde o século XIX pelo Movimento de Oxford e, a partir de 1888, pela Sociedade de Canto Gregoriano e Música Medieval, continuou a existir no século XX. Muito cooperou nessa tarefa, em terras norte-americanas, o reverendo e pesquisador Charles Winfred Douglas (1867-1944). Foi Herman di Brandi, missionário americano, quem mais contribuiu no sentido de divulgar o canto gregoriano em terras brasileiras dentro da igreja episcopal. Essas primeiras experiências de valorização do gregoriano iniciaram-se no Seminário Teológico da Igreja Episcopal do Brasil, em Porto Alegre, e foram desenvolvidas, mais tarde, em São Paulo.

A interação entre Europa e América seria endossada pelo movimento ecumênico, que também ocasionou um novo impulso na renovação da música sacra, favorecendo, inclusive, a confecção de um só hinário por várias denominações. Algumas comunidades tornaram-se centros propagadores de música sacra. Nos Estados Unidos da América, uma das principais, a Found Trust, ajudou a despertar o interesse das pessoas pelo uso das artes no culto. A Igreja do Redentor, episcopal, sediada em Houston, no Texas, possui um ministério específico para o treinamento de pessoas na área da música sacra popular, denominado Fisherfolk. Na Escócia, a Comunidade de Iona foifundada em 1938 por George Mac-Leod para o treinamento de clérigos e para a reconstrução da Abadia de Iona, trabalho concluído em 1967. Atualmente é um centro ecumênico que colabora na expansão de música sacra popular, através dos programas que elabora para visitantes vindos de toda parte do mundo. Sua participação tem enfatizado o canto em vozes, sem acompanhamento. Em Londres, o St. Thomas More Centre, fundado em 1969, centro de cursos e de venda de livros, representa a ala da Igreja Católica Romana e sua influência tem atravessado as fronteiras geográficas e denominacionais. O centro ecumênico em Taizé, no sul da França, de caráter interdenominacional, tem sido responsável por atrair um número considerável de pessoas interessadas numa vivência cristã mais efetiva, principalmente jovens. A grande característica da música ali difundida tem sido a sua acessibilidade a pessoas das mais variadas nações, com as mais diversas línguas. No início, usavam os salmos do século XVI e de Joseph Gelineau. Jacques Berthier foi convidado a compor novos cantos. Atualmente, para que todos possam participar de maneira ativa dos cultos nessa comunidade, esses cantos usam material bem simples, mas de boa qualidade artística, e são estruturados em pequenas frases de melodias fáceis, que podem rapidamente ser memorizadas por todos. Para solucionar o problema da língua, optaram utilizar majoritariamente o latim nesses refrões, por ser língua neutra, desconhecida da maioria. As estrofes podem ser cantadas por solistas e pequenos grupos nas mais variadas línguas. A música feita em Taizé tem servido às mais diversas formas de reuniões cristãs, desde as pequenas, com acompanhamento de violão ou de teclado, até as grandes assembléias com orquestras.

Foi a partir dos anos 50 que, no Brasil, incentivada pela promulgação da Mediator Dei, a Igreja Católica Romana iniciou o cultivo do canto gregoriano através da fundação da “Escola Pio X” de canto gregoriano, da publicação da Revista Gregoriana e através das “Semanas Gregorianas” na cidade do Rio de Janeiro. Todas essas entidades e eventos tinham o objetivo de promover o canto gregoriano. Outras cidades também movimentaram-se para a difusão do canto gregoriano: em Recife e em João Pessoa fundaram-se escolas de música sacra. Em Belo Horizonte, grupos de canto gregoriano apresentaram-se na Semana de Liturgia. Em outros seminários espalhados pelo país os estudantes eram também treinados nessa arte. A encíclica Mediator Dei produziu, no Brasil, uma revalorização do movimento litúrgico, com realização de inúmeros encontros para a discussão de seus decretos.

5.3 – A música da Igreja Católica Romana posterior ao Concílio Vaticano II

5.3.1 – A música na liturgia católica posterior ao Concílio Vaticano II

Durante a primeira metade do século XX, a Igreja Católica Romana não mostrou abertura para o diálogo com outras denominações cristãs, pois acreditava que a resposta para o problema dessas divisões estaria resolvido no momento em que todas as igrejas cristãs se submetessem ao papa. Considerava-se a “Única Santa Igreja Católica”, constituindo-se as demais em “sociedades” e não em igrejas. A grande mudança só ocorreria com a ascensão de João XXIII ao papado em 1958. Sob seu comando foi instalado um “Concílio Ecumênico”, aqui entendido como a assembléia de todos os bispos da Igreja Católica Romana, cuja função principal era reestudar as doutrinas dessa igreja. Preocupado em abrir um diálogo com as demais igrejas cristãs, o papa João XXIII também fundou a “Secretaria para a Promoção da Unidade dos Cristãos”, tendo o Cardeal Agostinho Bea como primeiro presidente. O objetivo dessa entidade era manter as igrejas cristãs não-romanas informadas acerca do que estava ocorrendo no Concílio Ecumênico. Entre outubro de 1962 e dezembro de 1964, o Concílio reuniu-se em quatro sessões, sendo que as três últimas foram presididas pelo papa Paulo VI, pois João XXIII havia falecido em 1963. O documento oficial desse Concílio chamou-se “Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia” (SC). Foi votada pela última vez em 22 de novembro de 1963, na septuagésima terceira reunião geral e promulgada em 4 de dezembro desse mesmo ano. Um dos objetivos desse Concílio foi o de fornecer a doutrina básica e os princípios que inspirariam, a partir de então, todos os documentos litúrgicos, tendo a atenção voltada para a adaptação da igreja aos tempos modernos. Essa meta foi claramente definida no primeiro artigo da Introdução:

O sagrado Concílio, – que se propõe fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às exigências do nosso tempo aquelas instituições que são suscetíveis de mudanças, favorecer tudo o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja, – julga sua obrigação ocupar-se de modo particular também da reforma e do incremento da Liturgia.

Entre as mudanças apontadas arrolam-se: o uso da língua vernácula em lugar do latim, a ministração da Eucaristia com pão e vinho, substituindo a antiga maneira que usava apenas o pão consagrado, a concepção mais abrangente da participação ativa da congregação em todas as celebrações litúrgicas, o que incluía, além da postura física e dos gestos, a participação do povo nas orações, aclamações e demais partes da missa. Para que os emergentes livros litúrgicos fossem bem implementados, o SC propôs que fossem organizados centros litúrgicos nacionais bem como comissões litúrgicas nas dioceses. Essas entidades reuniriam peritos em liturgia, música e artes em geral. A reforma também daria ênfase às adaptações dos ritos e da liturgia à cultura e às tradições populares, mas preservaria os elementos que dão unidade ao Rito Romano.

No artigo 116 o canto gregoriano é reconhecido como sendo “o canto próprio da liturgia romana”, ocupando “o primeiro lugar entre seus similares”, sendo os demais gêneros musicais bem aceitos se se coadunarem com “o espírito da ação litúrgica”. Nos artigos 117 a 120 reconhece o canto popular religioso e pede que seja “inteligentemente incentivado”, estimula a criação de música própria da tradição de cada povo, vê o órgão de tubos como “instrumento musical tradicional (…) cujo som é capaz de trazer às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus e para as coisas divinas”, admitindo o uso de outros instrumentos musicais desde que eles “sejam adequados ao uso sacro, ou possam a ele se adaptar”. Por fim, no artigo 121, conclama os compositores a cultivarem a música sacra, ressalvando que ela deve ter “características da verdadeira Música sacra” e ainda favorecer “uma ativa participação de toda a assembléia dos fiéis”.

Esse documento veio revalidar o Motu Proprio do papa Pio X, datado de 1903, ao destacar a música como parte integrante da liturgia. Se a Igreja Católica Romana queria realmente adaptar-se aos tempos modernos, parece que o texto da SC em relação à música sacra mostrou-se mais conservador do que progressista ao reiterar o canto gregoriano como o “canto próprio da Liturgia romana” (artigo 116), inclusive com o incentivo de se complementar a publicação de livros com canto gregoriano que haviam sido negligenciados desde Pio X. Uma das inovações desse texto ficou por conta do estímulo dado ao canto popular e às expressões locais da tradição popular, principalmente nas áreas das missões, onde o missionário deveria “promover a música tradicional dos nativos tanto nas escolas, como nos atos sacros” (artigo 119). Mas o ato inovador por excelência do documento SC foi a admissão da língua vernácula na missa (artigo 36). Ao enfatizar o caráter participativo dos fiéis, a reforma litúrgica proposta pelo Concílio Vaticano II oportunizou flexibilidade no uso da tradição e da contemporaneidade nos cultos. Da tradição, a reforma conservou todos os momentos existentes do canto dentro do rito, mas permitiu certas omissões. Quanto ao canto contemporâneo, mesmo quando na vida secular o canto coletivo caía em desuso, o estímulo a esse canto ia sendo revigorado na comunidade sacra, principalmente graças aos meios de comunicação sonoros, cada vez mais acessíveis.

Após a promulgação da SC, surgiram vários documentos e decretos que elucidaram, com mais detalhes, o papel da música sacra na liturgia. Um dos mais antigos e importantes foi o Musicam Sacram (MS), de 5 de março de 1967, onde se definiram com mais clareza certos termos e expressões da SC. Mais uma vez, no MS foi reiterado o valor das escolas de música para a promoção de composições novas, contudo o documento não se esqueceu de recomendar “peças do repertório de Música Sacra, escritas em séculos passados [grifo da autora] para textos em Latim” (artigo 51 da MS). Nas missas em latim, o canto gregoriano segue tendo a primazia (artigo 50). Aliás, o estudo do canto gregoriano também deve merecer cuidadosa atenção em todos os seminários e institutos onde há escolas de música (artigo 52). Ao realizarem traduções do texto latino para a língua vernácula, faz-se necessário manter “a índole e as leis de cada idioma” (artigo 54). O documento MS, no seu artigo 53, dá as normas quanto ao uso dos cantos tradicionais e dos contemporâneos. A música tradicional deve estar de acordo com a “Liturgia restaurada” e “as novas obras de Música Sacra” só são válidas se conformadas “aos princípios e normas expostos”. O documento segue dando orientações: o órgão de tubos continua a ser o “instrumento tradicional de música”, contudo outros instrumentos podem ser admitidos, “quer acompanhando o canto, quer tocando sozinhos” (artigo 62). Os instrumentos que “só convêm à música profana” (artigo 63) deverão ser afastados do culto. Um alerta é dado para que o volume do som desses instrumentos não encubra o texto ou empane a compreensão dele (artigo 64). Outrossim, o solo dos instrumentos não será admitido “no tempo do Advento, da Quaresma, no Tríduo Sacro e nos Ofícios e Missas de defuntos” (artigo 66). Enfim, o documento é claro quanto à manutenção da tradição no canto sacro, pois considera que essa tradição “deu à Igreja um verdadeiro tesouro para o culto divino” (artigo 59). Ao mesmo tempo, considera imperioso adequar o canto às “novas leis e necessidades da sagrada liturgia” (artigo 59).

Em toda parte surgiram movimentos para dar suporte à contextualização das normas da SC. Nos Estados Unidos, o Comitê de Liturgia dos Bispos redigiu um documento que se chamou The Place of Music in Eucharistic Celebrations em 1967, recomendado no ano seguinte para as igrejas norte-americanas. Em 1972 novo documento foi apresentado pela Federação das Comissões Litúrgicas das Dioceses, o Music in Catholic Worship, conhecido pela sigla MCW, cujos princípios foram imediatamente propagados a outros países e denominações. Esse documento expõe os critérios musical, litúrgico e pastoral a serem considerados na avaliação de um determinado elemento musical para a liturgia.

Dez anos depois, sentindo que o MCW merecia uma complementação, o mesmo comitê publicou o Liturgical Music Today, ou LMT, que veio preencher lacunas na área de música para a Eucaristia, para outros sacramentos, como o casamento, e para a Liturgia das Horas. O LMT contém cinco artigos que tratam da música tradicional e chega à conclusão de que é hora de reconsiderar o seu uso:

(…) singing and playing the music of the past is a way for Catholics to stay in touch with and preserve their rich heritage. A place can be found for this music, a place which does not conflict with the assembly’s role and the other demands of the rite.

Esse documento fala ainda da música contemporânea que utiliza o recurso do playback. Por ser gravada previamente, considera tal técnica imprópria para o culto, que deve ser “ao vivo” (artigos 60, 61 e 62). O documento não fala de nenhum outro tipo de música contemporânea, mas, nos seus dois últimos artigos, alude ao futuro através de palavras de incentivo para que a igreja avance na sua caminhada de renovação litúrgica e crescimento espiritual, citando as palavras de Agostinho: “You should sing as wayfarers do – sing but continue your journey. Do not be lazy, but sing to make your journey more enjoyable. Sing, but keep going”.

Como fruto de uma década de trabalho sobre a tradição musical católica norte-americana surgiu o documento Simpósios de Milwaukeepara Compositores Sacros: Relatório de uma Década (MSCC) em julho de 1992. O documento reforça a ideia de que é necessário definir uma teologia para a música cristã a fim de que se possam fazer as devidas adaptações da música tradicional às novas formas decorrentes da renovação litúrgica do Vaticano II (artigo 10). O MSCC aborda assuntos da atualidade, embora não se manifeste acerca dos diversos estilos musicais vigentes e tendências populares que estão sendo inseridos no culto cristão. O que ficou registrado acerca das novidades a serem admitidas, em função das normas do Vaticano II, é a sugestão de que essas escolhas sejam feitas com fundamentação teológica. O MSCC sugeriu que os salmos permanecessem sendo parte essencial da tradição litúrgica (artigo 51). O documento separa sete artigos (do 73 ao 80) que falam sobre tecnologia e música, assunto de alta importância para a música moderna. Reconhece que existe uma tensão quando a nova tecnologia é introduzida no culto, uma vez que ela não apenas expressa uma crença, mas sobretudo modela essa crença. Aconselha que a tecnologia não importune o desenrolar da ação litúrgica, antes seja um elemento auxiliador. Entende que o projetor de slides e as transparências apresentam vantagens e desvantagens: são meios econômicos, mas, mal usados, distraem a percepção visual da liturgia pela comunidade. Sugere que sejam usados na liturgia com as devidas cautelas. Comenta a respeito da memória digital dos instrumentos eletrônicos, que pode ajudar ou atrapalhar a liturgia, dependendo da ocasião e da maneira como é aplicada. A ênfase maior gira em torno de se ter música dinâmica e não mecânica:

Removing the human equation from the act of liturgical accompaniment certainly diminishes the dynamic quality of that event. As a general norm, therefore, prerecorded or digitally recorded accompaniments should be avoided.

No primeiro dia de de novembro de 1995, os católicos dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Irlanda publicaram a “Declaração de Snowbird sobre a Música Litúrgica Católica”, resultante de uma série de debates entre liturgistas e músicos católicos de fala inglesa. Ao tecerem comentários acerca do “belo” na liturgia, afirmaram não existir inconsistência entre os modelos tradicionais de excelência e os princípios pastorais da liturgia renovada. Segundo a declaração de Snowbird (SSCLM), quando se trata de encontrar o verdadeiro etos da música litúrgica católica, o melhor é ir buscá-lo na “music employed by countless generations of Catholic Christians”. Esse etos, entretanto, deve considerar novas maneiras de expressão para atender às mudanças e às exigências do mundo contemporâneo, sem, contudo, abandonar completamente as formas antigas da composição musical. Ao se referir aos hinos “tradicionais” da igreja católica, o documento afirma:

The tradition of Catholic hymnody stretches back to congregational office hymns of the early church; includes sequences of the medieval eucharistic liturgy which in effect were strophic hymns; and extends through vernacular medieval community hymn singing which was well-developed before the Reformation. The use of hymnody, already a feature of preconciliar eucharistic and devotional services, has continued to grow since the Second Vatican Council and deserves today stronger encouragement.

O item 22 da SSCLM contém instruções de como a música tradicional deve ser empregada no culto depois das reformas promulgadas pelo Vaticano II:

Pieces from the so-called treasury of sacred music must not be used in an unreformed, preconciliar manner, for reasons of mere nostalgic sentimentality or in any way at cross-purposes with the structure and pastoral intent of the renewed rites. Rather, the church’s heritage of sacred music (…) must be used with careful attention to the structure of the reformed liturgy, with a well-informed sense of how a rite unfolds, and with respect for pastoral needs and sensibilities.

Quanto à música moderna, pede para que sejam evitadas as tendências atuais que portem características de “entretenimento” ou com “etosterapêutico”: “Particular dangers inherent in the adoption of currently popular musical styles and idioms are sentimentality, consumerism, individualism, introversion and passivity”. O coro deve também renovar o seu papel na liturgia. Para atingir esse objetivo, o assunto deve ser refletido teologicamente. O documento julga imprescindível que os ambientes acústicos sejam cautelosamente estudados, pois uma boa acústica permitirá que tanto o canto quanto as partes faladas sejam valorizados.

5.3.2 – A música na liturgia católica brasileira posterior ao Vaticano II

O frei e pesquisador José Ariovaldo da Silva considera que, muito antes da promulgação das normas de renovação do Concílio Vaticano II, no Brasil, o “Movimento Litúrgico” já vinha trabalhando com a finalidade de renovar a liturgia dentro de um espírito cristão, o mais autêntico possível, levando em consideração que a participação por excelência do povo deveria ocorrer durante toda a missa, especialmente durante a Eucaristia: “os fiéis rezem a Missa, e não na Missa”. Esse movimento teria sido iniciado no Brasil em 1933, quando Dom Martinho Michler, beneditino alemão, aportou no Rio de Janeiro para lecionar liturgia. Logo o movimento espalhou-se por várias regiões brasileiras, ajudado por publicações sobre o sentido da liturgia. Levantaram-se algumas vozes contrárias, receosas de que esse movimento quisesse suprimir as expressões populares das devoções e instalar o que julgavam ser “liturgismo herético”.

Observando a missa 20 anos depois da SC, Jacques Trudel considerou que ela teria alcançado o objetivo proposto de acessibilidade popular, principalmente os cantos:

Sem dúvida nenhuma, é com os cantos populares e a música que a liturgia do Vaticano II conheceu o seu melhor êxito no Brasil. (…) O canto popular, [sic] devolveu a voz ao povo; a alma de nosso povo pôde se expressar na música, e o fez com entusiasmo. Timidamente, os instrumentos da terra vão entrando na celebração: atabaques, agogô, acordeão ao lado de violões, guitarra, ritmos tradicionais daqui vão também aos poucos encontrando o seu lugar. É aqui que se deu a maior aculturação da liturgia.

Acatando a instrução geral da SC em relação à música para o culto da Igreja Católica Romana, no Brasil foram efetuados encontros onde os músicos discutiram o panorama da música sacra no país. No II Encontro Nacional de Música Sacra promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizado entre 30 de junho e 7 de julho de 1966, em Vitória, no ES, os participantes estiveram concentrados em adaptar a música brasileira à liturgia. Fundamentados no requisito de uma participação ativa e consciente dos fiéis, chegaram à conclusão de que deveriam

(…) procurar, por pesquisas e estudos, as constâncias melódicas, polifônicas, rítmicas, formais e instrumentais da música brasileira, contribuindo para a criação de uma verdadeira arte sacra musical para a Igreja no Brasil.

Novos encontros sucederam-se a esse: em 1967 e em 1968, os músicos reuniram-se na antiga Guanabara, hoje cidade do Rio de Janeiro. No III Encontro, os debates giraram em torno da relação entre música e liturgia, agora mais voltados ao caráter artístico inerente à música e aos problemas decorrentes da não – observação das “grandes leis da celebração”.

No IV Encontro Nacional de Música Sacra da CNBB os participantes mais uma vez formularam as conclusões dos debates, dividindo-as em cinco tópicos: 1) a função ministerial da música na sagrada liturgia; 2) o coral litúrgico e sua função atual; 3) o órgão, outros instrumentos e suas funções atuais; 4) o povo participante na liturgia atual e 5) a tarefa do compositor sacro atual. O documento dá maior relevo à contemporaneidade do fazer musical que os anteriores.

Preocupados em definir as “constâncias” da música brasileira e em chegar a um consenso acerca de um “caráter nacional”, os participantes do II Encontro Nacional de Músicos da CNBB destacaram quais seriam as constâncias rítmicas, melódicas, harmônicas e polifônicas dessa música. A “constância harmônica” de se modular para o tom da subdominante, encontrada na música popular brasileira, foi tachada de caráter secundário, “pois, por si só, não empresta caráter nacional à obra”. O elemento polifônico foi o melhor descrito, abarcando quatro categorias: as terças caipiras, o baixo melódico do violão, o contraponto flautístico e o contracanto de alguns instrumentos das bandas. O documento desse encontro termina fornecendo os critérios de admissão dos instrumentos musicais no culto, dando destaque ao caráter sacro e/ou profano da música, que vai depender das “condições sócio-religiosas e culturais do povo em relação a tal ou qual instrumento”.

O documento do III Encontro registra a falta de entrosamento entre liturgistas e músicos ocorrida no passado, fato a ser evitado no futuro. Acerca dos textos, determina que deveriam ser “poeticamente bons”. Mais uma vez deu ênfase à necessidade de as expressões populares brasileiras serem valorizadas, inclusive com a criação do que chamou de “recitativo brasileiro”. Sobre as possibilidades instrumentais, estabeleceu princípios para o seu uso na igreja e convocou para a fomentação de centros de estudo da música, onde “sacerdotes, religiosos e seminaristas de talento” pudessem aprimorar seus conhecimentos musicais. Também destacou a necessidade de pesquisa na área do folclore “a fim de que a reforma da Música Sacra Instrumental se processe dentro do espírito de aculturação recomendado pelo Vaticano II”. Por fim, foram mencionados quatro tipos de instrumentos que deveriam merecer maior consideração, todos listados por causa de sua “tradição bíblica”: o órgão, o violão, as flautas e os metais. Quanto à tradição, esse último documento vê o canto do passado como material relevante para a criação do canto no presente, embora não forneça dados de como isso deva ocorrer. O critério pedagógico pôde ser averiguado na preocupação com a manutenção dos “valores do passado”: ao tecer considerações acerca da influência do Concílio Vaticano II sobre a música sacra, Guilherme Schubert fez um apelo no sentido de esses valores não serem abandonados. Ele havia observado que mesmo a geração mais nova estava sedenta de ouvir as peças musicais representativas de um período mais antigo, como o canto gregoriano e a polifonia clássica, os quais, mesmo modificados, haviam sido preservados na nova liturgia.

No IV Encontro, o relatório das resoluções ali estabelecidas considerou o coro “indispensável para uma celebração viva na liturgia renovada” e lhe atribuiu cinco funções ministeriais. Para o repertório do coro, o congresso sugeriu que fossem compostas “músicas funcionais”, mas ressaltou: “quanto ao repertório antigo e novo [grifo da autora] leve-se em conta o teor dos nn. 53b e 59 de MS”. Quanto aos instrumentos, os participantes manifestaram o desejo de que os “problemas pastorais-litúrgicos-musicais-instrumentais” fossem solucionados à luz da compreensão da integração com a liturgia e que o uso desses instrumentos no culto fosse “mais amplo e diferenciado”. Consideraram a participação do povo na liturgia originária de três exigências: do primado da Palavra, da vivência comunitária e da ação litúrgica. Aos compositores recomendaram a conjugação da tarefa artística com as exigências litúrgicas e a qualidade de serem capazes de aliar o preparo técnico com a sensibilidade à “alma do povo”. O documento finaliza levantando problemas da atualidade e, para alguns, empresta soluções. Para a criação de obras modernas que atendessem às “variadíssimas comunidades” lembra a diversidade que há na “música folclórica, popular, jovem, etc.”, contanto que “os verdadeiros critérios da música sacra” sejam observados e que as improvisações “sejam banidas”. Quanto ao texto e às traduções, acredita ser “um dos problemas mais graves”, sugerindo o uso de “maior flexibilidade, permitindo-se até mudanças de palavras que guardem o mesmo sentido”.

Quatorze anos depois do Vaticano II, a Comissão Nacional de Liturgia da CNBB formulou a “Pastoral da Música Litúrgica no Brasil”, onde fez uma avaliação da situação da música litúrgica no país. Constatou que a música tradicional continuava a ser apreciada pelas pessoas, principalmente “pela valorização dos cantos processionais, do salmo responsorial, das aclamações, ao lado dos tradicionais cantos do ordinário da Missa (especialmente o Senhor, o Santo e o Cordeiro)”. Considerou a retenção dos cantos da tradição um procedimento significativo para a educação e o ensino. Mais uma vez reforçou o convite à composição de peças sacras que possuíssem as características da música brasileira. O pedido foi acatado, tendo a comissão avaliado positivamente a maneira como os compositores responderam ao pedido de uma renovação musical: “Hoje o Brasil apresenta uma singular posição entre as nações, pelo desencadeamento de tal processo criativo”. Não deixou, entretanto, de indicar os pontos negativos da situação vigente: poucas pessoas habilitadas para a criação de música litúrgica, pouca contribuição dos leigos, falta de bons textos (“Hoje os poetas são mais escassos que os músicos”), os desvios resultantes da influência da mídia, “alheios ao espírito das ações litúrgicas”, uso inadequado de certos instrumentos musicais e a incompreensão do papel dos corais. O documento finaliza dando a “fundamentação litúrgica” para o canto, quando relembra alguns artigos dos documentos oficiais da igreja. Essas características tornam-se “ferramentas” muito eficazes na “aprendizagem” das verdades cristãs, porque são facilmente entendidas pelo povo brasileiro. Elas “falam” a mesma linguagem que o povo está acostumado a ouvir nas ruas, no trabalho, na escola, enfim, por todo lugar. No item 1.1.6 desse documento, lê-se o seguinte:

Nota-se o crescimento litúrgico das Comunidades pelo apreço à pastoral da música litúrgica, pela valorização dos cantos processionais, do salmo responsorial, das aclamações, ao lado dos tradicionais cantos do ordinário da missa (especialmente o “Senhor”, o “Santo” e o “Cordeiro”). O fato de se cantarem estas partes tem assumido um caráter educativo [grifo da autora], pois, na prática, os fiéis vão aos poucos entendendo a função de cada rito na celebração.

Os “Encontros” promovidos pela CNBB nos anos imediatamente posteriores à promulgação da SC ajudaram a estabelecer nacionalmente os critérios musicais que caracterizam a música brasileira. Uma das finalidades desses “Encontros” foi dar subsídios para que compositores nacionais de música sacra tivessem em mãos material relevante para a promoção e composição da música sacra brasileira. Essa música contemporânea, brasileira, contudo, deve estar em sintonia com as normas litúrgicas da SC, adequando-se às liturgias locais, mas sem ferir o “espírito” protagonizado em todos os documentos da Igreja Católica Romana.

Além do aspecto pedagógico encontrado na manutenção da tradição, é necessário que as pessoas estejam atentas mais do que nunca à realidade brasileira, reproduzida em maior ou menor proporção em toda a América Latina, que não pode ficar fora dos textos dos cantos entoados em solo brasileiro: trata-se de uma acentuada desigualdade social, razão por que se faz necessário optar por uma ação da igreja que se solidarize com os pobres e oprimidos. Além de organizar movimentos de luta contra a situação, a igreja pode e deve expressar nos cantos da sua liturgia esse contexto:

A Igreja precisa repensar a sua organização, avaliar a sua maneira de ser e agir, refletir sobre os critérios de santidade e caminhar para a celebração de uma liturgia libertadora. Precisa analisar o conteúdo e a mística de seus cantos frente à fome, ao desemprego, às injustiças, ao assassinato de agricultores, à violação sistemática dos direitos humanos. Como deverão ser os cantos de uma liturgia celebrada com os pobres, no meio dos pobres, na perspectiva da libertação dos pobres, convidados a ter voz e vez na Igreja, inclusive com o poder de decisão?

O próprio Swinski responde à pergunta que formulou na citação acima. A solução, na sua perspectiva, é que os pobres sejam sujeitos da história, sendo, para tanto, convocados a criar seus próprios cantos. Em razão disso, propõe que os compositores e poetas se engajem no movimento que se solidariza com os mais fracos. O estilo deve promover a participação dos fiéis “levando em conta a idade, as condições e tipos de vida, cultura e costumes religiosos” e a letra estar crivada das verdades da Palavra de Deus.

A inculturação foi um aspecto relevante para tornar os cantos mais próximos da linguagem compreendida pelo povo brasileiro. Indagado acerca de suas composições, o padre e compositor Geraldo Leite revelou que tenta reproduzir nos seus cantos aquilo que viveu na própria cultura, nas expressões populares:

O que eu faço aprendi nos terreiros de Umbanda, nos terreiros de Xangô, nos figueiros populares, nas danças populares… Perdi noites e noites nas brincadeiras do povo. Quando numa celebração eucarística eu danço o corpo, sinto que celebrei, dancei a missa. É a pessoa toda que está celebrando. Os cantos saem naturalmente. Às vezes vou improvisando na hora e o povo vai aprendendo no momento. Não é uma criatividade programada, é bem natural, espontânea. Eu aprendi isso com o povo.

Além de se ter misturado ao povo, Geraldo Leite considera o uso do tambor um fator importante quando se está falando de música brasileira. Na opinião dele, o tambor dá um toque “repetitivo”, que traduz bem o convite “repetitivo” que deve ser feito à comunidade para a celebração da liturgia. Também pode ser usado entre os versículos dos salmos cantados, sozinho: “O tambor foi o instrumento principal que levou a mim e o povo à verdadeira oração”.

O Hinário Litúrgico da CNBB (HL) veio depois de concretizada a tradução dos salmos e de publicada a “Liturgia das Horas”. O motivo que levou à demora da conclusão de tal tarefa pode ser atribuído ao grande empenho colocado nesses dois últimos trabalhos, por parte dos coordenadores de “Música e Liturgia” da CNBB, especialmente de José Weber. No encontro nacional de compositores e coordenadores de “Música e Liturgia”, realizado em 1984, foi iniciado o projeto de confecção do HL. Como primeiro passo, a comissão eleita elaborou um “Código de Critérios” que deveria guiá-la na seleção dos cantos. Esses critérios foram fornecidos para a letra e para a música. O comitê posicionou-se também em relação aos cantos de protesto, que estavam sendo cada vez mais utilizados nas liturgias e, sobre o assunto, achou por bem “falar da realidade humana e dos acontecimentos à luz da fé cristã”. Queria assim expressar que, se há lugar para protesto, há também para louvor e gratidão. Os próprios salmos expressam sentimentos diversos, que variam entre alegria, gratidão, pedido, arrependimento. Enfim, a comissão lembrou que, no culto cristão, há espaço para a demonstração das mais variadas emoções humanas. Esses sentimentos, sejam de pesar ou de alegria, têm vez no culto, sendo o canto um dos mais propícios elementos para essas expressões.

O mais recente documento sobre música, a “Pastoral da Música Litúrgica no Brasil”, de abril de 1997, foi formulado em Itaici, Indaiatuba, São Paulo. O texto em apreço ressalta as tentativas que a CNBB tem empreendido no sentido de avançar no processo de inculturação, mostra pontos negativos, mas sobretudo fala da necessidade de o canto possuir uma fundamentação litúrgica. Com esse objetivo em vista, a comissão de “Música e Liturgia” apresenta quatro formulações principais: a primeira, que o canto deve brotar “das profundezas do ser” (aqui o documento lembra o grito de júbilo, o de socorro, o de surpresa e o de resistência); o segundo item baseia-se na história da caminhada do povo de Deus e faz uma sinopse dessa história, começando no Antigo Testamento, indo ao Novo, aos Pais da Igreja, dá um salto para o Concílio Vaticano II e relembra o que já foi feito na América Latina em relação ao canto sacro; o terceiro ponto diz respeito à participação dos fiéis nas assembléias, e, mostrando a diversidade de pessoas que a compõem, destaca que o maior serviço de uma liturgia deve ser o de “servir à assembléia” (artigo 155); o quarto item está relacionado à natureza sacramental da música litúrgica, lembra a função ministerial da música, a primazia que o canto deve dar ao texto, contudo dá destaque à valorização das raízes indígenas, ibéricas e africanas do povo brasileiro. São realmente expressivas as orientações pastorais dadas nesse documento, direcionadas aos letristas e aos compositores, com lembretes funcionais. Para aqueles que presidem a celebração litúrgica, o documento contém artigos que explicitam as diversas funções (a do presidente, a do leitor, do animador de canto, do cantor, do regente, do coro e dos instrumentistas). Os artigos finais tratam com mais detalhes das manifestações folclóricas, classificando-as como cantos que resgatam a “coerência”, como faziam os cantos gregorianos cantados no dia e hora próprios. O artigo 288 coloca a questão do canto novo, destacando que “não seja a mera mania consumista de novidade”, mas que reflita a tradição de canto popular que existe nas manifestações folclóricas de um povo.

Mais uma vez é reiterado o pedido de que se observe o canto e sua função dentro da liturgia. Para o êxito dessa empreitada, os responsáveis sugerem que se busque respeitar as diversas partes da liturgia e o etosda missa católica romana.

5.4 – O culto e o canto em igrejas protestantes brasileiras

5.4.1 – A implantação do protestantismo no Brasil

O primeiro culto protestante em terras brasileiras ocorreu no Rio de Janeiro, em 10 de março de 1557, quando aportou nesta cidade uma comitiva calvinista enviada pela igreja de Genebra. Essa comitiva veio em resposta a um pedido do vice-almirante Nicolau Villegaignon. Os calvinistas tinham intenção de reconstruir, em terras coloniais, um cristianismo puro. Nesse culto, foi entoado o Salmo 5, na forma como estava notado no Saltério Huguenote, com metrificação de Clement Marot e melodia de Louis Bourgeois. Tendo arrefecido o seu ardor “protestante”, Villegaignon passou a perseguir os calvinistas, que, ameaçados, trataram de retornar ao seu país de origem. Três dos homens da comitiva, que não conseguiram retornar à França, seriam no ano seguinte mortos pelo próprio

Villegaignon; um seria poupado por ser o único alfaiate da colônia e o último morreria anos depois, também em martírio por causa de sua fé. Levaria cerca de 60 anos para que o canto protestante fosse outra vez reavivado.

Por ocasião da segunda invasão, em 1630, os holandeses estavam próximos à costa, mas ainda dentro do navio, quando o capelão celebrou um culto. Seguindo as práticas da Igreja Reformada, esse culto constou de sermão, hinos e oração. O cântico da ocasião foi o Salmo 140, também do Saltério Huguenote. Os holandeses trouxeram pastores que se fixaram em Pernambuco e que tinham, entre as suas funções pastorais, o dever de visitar os doentes, de ler a Bíblia para eles e orar, além de manter a catequese e a obra educativa. A obra protestante no Brasil foi enriquecida com a vinda de Maurício de Nassau em 1637, que governou por oito anos as terras nordestinas. Além de promotor das ciências e da cultura, Nassau foi construtor da cidade de Mauriciana, onde erigiu um templo protestante. Manteve a liberdade religiosa durante o seu governo e deu exemplo de convicção fervorosa, pois não faltava a nenhum dos cultos dominicais ali celebrados. Os calvinistas implantaram na colônia a organização eclesiástica segundo as normas da Igreja Reformada da Holanda. A disciplina era rígida e estipulava rigorosa observação da guarda do domingo, sendo proibidos o trabalho e a diversão nesse dia. Exigia-se silêncio perto dos locais onde houvesse culto. A hinodia utilizada era a mesma que vigorava na Holanda, ou seja, os corais de Lutero e os salmos de Calvino, cantados em vozes (mesmo contrariando as normas calvinistas do canto em uníssono), porque havia mais de um século que a Reforma havia irrompido e os modelos vigentes já apareciam nas publicações européias harmonizados para várias vozes. Houve outra tentativa de implantação do protestantismo no Maranhão, ainda durante a primeira década do século XVII, por ocasião da expedição de Rasily e La Ravardière. Pretendiam fundar ali a França Equinocial. A presença de um maior número de católicos fez calar a minoria protestante.

No século XVIII não houve atividade missionária evangélica no Brasil em virtude da dominação do Santo Ofício da Inquisição, cujo objetivo era extinguir judeus e protestantes, considerados hereges. Além disso, havia uma lei que restringia a vinda de estrangeiros para o Brasil, sendo admitidos apenas os que estavam a serviço da Coroa Portuguesa ou da Igreja.

No século XIX, os três países que maior vínculo tinham com o protestantismo brasileiro eram a Grã-Bretanha, a Alemanha e os Estados Unidos da América, países que colaboraram diretamente para o estabelecimento definitivo das igrejas evangélicas no Brasil. Só a partir da vinda de D. João VI ao Brasil é que foi possível a introdução do culto protestante no país, e isso ocorreu dois anos após a chegada do monarca e de sua corte, através do Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação, de 19 de fevereiro de 1810, o qual oferecia vantagens aos ingleses no comércio e o privilégio de poderem realizar seu culto anglicano. O documento, contudo, asseverava ser o país “católico apostólico romano” e o imperador “protetor da fé”, e ainda estipulava uma multa para os que estivessem reunidos em local de culto que tivesse a forma exterior de templo.

As primeiras pessoas de fala alemã vieram para Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em 1820, em resposta ao pacto que D. João VI havia estabelecido com a Confederação Suíça. Em maio de 1824, outra leva de alemães chegou à mesma região, formando uma colônia com 334 pessoas e seu pastor Friedrich Oswald Sauerbronn, os quais davam continuidade à política implantada por D. João de povoar o Brasil com agricultores europeus. Em julho do mesmo ano, 13 famílias fixaram residência no Vale do Sinos, no Rio Grande do Sul, que precisava ser desbravado. Foram seguidas por outras levas que chegaram nas províncias de São Paulo, Santa Catarina e Paraná, entre os anos de 1827 e 1830. Essas comunidades fundaram escolas e organizaram igrejas, mantendo a língua alemã, pois consideravam ser o idioma um elemento imprescindível para a manutenção da fé evangélica. Só bem mais tarde, em 1886, seria constituído o Sínodo Rio-Grandense.

Foram o escocês Dr. Robert Kalley e sua esposa (ele de procedência presbiteriana, ela congregacional) que lutaram para que a evangelização protestante fosse aceita em terras brasileiras. Alguns acontecimentos já vinham preparando o terreno para a permissão da evangelização no Brasil. Em 1828, a American Seaman’s Friends Society foi organizada tendo por finalidade possibilitar que os marinheiros americanos fossem assistidos espiritualmente nos portos por onde passavam no mundo inteiro. Com esse objetivo, vieram ao Brasil os missionários metodistas Spaulding e Kidder, que cuidaram dos marinheiros de 1838 a 1842. Em 1851, chegou ao Brasil James C. Fletcher, que não só atendia os marinheiros, mas também, por sua cultura e posição social, podia freqüentar o círculo social da corte. Tornou-se amigo pessoal de D. Pedro II. A liberdade total só viria em 1889 com a proclamação da República, objetivo conseguido à custa de muitos esforços e perseguição por parte das autoridades. Sarah P. Kalley e o esposo inauguraram uma classe dominical, em 1855, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, com cinco crianças e uma família inglesa. Duas semanas depois, o grupo seria aumentado com a presença de adultos, entre eles, pessoas negras. Foi nessa ocasião que, pela primeira vez, cantou-se em português.

5.4.2 – Fatores decisivos para a tradição não – litúrgica de igrejas protestantes no Brasil

Quanto à tradição de culto, as igrejas protestantes brasileiras podem ser classificadas em litúrgicas e não-litúrgicas. As primeiras têm uma ordem de culto preestabelecida, observam o ano litúrgico, com o uso do lecionário; a pregação da Palavra é importante, mas não suplanta os ritos. São consideradas litúrgicas as igrejas Luterana (a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, e missourianos, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil) e Anglicana (representada por um só grupo, a Igreja Episcopal do Brasil). As chamadas não-litúrgicas herdaram do pietismo, do puritanismo e do avivalismo um culto sem uma ordem oficializada, impregnado da ideia pietista de valorização do individual. As principais igrejas que podem ser arroladas como não-litúrgicas são a Presbiteriana (com diversos grupos, alguns conservadores, outros mais progressistas), a Metodista e a Batista (esta com muitos subgrupos, em geral conservadores e antiecumênicos). A aversão que essas igrejas têm pela tradição litúrgica pode ser explicada pelo temor de que os ritos e símbolos possam torná-las parecidas com a Católica Romana, à qual, com poucas exceções, devotam uma “sagrada” antipatia. Por conseguinte, o culto das igrejas não-litúrgicas dá proeminência ao púlpito, como lugar sagrado, ocupando o lugar do altar das litúrgicas, e ao sermão. As orações são espontâneas, os gestos só são prédeterminados na Ceia do Senhor, que em geral é colocada no fim do culto.

No início do processo de implantação do protestantismo no país, a grande extensão geográfica do Brasil foi um fator inibidor da rápida expansão das igrejas evangélicas, pois o número de missionários e pastores não era suficiente para cuidar das congregações. Uma das soluções encontradas foi o treinamento de leigos para exercerem funções pastorais e, sobretudo, evangelizadoras. O irlandês Edward Lane, formado nos Estados Unidos, fixou residência em Campinas. Sentindo a necessidade de cooperadores, treinou líderes leigos, os quais denominou de “leitores da Bíblia” e editou a revista mensal O Púlpito Evangélico, que possuía estudos bíblicos e sermões que poderiam ser lidos nos cultos dominicais. O missionário Ashbel Green Simonton também providenciou um Manual de Culto para pregadores leigos e ainda fez parte da comissão responsável pela publicação do Livro de Ordem para a Igreja Presbiteriana no Brasil. Seu Manual de Culto continha detalhadas explicações de todas as partes do culto e de como os líderes deveriam proceder. O pastor metodista J. J. Ransom também publicou, no ano de 1878, um livro de instruções para congregações onde não havia liderança pastoral. Nesse livro expôs com clareza cada parte do culto. Nesses primórdios da implantação do protestantismo no país, a história registra que o colportor Antônio Barbosa encontrou no interior da Paraíba um grupo de pessoas que havia se convertido com a leitura da Bíblia e que, possuindo um hinário sem música e nenhuma orientação, passou a cantar esses hinos com a música que conhecia da liturgia católica.

Para entender o culto protestante no Brasil, é mister reconhecer não só o papel dos leigos, mas também o das escolas dominicais. O movimento das escolas dominicais, que nascera na Inglaterra, despontava justamente quando o Brasil estava sendo catequizado pelos protestantes. Surgidas primeiramente nos cultos que se realizavam em ambientes domésticos, as escolas dominicais vieram ajudar na consolidação das futuras igrejas evangélicas que iam sendo fundadas. A escola dominical funcionava pela manhã e os cultos com pregação, destinados aos incrédulos, eram realizados à noite, nesse mesmo dia. Os pregadores leigos iam sendo treinados na escola dominical. Com a preocupação de evangelizar, o modelo de culto que vingou, nas igrejas com esse tipo de estrutura, foi o que se adaptou para servir cada vez mais ao zelo evangelístico. Essa organização cúltica, realizada no ambiente doméstico para não desacatar a lei, não favorecia o cuidado pastoral daqueles já professos na fé. Na década de 30 do presente século, existe registro acusando descontentamento com a superficialidade da vida religiosa na igreja evangélica. Alguns fizeram ouvir suas vozes reclamando a necessidade de uma forma diferente de culto que viesse modificar o estado das coisas. Luteranos e anglicanos constituíram exceção à regra, uma vez que não provieram da América do Norte, nem estavam sujeitos a juntas missionárias, embora recebessem ajuda de seus países de origem.

Somando-se à influência dos leigos e das escolas dominicais, outro legado que influenciou o estilo de culto protestante no Brasil veio da tradição avivalista trazida pelos missionários norte-americanos, que não permitiu cultos mais elaborados. Antonio Mendonça também viu no culto que os missionários protestantes americanos legaram aos brasileiros fortes traços da teologia e do conceito eclesiástico que transplantavam dos revivals, características que o tornaram distinto. A ideia de que culto é adoração e louvor não foi passada; antes, o legado consistiu na noção de que culto é trabalho, é ensino e, mais do que tudo, é conversão de almas e consagração de vida.

Paralelamente a essa tradição, muito contribuiu para a consolidação no Brasil de um culto não-litúrgico a influência do hábito norte-americano dos camp-meetings, que eram reuniões informais realizadas no ar livre e que podiam durar dias. Essa tradição não-litúrgica contribuiu para que, nas igrejas protestantes brasileiras, houvesse um relaxamento quanto aos sacramentos, verificado contundentemente no tempo e espaço destinados à celebração da Ceia do Senhor. As celebrações eucarísticas, por exemplo, não são dominicais e vêm colocadas no final do culto, como um apêndice.

Cooperou ainda na implantação do protestantismo no Brasil a concepção americana de transformar a sociedade através da educação formal. Para alcançar este objetivo, os missionários fundaram colégios e escolas paroquiais. Juntaram a isso o esforço proselitista, para converter à fé evangélica os católicos. Nesse início, e estendendo-se até a década de 20, acentuou-se o espírito polêmico, sobretudo em relação aos pontos controvertidos da Reforma, que levou pastores e padres a debates acirrados.

Estudando as influências que o culto protestante brasileiro recebeu, Carl Hahn observou que o catolicismo implantado no Brasil também contribuiu para isso, deixando as seguintes marcas:

(…) os intelectuais participavam dos ritos e celebrações religiosas como uma obrigação social e familiar, sem profundas convicções a respeito da doutrina ou ética do Evangelho, enquanto que, ao mesmo tempo, as massas analfabetas eram possuídas de uma religião folclórica supersticiosa, cheia de animismo e magia.

Esse mesmo estudioso apontou tendências étnicas e sociais que ajudaram a moldar o culto protestante no Brasil. No seu entender, o caráter da raça portuguesa, que oscilava entre a apatia e o súbito destemor, deu margem a um culto que podia variar entre apático por vezes, tornando-se repentinamente dramático e emocional outras vezes. Os índios possuíam uma religiosidade inconstante e superficial. Traziam ainda superstições de uma crença em espíritos e acreditavam não serem pecadores. O africano dizia-se cristão, mas ainda mantinha hábitos distintos, oriundos de sua origem. Entre esses hábitos, o africano entendia que a religião podia funcionar como magia. Essa atitude determinou uma “religião folclórica”, no pensamento de C. Hahn, que mesclava aos ritos cristãos elementos do animismo, da feitiçaria e da demonologia. Os intelectuais brasileiros, nas três primeiras décadas do século XX, influenciaram o protestantismo, uma vez que passaram ao povo a ideia de que a religião cristã era uma lenda.

O protestantismo do Brasil de tradição não-litúrgica denota sua direta conexão com os conceitos de culto transferidos para o Brasil pelos missionários. Foi Jaci Maraschin quem usou a expressão “transplante atípico” para definir essa total falta de contextualização. A hinodia é um elemento de fiel identificação desses conceitos, mormente da tradição avivalista norte-americana. Antonio Mendonça viu claramente isso ao estudar os cantos do hinário Salmos e Hinos:

(…) o sistema de crença do protestante comum brasileiro pode ser detectado através da seleção que ele mesmo fez dentre as centenas de hinos sagrados que a instituição lhe pôs nas mãos. (…) É muita atrativa a hipótese de que o protestantismo brasileiro seja talvez o último reduto de um momento histórico do protestantismo mundial ao conservar vivos os cânticos dos avivalismos e do movimento missionário.

5.4.3 – O canto nas igrejas protestantes brasileiras

5.4.3.1- A tradição legada pelos norte-americanos e as igrejas luteranas

Não é possível entender o acervo dos hinários, que seriam publicados para uso nas igrejas protestantes brasileiras, muitos dos quais ainda recentemente em uso, sem que se pesquisem o expansionismo missionário americano e a teologia que estavam por trás deles. Para isso, tem-se que remontar às igrejas protestantes da América do Norte do século XIX e seu empenho pela expansão missionária. Os americanos criam que a vinda do Reino de Deus estava próxima, mas isso só ocorreria depois que a sociedade fosse cristianizada, o que intensificou a colaboração interdenominacional, principalmente entre os que possuíam a teologia legada do movimento avivalista. Reuniram o desejo de alcançar todos os povos “pagãos” ao movimento avivalista, que apelava à conversão imediata. Isso levou à ideologia do “Destino Manifesto”:

O mesmo comissionamento outorgado aos judeus através de Abraão se transferia agora para os americanos num messianismo nacional direcionado para a redenção política, moral e religiosa do mundo. (…) Pelo menos no século XIX, o melhor e mais eficiente condutor da ideologia do “Destino Manifesto” foi a religião americana, ou melhor dizendo, o protestantismo americano com a sua vasta empresa educacional e religiosa, que preparou e abriu caminho para o seu expansionismo político e econômico.

Instaurou-se no protestantismo americano, como conseqüência de controvérsias teológicas, uma forte tendência conservadora, fechada a mudanças, quer fossem sociais, quer eclesiásticas. Esse conservadorismo caracterizou-se pela ênfase na autoridade, por formulações teológicas sistemáticas e objetivas (escolasticismo), pelo pietismo e apocalipsismo, tendências que revelavam a teologia avivalista associada ao sentimentalismo romântico da época. Essas tendências teológicas iriam aparecer nos conteúdos dos hinários que seriam traduzidos e adaptados para o Brasil e demais campos missionários dos americanos.

Em razão dos fatos apontados, a grande maioria dos missionários protestantes americanos que atuou no Brasil, na segunda metade do século XIX, acabou implantando no país a Era Missionária. Uma das exceções foi o casal Robert e Sarah Kalley, que veio fugido da perseguição religiosa na Ilha da Madeira, em Portugal. Os protestantes brasileiros devem a esse casal a organização do primeiro hinário protestante, que se chamou Salmos e Hinos. A primeira edição desse hinário, sem música, continha 18 salmos e 32 hinos e foi publicada em 1861, no Rio de Janeiro:

Como é natural, e assim se verificou tanto no Catolicismo quanto no Evangelismo em nossa Pátria, a maior parte das peças sacras de início entoadas nos serviços religiosos foram aquelas pertencentes ao repertório internacional. Traduziram-nas para o português o Dr. Roberto [sic] Reid Kalley e D. Sara [sic] Poulton Kalley, plantando, assim, os marcos iniciais da hinologia evangélica no Brasil (…).

As observações feitas pelo casal escocês acerca dos hinos da primeira edição revelam suas preocupações com o canto no culto e denotam o caráter didático da publicação. Entre outras “advertências”, destacam-se: o cuidado na escrita musical (na pauta superior vinham o soprano e o contralto, a primeira voz com haste para cima e a segunda com haste para baixo; da mesma forma vinham arranjadas as vozes masculinas, na pauta inferior), a instrução de não se acrescentarem notas não-grafadas em pauta, de haver solenidade e reverência no canto, mas sem necessidade de pronunciar muito lentamente as palavras, e de se dar mais atenção às palavras do que à música. Tudo isso resultaria em um “perfeito louvor”.

A segunda edição possuía a partitura e foi editada em Leipzig, na Alemanha, em 1868, contendo 76 hinos. Tanto D. Sarah quanto o Dr. Robert compuseram hinos próprios, os quais adicionaram ao legado hinológico dos séculos XVIII e XIX. O hinário foi publicado em sucessivas edições, sempre aumentadas no seu acervo. Antonio Mendonça viu nessa coletânea quatro características que definem uma ênfase teológica alicerçada nos hinos de apoio à pregação conversionista: o individualismo (hinos escritos na 1ª pessoa do singular), o voluntarismo (o apelo a uma decisão), a pedagogia e o emocionalismo pietista. Ressalte-se o fato de que o casal Kalley contribuiu decisivamente para o fortalecimento do canto sacro no Brasil não somente através da hinologia, mas ainda através de uma classe de música, a qual funcionou por muito tempo.

De procedência norte-americana, o Rev. Ashbel G. Simonton realizou o primeiro culto da Igreja Presbiteriana no Brasil em 19 de maio de 1861, igreja organizada oficialmente no ano seguinte. O trabalho desse missionário foi frutífero. Fundou, além da igreja, o primeiro jornal evangélico no Brasil e um seminário teológico. Em 1867, sob as iniciais A.J.S.N., Antônio José dos Santos Neves publicou a coleção Cânticos Sagrados, tendo colaborado com letra para 12 hinos. A fonte musical desses hinos encontrava-se nos autores da escola romântica, com exceção de um hino de Haydn.

A primeira missão metodista foi fundada no Brasil em 1836 e durou até 1841, sendo seu primeiro missionário Justin Spaulding, que logo organizou uma Escola Dominical e uma escola de ensino regular, mas o trabalho não teve continuidade. Somente com a vinda do missionário Junius E. Newman, que chegou ao Brasil em 1867, foi fundada, quatro anos mais tarde, a primeira Igreja Metodista em Saltinho, São Paulo. Escrevendo aos amigos metodistas do sul dos Estados Unidos, a quem sugeria virem morar no Brasil, Junius Newman celebrava a liberdade de culto e tecia comentários sobre a tradição hinódica que seria adotada:

A liberdade religiosa aqui, na prática, é quase tão completa como nos Estados Unidos e, legalmente, mais ou menos como na Inglaterra. (…) aqui acharão “liberdade para adorar a Deus”. (…) Aqui também erguerão firmemente a bandeira do nosso cristianismo protestante e cantarão os doces cânticos de Sião, como antes, na sua terra natal. E ainda que a linda mangueira, com seus largos ramos e agradável sombra seja, temporariamente, sua única casa de adoração, mesmo assim se reunirão para adorar a Deus, e os hinos de Watts e Wesley serão cantados no Brasil, como em outras terras.

Os metodistas contribuíram para a hinodia brasileira através de missionários como Justus H. Nelson e Benjamin Nind, que cooperaram com a tradução dos versos em inglês para o português. Juvêncio Mello, missionário junto aos índios ipurinãs, no Amazonas, foi autor e adaptador de hinos para a língua desses índios, num esforço de catequese.

Os batistas dos Estados Unidos também enviaram um missionário ao Brasil em 1871, mas somente com William B. Bagby e Zachery C. Taylor, fundadores da primeira igreja Batista em solo nacional, na Bahia, em 1882, o trabalho permanente prosperou. No início desse trabalho, o hinário usado era o Salmos e Hinos, até que, em 1891, por iniciativa particular de Salomão Ginsburg, judeu russo convertido ao cristianismo, surgiu o Cantor Cristão (CC), mas que só em 1924 apresentaria edição com música. Ginsburg colaborou com 70 hinos, entre traduções, adaptações e obra própria.

Os episcopais tentaram, na segunda metade do século XIX, fundar o seu trabalho em solo brasileiro duas vezes, sendo todas as tentativas infelizes: a primeira em 1853, no Rio de Janeiro, por iniciativa de um americano que por lá residia, e em 1861, com a vinda do pastor Richard Holden, que cooperou com o casal Kalley. O trabalho só foi implantado oficialmente com os missionários norte-americanos James W. Morris e Lucien Lee Kinsolving, que, no dia 1º de junho de 1890, iniciaram cultos em Porto Alegre. A Paróquia da Trindade, no centro da cidade, passou a ser o centro da Igreja Episcopal a partir de 1898. Logo outras cidades do interior gaúcho foram alcançadas pelos episcopais, como também a cidade do Rio de Janeiro e os estados de Santa Catarina e São Paulo. A tradição musical dessa igreja foi fomentada pelos coros, tanto em nível de paróquias quanto em orfanatos, escolas e no Seminário Teológico, fundado em 1903 na cidade de Rio Grande, mas transferido para Porto Alegre em 1920. Os episcopais valeram-se da coleção Salmos e Hinos para retirar os hinos de seus cultos até que, em 1962, foi publicado o ainda usado Hinário Episcopal.

Os Irmãos Unidos ou Igreja Cristã, como também os evangélicos pentecostais da Assembléia de Deus, todos tiveram seus missionários implantando o trabalho em solo brasileiro no final do século XIX ou no início do XX. Os Irmãos Unidos publicaram Cânticos Espirituais, e os evangélicos pentecostais publicaram o Harpa Cristã, em 1922, só com a letra.

A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, diferentemente, não surgiu a partir das missões norte-americanas, e sim dos luteranos provenientes da Alemanha e seus descendentes, que formaram sínodos e, mais tarde, a IECLB. Sua hinodia é bastante diferente. Em 1824 chegou a São Leopoldo, no RS, a segunda leva de colonos alemães no Brasil, logo seguida por outras levas. O primeiro culto foi realizado no local chamado Feitoria Velha, em alemão, no dia 6 de novembro de 1824. O primeiro templo foi construído em Campo Bom, mas foi na cidade de São Leopoldo que a igreja estabeleceu o seu centro. Com forte tradição de apreço pela música, herança indubitável de Martinho Lutero, as igrejas da IECLB permaneceram promovendo o canto em seus círculos. As expressões musicais foram marcadas pela variedade, com coros mistos, coros masculino e feminino. Os cantos costumavam ser acompanhados por órgãos de tubos, harmônios ou conjuntos instrumentais de metal, denominados de coro de trombones. Durante algum tempo existiu a tradição do uso de sinos, quase todos fundidos na Alemanha. O HPD é o hinário oficial denominacional e foi lançado em 1981.

A Igreja Evangélica Luterana do Brasil chegou ao Brasil em 1900, por iniciativa do Sínodo de Missouri, nos EUA, para atender uma população de famílias de descendentes dos imigrantes alemães. Instalou a primeira comunidade em Pelotas, tendo 17 famílias arroladas como membros. O trabalho foi extendido para as regiões central e noroeste do estado do Rio Grande do Sul, atingindo também Porto Alegre e o Vale do Sinos. Logo a seguir expandiu seu trabalho com a fundação do Seminário Teológico, em 1903, e a publicação do jornal Evangelisch-Lutherisches Kirchenblatt. Sua tradição musical fez com que prestigiasse enormemente os coros. Como realizasse seus cultos em alemão, durante as duas Guerras Mundiais a igreja se viu obrigada a realizá-los em português. Seu primeiro livro oficial de cantos foi o Hinos e Orações, editado em 1920, sendo que grande parte de seu acervo foi retirado do hinário Salmos e Hinos. A esse seguiu-se o Hinário Luterano, publicado em 1938, com sucessivas edições.

5.4.3.2 – As características da hinodia dos protestantes brasileiros

Tendo descrito o tipo de culto das igrejas não-litúrgicas, tendo avaliado os fatores responsáveis para que esse culto tivesse as características anteriormente apontadas e tecido considerações a respeito do legado missionário norte-americano às terras brasileiras, passa-se a pesquisar o tipo de canto que esse culto admitiu. Foi através da análise do acervo de Salmos e Hinos que Antonio Mendonça classificou o protestantismo brasileiro em quatro categorias: o pietista, o peregrino, o guerreiro e o milenarista. Como se constatou, a hinodia dos protestantes brasileiros não-litúrgicos perpetuou a tradição do século anterior.

O pietismo, por exemplo, pode ser averiguado no hino de Isaac Watts coletado do HCC: “Por meus pecados padeceu/ Jesus, que é vida e luz,/ Ele o castigo meu sofreu/ na ensangüentada cruz”. O conversionalismo tem raízes pietistas, dadas as suas características subjetivas, calcadas na experiência de um encontro pessoal com Jesus.

Uma vez convertido, o cristão deve procurar cultivar uma vida de comunhão íntima com Jesus, diária, desprezando os interesses “mundanos” e os “prazeres terrenos”. Toda essa temática pode ser observada no hino de “apelo a uma decisão por Cristo” com o título “Qual É Teu Refúgio?”:

Amigo, qual é o teu refúgio, / E qual teu destino final?
Por que trabalhar por tesouros / Que tens de deixar afinal?
Oh! Cuida do bem da tua alma / Que eterna permanecerá,
E tem mais valor que este mundo, / Só Cristo a salvar poderá.
De nada aproveita este mundo ganhar,
Se em troca tua alma tu tens de entregar! (bis)

O sentido de crente como peregrino nesta vida “transitória” pode ser detectado no hino “Brilho Celeste”, retirado do HCC, e o anseio pela eternidade no céu, no hino “Pátria Celestial”, do CC, dois temas muito estimados que aparecem nos hinários:

Peregrinando vou pelos montes e pelos vales, sempre na luz.
Cristo promete nunca deixar-me. “Eis-me convosco”, disse Jesus.
Brilho celeste, glória divina, enche a minha alma com tua paz.
Com alegria sigo cantando, pois Jesus Cristo me satisfaz.
Pátria minha, por ti suspiro; / Quando no teu bom descanso chegarei?
Os patriarcas, de Deus amigos, / E os bons profetas, fiéis, antigos,
Já entraram na tua glória, / Contemplando, em esplendor, o grande Rei.

Os hinos do protestantismo guerreiro serviram para uma época em que o protestantismo no Brasil parecia estar obtendo grandes vitórias no plano espiritual. Eles centralizam a mensagem no chamamento ao combate, entendido sempre metaforicamente como “combate ao mal”, representando a luta entre o inimigo (satanás) e Cristo: “Irmãos fiéis, uni-vos já,/ Pra trabalhar por nosso Deus,/ E combater com todo o ardor/ O rei do mal e os servos seus!”

A ideia de que o crente é um soldado chegou em terras brasileiras no final do século XIX, quando o protestantismo já comemorava a vitória do seu expansionismo. Provavelmente contribuiu para isso o Exército da Salvação, inaugurado em 1878 na Inglaterra:

Um pendão real vos entregou o Rei, a vós, soldados seus;
Corajosos, pois, de tudo o defendei, marchando para os céus.
Com valor, sem temor, por Cristo prontos a sofrer,
Bem alto erguei o seu pendão, firmes sempre até morrer.

O movimento do “sebastianismo”, iniciado em Portugal nos séculos XVI e XVII, foi trazido ao Brasil através do espírito de messianismo do elemento português. O padre Antônio Vieira ajudou a impregnar a religiosidade brasileira com esse sentimento a partir de 1640 e teve seguidores nos séculos subseqüentes. A mensagem da teologia pré-milenarista foi a que melhor se encaixou nesse contexto de espera por um final apocalíptico, sendo muito explorada nos hinários evangélicos:

Vem, ó Cristo, Desejado! / Vem o mundo libertar
Dessas dores em que geme! / Teu poder vem demonstrar!
Vem, esperança deste mundo! / Vem o milênio inaugurar!
Vem teus remidos despertar do sono! / Oh, vem teu reino confirmar!

O pesquisador francês Émile Léonard, que veio estudar o protestantismo brasileiro, chocou-se com a concepção de culto como “trabalho”, tendo deixado a seguinte memória:

Esse corpo, que é propriamente a igreja, teria como divisa, para um protestante europeu, “adorar e orar”. Para o brasileiro – e não procuramos saber se se trata, aqui, de um traço americano ou apenas de juventude espiritual – essa divisa será “aprender e trabalhar”. A expressão que designa, na Europa, a suprema finalidade da Igreja é a de culto (ou seus equivalentes); no Brasil é “trabalho”, expressão empregada mesmo pelas denominações menos ativistas, como a episcopal. As próprias reuniões religiosas são um “trabalho”, e a expressão, por estranha que pareça a um estrangeiro, não é imprópria, pois essas reuniões constituem, antes de tudo, para o pastor, ocasião de trabalhar na salvação das almas, e para os fiéis algo semelhante a um trabalho escolar, onde ele deve, acima de tudo, aprender.

No Hinário Evangélico, há 41 hinos na seção “Evangelização e Serviço Cristão”. No Salmos e Hinos, dentro de “Vida Cristã”, acham-se três subgrupos que abordam o trabalho cristão, com 32 hinos sobre o assunto. No Cantor Cristão, a seção “Vida Cristã – Trabalho Cristão” inclui 25 hinos, dos quais retirou-se o hino a seguir que ilustra a intenção de culto-trabalho:

Vamos nós trabalhar, somos servos de Deus, / Com o Mestre seguir no caminho dos céus;
Com o seu bom conselho o vigor renovar, / E fazer prontamente o que Cristo mandar!
No labor, com fervor, a servir a Jesus,
Com esperança e fé e com oração, até que volte o Redentor.

O historiador francês ainda percebeu que no Brasil o culto é visto como oportunidade de ensino, em virtude de ter atestado o valor que os protestantes brasileiros dessas igrejas dão à escola dominical. Dessa forma, o culto é trabalho e aprendizagem. A contribuição de Sarah Kalley nessa área pode ser conferida no hino “Estudo Bíblico”:

Eis, Samuel ouviu / Palavras de favor,/ E muito se admirou, / Ouvindo o Salvador!
Que dita, se Jesus assim / Viesse me ensinar a mim!/ Pois na divina lei / Eu ouço a voz de Deus,
O santo, eterno Rei, / Falando-me dos céus,
Com reverente amor convém / Saber o que essa lei contém.

Como prova da valorização que o protestantismo brasileiro dava às escolas dominicais, em 1909, durante a primeira Convenção Regional das Escolas Dominicais do Rio de Janeiro, dois participantes, A. Marchant e J. L. Fernandes Braga Jr., apresentaram teses que defendiam o uso da música como elemento vital para o ensino da Bíblia às crianças. A primeira palestrante chamou a atenção para o aspecto da escolha do canto para crianças, enfatizando sua adequabilidade e a necessidade de se ter um texto compreensível. O segundo palestrante evocou o panorama norte-americano vigente, onde os cantos das escolas dominicais eram acompanhados por orquestra e apresentados nas mais variadas combinações vocais (solo, dueto, quarteto), sempre coadunados com a lição bíblica do dia. Na 11ª Convenção Mundial de Escolas Dominicais, realizada em julho de 1932 no Rio de Janeiro, mais uma vez foi apresentado um estudo sobre a educação religiosa infantil e foi debatido o papel da música sacra para a eficiência desse ensino. O evento tornou-se memorável por ter reunido um coro de 400 vozes, com a participação de inúmeras igrejas evangélicas do Rio de Janeiro, 800 pessoas para a realização da alegoria “O Cristo dos Séculos”, solistas, instrumentistas acompanhadores e o conjunto de clarins do Exército da Salvação. Henriqueta Rosa Braga considerou o acontecimento um marco na história da música sacra brasileira, por ter fortalecido os coros existentes e ter impulsionado o surgimento de novos corais evangélicos. A Confederação Evangélica do Brasil foi criada em 19 de junho de 1934 para atender às diversas igrejas evangélicas nacionais em assuntos gerais. “A Música como Fator Educativo” foi o estudo apresentado por Henriqueta Braga por ocasião da Primeira Convenção Regional da referida entidade, que comemorava o primeiro centenário da Escola Dominical no Brasil. Nesse estudo, entre outras, a ênfase maior foi dada à adequação da música às circunstâncias, à escolha de textos compreensíveis e de músicas verdadeiramente sacras e ainda ao cuidado na escolha de tessituras convenientes às vozes. Grande parte do mérito de se ter cantos para as escolas dominicais deve-se ao trabalho de Edith Allen, que compilou, traduziu e organizou o cancioneiro Cânticos para Crianças, após 40 anos de trabalho como missionária americana batista no Brasil.

Convocada pela Confederação Evangélica do Brasil, uma comissão levou a cabo a tarefa de publicar um hinário evangélico em língua portuguesa que pudesse substituir as diversas publicações adotadas por essas igrejas. Desse empenho surgiram o Hinário Evangélico, publicado em 1945, e o Hinário Evangélico com Músicas Sacras em 1952, o qual apareceu em sucessivas edições. Embora o trabalho da comissão tivesse sido reconhecido, o hinário não alcançou a popularidade esperada, porque o povo não aceitou as novidades que oferecia:

O peso da tradição e o sentimentalismo com que o povo se apega aos hinos que está habituado a ouvir e a cantar representam, até certo ponto, um grande entrave a quaisquer inovações [grifos da autora]. (…) O Evangelismo brasileiro reconheceu o mérito do esforço e louvou a operosidade dos organizadores da nova coleção de hinos, mas não foi unânime em aceitá-la como hinário oficial em suas igrejas, em substituição às coletâneas vigentes, pelo comprovado fato de que uma substituição exige, do substituto, superioridade em relação ao substituído, o que não se verificou a não ser em parte quanto à letra, se bem que esta não tenha ficado livre de imperfeições, (…).

Quanto aos hinários produzidos no país, o mais antigo é o Salmos e Hinos, fruto do labor do casal Kalley, e o principal provedor da hinodia em terra brasileira, pois a maioria dos demais hinários editados no país retirou subsídios dele. A última edição do Hinário Evangélico data da década de 60, constando de 500 cânticos, sendo dez de caráter especificamente litúrgico, colocados como apêndice, sem numeração. Além dos hinários editados no final do século XIX e comentados anteriormente, outros foram editados por várias denominações mais recentemente. Os luteranos da Igreja Evangélica Luterana do Brasil editaram o Hinário Luterano em 1938, reeditado em 1952, em 1956 e por último em 1986, esse com 573 hinos. Os luteranos da IECLB editaram o Hinos do Povo de Deus em 1981, já focalizado na presente pesquisa. O Hinário Episcopal de 1962 admitiu hinos do Hinário Evangélico e do hinário usado pelos episcopais americanos, The Hymnal, de 1940. Em 1981, a Igreja Presbiteriana do Brasil editou O Hinário Presbiteriano: Novo Cântico, com 400 hinos. Os batistas da Convenção Batista Brasileira, depois de 100 anos de uso do Cantor Cristão, editaram em 1991 o Hinário para o Culto Cristão, também objeto de estudo preliminar desta pesquisa.

Isidoro Lessa de Paula estudou a origem e o desenvolvimento da primeira hinodia brasileira, particularmente detendo-se no Cantor Cristão, e chegou à conclusão de que a falta das características da verdadeira música brasileira nos principais hinários editados no país deveu-se a quatro fatores. O primeiro fator responsável por essa lacuna foi creditado à polarização entre música sacra e música secular, em que a música proveniente do estilo gospel song acabou por ser admitida como a representante exclusiva do estilo sacro, excluindo, portanto, possíveis expressões da música verdadeiramente brasileira. O segundo fator foi a associação com o “mundanismo” que as expressões musicais brasileiras evocavam aos ouvidos protestantes da época, principalmente em relação à música de origem africana e sua ligação com os cultos africanos. O terceiro fator seria a falta de compositores capacitados para tal tarefa. O quarto fator foi creditado à atitude conservadora da denominação batista, no caso responsável pela perenização do CC, hinário que já completou mais de 100 anos de uso.

Procedentes de esforços particulares, apareceram no cenário brasileiro inúmeros hinários e coletâneas musicais. As características da hinodia dessas coletâneas, que passaram a ser editadas a partir dos anos 70, ficam evidenciadas nos próprios títulos das coleções, que usam “novo”, “nosso”, “terra”, “povo”. Esses vocábulos deixam transparecer uma nova preocupação teológica, que esteve completamente adormecida nos primeiros anos deste século nos hinários e tem ligação estreita com os problemas sociais de justiça, fome, infância, pobreza, moradia, analfabetismo, problemas cada vez mais adensados atualmente no país com os menores abandonados, a velhice desassistida e o sistema precário de educação e saúde. Embora haja registro desses temas, eles continuam a ser perifericamente abordados nos hinários oficiais das principais igrejas protestantes históricas. Acredita-se que tal teologia ainda não foi abraçada oficialmente por tais igrejas, que dela se ocupam de modo apenas ocasional, em esforços sazonais e esparsos. O mesmo não se pode afirmar das igrejas Episcopal e Luterana. Observando suas últimas contribuições musicais, vê-se com clareza a tendência pela Teologia da Libertação (TdL). Exemplo palpável é A Canção do Senhor na Terra Brasileira, com 31 peças de Jaci Maraschin e Simei Monteiro. É o primeiro documento cujos textos “falam também da vida do nosso povo, suas angústias, sofrimentos e alegrias à luz do Evangelho. O homem é tratado como um ser global, sem dividi-lo em corpo e alma”. O livro foi elaborado tendo em vista a renovação do canto litúrgico em terras brasileiras. Foram utilizados vários estilos musicais, e os organizadores preocuparam-se em usar uma teologia que falasse do “nosso compromisso com a terra”, ao invés de falar “das glórias celestiais”. No cancioneiro, há cantos, como o “Da Cepa Brotou a Rama”, de Reginaldo Veloso, que conseguem associar a TdL com o folclore brasileiro. No canto de Reginaldo, o nascimento de Jesus é trazido a um barracão do morro, onde é festejado com “cuícas e pandeiros”, e Cristo vem para “destruir as opressões”. Como exemplo da mensagem central da TdL, observe-se a letra do canto “Mensageiros”:

Enviaste, pra pregar, teus mensageiros/
aos opressores de teu povo amado,
o arrependimento,/ a fim de exterminar os cativeiros/
em que padece o povo maltratado/ em triste sofrimento.
Envia-nos, também, teu povo santo,/
para anunciar justiça e liberdade/
aos pobres e oprimidos./ Permite que não mais domine o pranto,/
e que se acabe a força da maldade./ Restaura os desvalidos.
Dá-nos a graça de te ouvir, contentes,/
e de mudar o coração humano/
Num coração de amigo,/ e arrependidos e já penitentes/
transmuda esse pecado desumano,/ e anula o vil castigo.

O Seja Louvado, de 1972, hinário bilíngüe, deveu-se a João Faustini, que já havia oferecido compilações para várias coletâneas corais. O hinário foi escrito para a Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo em Newark, NJ, com 315 hinos, dos quais muitos de autores brasileiros. Provavelmente editado no início dos anos 60, surgiu o Vamos Cantar de Norah Buyers, seguido do Nova Canção, de 1975, ambos com hinos de compositores brasileiros. O último, com cantos ecumênicos, foi reeditado em 1987, com o apoio do Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais e pelo Centro Áudio-Visual Evangélico. Editado e organizado principalmente graças aos esforços de Jaci Maraschin e de uma equipe que se reuniu pela primeira vez em Campos do Jordão, em 1985, O Novo Canto da Terra foi organizado em 1987 e abarcou parte do acervo de A Canção do Senhor na Terra Brasileira, de 1982. Outros compositores também ofereceram coletâneas ao povo brasileiro, como Almir Rosa, Marcílio de Oliveira, João Fernandes da Silva Neto e Verner Gaier, esses provenientes do curso de Música Sacra do Seminário Batista do Sul do Brasil. Em 1982, por ocasião do centenário dos batistas no Brasil, foi lançado o hinário Celebrai… Cantando!, primeiro hinário de autores e compositores batistas brasileiros. Analisando as obras ali compiladas, percebe-se que poucas denotam, em sua estrutura musical, quer melódica, rítmica ou harmônica, características tipicamente brasileiras. No Cânticos do Congresso Despertar 89, editado pela Junta de Mocidade da CBB, além dos últimos compositores mencionados, encontram-se composições de Nelson Bomilcar, Nabor Nunes, Ossimar Martins Alves, Simei Monteiro, Hiran Rollo Jr., Guilherme Kerr Neto, Sérgio Pimenta, Marcos Gatz, entre outros, representantes das últimas novidades em termos de música sacra brasileira.

O cancioneiro O Povo Canta nasceu dentro da IECLB, mas por iniciativa de pessoas que atuavam na Pastoral Popular Luterana (PPL). Está dividido em quatro “capítulos”, que são: o povo canta sua vida; a igreja canta sua fé; liturgia e cantos

litúrgicos e celebração. A “filosofia” principal para a seleção dos cantos pode ser verificada sobretudo na sua primeira seção, onde estão muitos cantos sobre o Deus que liberta os pobres, oprimidos e sofredores e os que convidam o povo cristão a se engajar no auxílio a essa gente:

“O Povo Canta” reúne ao lado de canções antigas, canções cristãs de composição recente, que são cantadas em meio popular, por exemplo, nas vigílias de protestos, contra más condições de vida, em frente a palácios de governo e sedes de grandes empresas, em manifestações de rua, que reivindicam melhorias em diversos setores dos marginalizados da sociedade, em reuniões de grupos de periferia, que se organizam para unificar alguma luta. (…) Comunidades da IECLB cantam estes hinos em seus cultos dominicais. (…) O cancioneiro constitui-se em subsídio teórico e espiritual para membros da Igreja engajados em grupos que ultrapassam os limites da comunidade religiosa. Em sentido inverso, por conter canções de cunho histórico-cultural e ligados à tradição, ele é responsável também por trazer para dentro da comunidade o tema da responsailidade social dos cristãos, na forma de expressão cantada e celebrada.

O canto abaixo é de autoria de Evandro Meurer e reproduz, junto com o conteúdo acima citado, a milonga das terras gaúchas:

No compasso da rancheira apresento nossa canção.
Chego agora bem pilchado, trago gaita e violão.
Vou tentar em poucos versos definir nossa missão.
Te levanta e vem comigo/ no abraço, meu irmão.
Vem olhar para a cidade/ como alvo da missão.
Da enxada e do arado para o sonho da cidade,
costureira e sapateiro vivem sem comunidade,
pois a Igreja está distante, vive noutra realidade.
Jesus Cristo, neste mundo, foi um servo exemplar.
De cidade em cidade o evangelho anunciar,
incluindo os excluídos e uma nova vida dar.
Qual minuano na coxilha sopra em nós um forte vento,
animados pelo Cristo a viver novo momento:
compromisso com a prática do evangelho em nosso tempo.

Ainda em processo de organização, a Igreja Presbiteriana Independente prepara um novo hinário para ser lançado no ano de seu centenário, em 2003. Foram editadas seis coletâneas com as propostas dos hinos que formarão o futuro acervo desse hinário, denominadas Canteiro, e já focalizadas na presente pesquisa. Além do acervo da “tradição protestante” no país, há grande diversidade quanto ao seu conteúdo teológico, tanto que há responsos, corais alemães e cantos brasileiros que atendem à teologia social.

Caso se verifique a discografia brasileira surgida a partir da década de 70, poderão ser notadas pelo menos cinco tendências quanto aos estilos musicais usados: a gravação de cantatas tipo “testemunho”, traduzidas do inglês, e/ou cantatas celebrando ocasiões especiais, como a páscoa e o natal; corais de igrejas locais e de seminários, cantando hinos tradicionais, acompanhados por play-backs e/ou órgão ou piano; solistas, duetos, trios, quartetos e pequenos conjuntos também reproduzindo o estilo tradicional americano vigente no fim do século anterior e início do presente; interdenominacionais e pentecostais misturando traduções com alguma produção brasileira. A última palavra em termos fonográficos dá destaque às chamadas “bandas”, que copiam as produções americanas, e solistas individuais, mesclando estilos antigos de hinários em arranjos modernizados. “F.O. Radical Mudança” constitui-se parcial exceção a essas tendências. A banda apresenta música brasileira e internacional, usando pandeiro, tamborim, entre outros instrumentos de percussão, com os seguintes estilos: reggae, rock, rap, ritmo caribenho, balada romântica, pagode,baião e samba. Existem pelo menos duas letras bastante contemporâneas, como a de “Maluco Beleza” (samba) e a de “Decadência”, esta última misturando a teologia social com uma inclinação final conversionista:

Atenção! Senhoras e senhores/ Que viajam neste trem/
Estou pedindo ajuda/ Quero ver quem é que tem
Preciso de uns trocados pra ajudar meus irmãozinhos/
Que estão passando fome e tão doente [sic]
E meu pai não pode trabalhar/ Quem é o primeiro a me ajudar/ Melhor pedir do que roubar!
É essa a situação do mundo em que vivemos/ repare só a decadência
Crianças se perdendo/ Estão largados, jogados [sic] na rua
Abandonado [sic] pelos pais/ Isso é uma parte da loucura
E por aí há muitos iguais/ Eles precisam comer, precisam sobreviver/ O que fazer?
É tanta riqueza por aí/ Muitos com muito/ Muitos sem nada, quanta coisa errada
Precisamos de alguém pra nos tirar dessa roubada/
E nunca mais se [sic] deixar levar pelas ciladas da vida
Eu achei uma saída/ Jesus Cristo é a saída.

A quinta tendência espelha uma visão diferente, pois não está ligada à influência americana. São empreendimentos no âmbito da IECLB, a maioria a partir de empenhos de particulares, com a participação de grupos corais e de conjuntos musicais, estes participantes de festivais de música sacra. Na década de 70, a gravadora “ISAEC Gravações e Produções” lançou suas primeiras produções fonográficas: eram discos compactos, intitulados “Nossa Fé, Nossa Vida”, gravados como ilustração do guia da IECLB que leva o mesmo nome. No final desta década, o “Coral do Morro”, pertencente à Faculdade de Teologia da IECLB, gravava o LP “O Novo Canto da Terra”. Para a seleção das músicas, o coro optou pelas músicas cristãs brasileiras que fossem simples e “cantáveis”, evitando cair numa erudição que tornasse a comunicação do texto muito difícil. Em 1982, o mesmo coro gravaria “Arrozais Florescerão”, que dava continuidade ao trabalho do seu primeiro LP. A produção da ISAEC para o mercado interno da igreja foi enriquecida a partir dos festivais de música sacra, denominados “Musisacra”, ocorridos já nas décadas de 80 e 90. Nos primeiros dois festivais, as músicas foram todas, sem exceção, brasileiras, compostas pelos próprios participantes. O segundo festival, que aconteceu nos dias 5 e 6 de outubro de 1991, em Curitiba, reuniu 16 grupos, com aproximadamente 200 músicos. O disco do “2º Musisacra” quis mostrar “(…) a música produzida em nossa igreja. Música que fala do nosso povo para o nosso povo; que fala do Evangelho de Jesus Cristo para a nossa realidade hoje e que mexe com todas as idades”. Nos anos 90, a produção fonográfica da IECLB consistiu de fitas cassete sobre os temas específicos anuais da igreja e de um CD, com uma coletânea de canções de vários grupos jovens. Existe um CD do “Coral do Morro”, intitulado “Passos”, que faz uma retrospectiva dos 25 anos de existência do grupo.

Quanto ao uso da tradição e/ou contemporaneidade nessas gravações, foram observadas ainda três tendências: uma valoriza a tradição do canto de salmos e textos bíblicos literais, outra reproduz fielmente a hinodia herdada dos missionários e outra, quantitativamente menor, tenta contextualizar o canto copiando os ritmos da música popular brasileira, como a bossa-nova, o samba e o baião. Ainda assim, as tentativas de uma hinodia que apresente um compromisso maior com os assuntos da contemporaneidade têm sido tímidas e mesmo negadas em círculos onde a teologia da libertação não foi abraçada. A discografia da IECLB, mesmo que não tenha sido sistemática e periodicamente produzida, é praticamente exceção no cenário protestante brasileiro.

A análise de alguns poucos hinos servirá de amostragem dos assuntos predominantes nos hinários protestantes ainda vigentes em solo brasileiro. Observem-se os temas predominantes em um jornal e um semanário nacionais de prestígio do momento: a maioria do povo não confia nos integrantes do Congresso Nacional, em razão das repetidas falcatruas em que se metem, sempre em proveito próprio e em detrimento do bem-estar da população; o Brasil está exportando pastores para o Mercosul, seguidores do bispo Edir Macedo, e umbandistas, como o Pai Guru, que desfaz macumba mediante o pagamento de 10 dólares; “Quadro Sombrio no Ensino Médio” é a manchete do texto que focaliza as dificuldades pelas quais passam os alunos das redes públicas, cuja percentagem de aprovação em universidades é de apenas 11%, não tendo dinheiro para livros, revistas e jornais; os pontos de incêndio em Roraima foram quintuplicados no espaço de dez dias em virtude da demora do governo em acudir a tragédia em plena selva amazônica. A outra publicação também fala do desprezo do governo pelas chamas na Amazônia e estende o descaso governamental a outras áreas urbanas onde ocorre a favelização dos morros, o que revela um crescente empobrecimento da população brasileira. Narra ainda a situação caótica da saúde no país, que “tem pouco dinheiro e ainda gasta mal o pouco que tem”. Os índios panarás, que tiveram suas terras invadidas, no governo Médici, para a construção da estrada Cuiabá-Santarém, em menos de dois anos de contato com os brancos tiveram a população reduzida de 600 pessoas para 79 e perderam sua identidade indígena pela aculturação: “De herdeiros de uma tribo livre e orgulhosa, passaram a ser brasileiros pobres, simplesmente”. Resumidos os textos colhidos, pode-se dizer que a população está cada dia mais pobre, fato espelhado na falta de moradias decentes, baixa qualidade na educação e falta de cuidado na saúde. Diante desses fatos, nossa hinodia continua a celebrizar “a cidade celestial”, nada dizendo acerca do compromisso cristão de ajuda ao próximo que vive nas cidades e vilarejos brasileiros, espacialmente muito mais próximas. Essa é uma “tradição” a ser revista urgentemente.

Dentro do contexto do nível de linguagem e do nível musical utilizados na “corinhologia” brasileira, escrevendo para a Revista Vinde, Samuel Lima chegou a conclusões apreciáveis. Primeiro ele selecionou a expressão “Aquele que é digno de louvor”, sugerindo que ela sirva de tema às composições que ora são produzidas no Brasil. O seu ponto de vista é que, no cenário das igrejas protestantes brasileiras não-litúrgicas, o que tem predominado é a “Síndrome de Tiririca”: nível musical altamente questionável, uso abusivo da linguagem “crentês”, repetição de uma mesma canção, ou seja, na linguagem do próprio opinador, “um besteirol evangélico altamente vendável, propagando em nosso meio a síndrome de Tiririca – anticultura para um povo sem cultura”.

5.5 – Conclusão

Algumas das características musicais do século XX foram introduzidas na música sacra cristã ocidental, e fatos históricos ajudaram para que isso ocorresse. Em termos gerais, esse diálogo coube aos compositores de música erudita, os quais puseram-se a escrever obras específicas para a liturgia dentro dos padrões musicais vigentes. Tanto a Igreja Católica Romana como algumas protestantes absorveram parte desse acervo. Esse tipo de canto, contudo, continua distante do alcance popular, pois requer aperfeiçoamento técnico musical que vai além da capacidade do povo comum. Não obstante esse distanciamento, não se pode negar ter havido progresso no que tange à qualidade musical das peças sacras, bem como a busca por uma linguagem musical atual.

Quanto à tradição dos cantos, viveu-se, em alguns segmentos cristãos, a busca por uma identidade enraizada na história. Esse foi o caso do retorno aos cantos gregorianos vivido pela Igreja Católica Romana a partir da promulgação da Mediator Dei, de 1947, e que foi bastante fomentado no Brasil através de seminários e fundação de escolas especiais. Essa tradição do canto litúrgico na igreja católica tem sido expressa através de salmos responsoriais, aclamações, ao lado dos kyrie e sanctus. Na “Pastoral Litúrgica da Música no Brasil”, de 1977, o cultivo dessa tradição musical foi incentivado em virtude de o documento a considerar um elemento-chave para a educação e o ensino do povo, uma vez que também ajuda a este a compreender cada parte da missa. Por manter essa tradição, a igreja ensina o povo a entender a missa e educa a comunidade na retenção das verdades cristãs.

Iniciando com o “Movimento de Oxford”, a Igreja Anglicana deu continuidade, no século XX, ao reavivamento de suas tradições litúrgicas. Em solo norte-americano, a restauração do canto gregoriano dentro da Igreja Anglicana deveu-se muito a Charles W. Douglas e, no Brasil, a Herman di Brandi. Com esse movimento, a Igreja Anglicana queria mostrar o seu caráter católico, que estava esquecido em solo brasileiro, dadas as influências de missionários americanos. A igreja sentiu necessidade de recuperar sua história e de reavivar práticas que, uma vez não lembradas, deixariam a igreja anglicana órfã de uma herança singular e distintiva.

Convém que se ressalte que a Igreja Católica Romana sempre advertiu, em seus decretos, que todo e qualquer estilo musical adotado deve se coadunar à função litúrgica e deve ter uma fundamentação teológica em que esteja alicerçado. Isso abarca tanto a tradição quanto os cantos novos. É importante enfatizar o cuidado que a Igreja Católica Romana sempre deu à adequação dos cantos à liturgia e o quanto repudiou a presença da música no culto como entretenimento. Liturgia e música devem andar sempre juntas e ajustadas.

Uma vez fundamentado liturgicamente, esse canto é condutor por excelência da oração, “que se exprime com maior suavidade”. É muito antigo o conhecimento do caráter “terapêutico” da música na igreja e o quanto ela pode abrandar o sofrimento da alma humana. No século XX, a agitação da vida moderna tende a petrificar o interior da pessoa. Quando a emoção é usada com equilíbrio, esse “gelo” se quebra e a pessoa torna-se mais propensa a ouvir o evangelho. Sabem disso bem as igrejas que ainda hoje preservam seus cantos “românticos”, como os provenientes da gospel song americana. Costumam ainda falar forte aos sentimentos das pessoas os cantos que foram por elas entoados quando crianças. Em geral, esses cantos não são contemporâneos, contudo retêm uma carga de memória afetiva muito valiosa para a pregação do evangelho. Em virtude disso, pode-se afirmar existir um saldo bastante positivo em relação ao legado deixado pelas escolas dominicais instituídas precocemente nas igrejas protestantes transplantadas para o Brasil. Por causa delas, existiu a preocupação com o ensino. Disso resultou uma hinodia especial para crianças, mesmo que traduzida do inglês. Um dos pontos altos desses cantos é que eles, na sua maioria, se constituem repetições literais dos versículos bíblicos, os quais, por serem transmitidos em idade tenra, acabam retidos mais facilmente na memória.

Ainda dentro da tradição, não se pode esquecer de incluir a tradição hinódica das igrejas protestantes não-litúrgicas. Conquanto o pesquisador Antonio Mendonça já tenha historiado o afastamento que há entre os textos dos hinos e a realidade atual da sociedade brasileira, tem-se que admitir que o canto desses hinos virou tradição nessas igrejas. São cantos que expressam as várias facetas do cristianismo e do ano cristão e têm sido cantados por sucessivas gerações de crentes, tornando-os muito queridos. O canto desses hinos tem sustentado a identidade dessas igrejas, mormente daquelas, como a batista, que nem credo oficial possuem. Há membros dessas igrejas que consideram o hinário uma espécie de “manual” doutrinário da denominação e o defendem vigorosamente daqueles que desejam renová-los ou substituí-los.

Quanto à contemporaneidade do fazer musical nas igrejas cristãs, precisa-se admitir que não foram poucos os esforços no sentido de se obter música com as mesmas estruturas daquelas produzidas fora do ambiente eclesiástico, vividas e disseminadas cotidianamente pelos meios de comunicação velozes do presente século. Nem sempre esse tipo de música secular, como o caso da música “pop” iniciada nos anos 50, foi aceito sem causar polêmica. O primeiro gesto de “inculturação” desse novo estilo foi de um padre católico inglês, desejoso de ver a juventude ativa e partícipe nos cultos de sua igreja. Depois dele, surgiram inúmeras pessoas escrevendo do mesmo modo e com o mesmo objetivo: atrair os jovens para a igreja. A ala evangelical dos protestantes resistiu um pouco mais para adotar esse procedimento, mas, com o passar do tempo, também acabou deixando que o estilo da música popular invadisse seus domínios. Isso aconteceu principalmente através das chamadas “cantatas musicais jovens”, apresentadas mais para comemoração de dias especiais do calendário cristão, como páscoa e natal, ou então, como “testemunhos” em cultos de “celebração”. A atitude de coadunação do canto sacro às características da música “pop” vigente no meio secular demonstra que em alguns setores de igrejas cristãs tem havido a preocupação com a educação religiosa dos jovens. Essas igrejas perceberam que o canto é um veículo poderoso para o ensino e crescimento espiritual da juventude, principalmente se sua linguagem for a mesma que circula nas rádios, televisões e demais canais de comunicação atuais.

As investidas para tornar contemporânea a música sacra foram mais notória e regularmente feitas no círculo católico romano e nas igrejas protestantes litúrgicas. Com a determinação de implantar a língua vernácula nas missas e com leis de amparo às expressões musicais locais, a Igreja Católica Romana deu um grande passo para falar a mesma linguagem do povo. Todos os documentos católicos analisados expressaram, em algum artigo, a necessidade de novas músicas que atendessem às pessoas em sua cultura. No Brasil, por exemplo, foram realizados vários congressos, logo após edição das leis conciliares do Vaticano II, em que os líderes da igreja e músicos estudaram a liturgia e as principais características musicais brasileiras que podiam dar novo rumo às expressões populares locais dentro da liturgia, mas sem fugir de seu espírito. Chegaram mesmo a definir o que chamaram de “constâncias” da música popular brasileira para que os compositores tivessem à mão os recursos para novas composições. Examinando os hinários que despontaram a partir daí, pode-se constatar o quanto foi aproveitado da música popular e folclórica brasileira para os cantos da Igreja Católica Romana no país. Essa contextualização, em termos de América Latina, teria também de fazer a opção pelo povo pobre e oprimido. O canto, nessas circunstâncias, teria de estimular o fiel que sofre a clamar por Deus e chorar suas mágoas diante dele. Teria ainda de brotar como uma experiência vivida por aquele que o compôs, para ser mais autêntico e ainda estar sempre alerta para denunciar as injustiças sociais. Os membros da comissão que elaborou o primeiro volume do Hinário Litúrgico, observaram, entretanto, que na liturgia devem ser apresentados tanto os cantos de protesto quanto os que agradecem a Deus as dádivas por ele concedidas e que o louvam por sua soberania e majestade.

As igrejas Luterana e Anglicana também estão em processo de tornar contemporâneos o estilo musical e o texto de seus hinos. Embora isso ainda não esteja presente nos hinários oficiais, essa tendência pode ser facilmente atestada pela análise dos cancioneiros que têm surgido há pouco tempo e da produção fonográfica. Nesses cancioneiros e nessas gravações, vê-se que a ala da teologia da libertação (TdL) está presente nos textos aí coletados. As duas igrejas também têm dado espaço para a produção de cantos caracteristicamente brasileiros.

Nesse sentido, percebe-se que as igrejas Católica Romana, Luterana e Episcopal optaram por traduzir musicalmente os postulados da TdL. Mesmo que não seja a única teologia a orientar suas opções como denominações e suas liturgias, pode-se detectar facilmente essa inclinação nos cantos dos cancioneiros O Povo Canta e O Novo Canto da Terra.

Quando optam pelas expressões musicais locais, as igrejas cristãs revelam querer falar uma linguagem mais popular, acessível à maioria. Quando, no Brasil, o canto das igrejas vem expresso em sambas, xotes, baiões e marchinhas, com síncopes rítmicas tão próprias da música folclórica do país, a igreja está afirmando desejar ficar mais próxima do povo, para que os ensinamentos cristãos sejam mais facilmente retidos e repetidos.

As demais igrejas protestantes históricas, como a Metodista, Batista e Presbiteriana, estão também tornando contemporânea sua linguagem musical, mas de forma diferente. Na verdade, estão apenas contextualizando os “gestos” do fazer musical, quando copiam os trejeitos das bandas estrangeiras e traduzem, mesmo que sofrivelmente, as canções que a mídia vem propagando “aos quatro ventos”. Essas igrejas imitam as neopentecostais, adotam seus cantos, compram seus cancioneiros. Mais que isso: abandonam seus hinários oficiais e passam a projetar nas paredes as canções dos carismáticos. Estão, com isso, perdendo a identidade denominacional. Fragilizam sua teologia, pois os textos desses cantos dão prioridade à doxologia e, embora falem também sobre a comunhão entre irmãos, não dão relevo a assuntos tão vitais para o protestantismo histórico, como o pecado, a salvação pela graça de Deus, a cruz, morte e ressurreição do Senhor Jesus. Os cantos avulsos provenientes da ala carismática tampouco descem das “regiões celestiais” para o nível do chão, a fim de se colocarem à disposição do serviço ao próximo e/ou aos menos favorecidos. A tendência atual de algumas igrejas protestantes históricas em abandonar seus hinários oficiais enfraquece sua identidade como denominação distinta e não valoriza suas raízes históricas, muitas vezes arduamente conquistadas, como ocorreu diante das dificuldades encontradas para a implantação do protestantismo no Brasil.

Em resumo, as igrejas cristãs têm-se apercebido de que é essencial guardar a herança que outras gerações lhes legaram, herança expressa nos cantos de eras passadas, mas que preservam seu passado histórico e fomentam sua identidade. Esse fato foi ainda constatado pela observação do apego que os protestantes de algumas igrejas não-litúrgicas têm expresso pelo seu hinário, chegando a tomá-lo como um “livro doutrinário” ou documento oficial da denominação. Por causa de tal função, sentem que é imperioso resguardar a sua memória. Algumas vezes, a própria igreja se deu conta de que a tradição dos cantos vale a pena ser mantida quando se deseja educar o povo. A intenção educativa pode ser sentida através da retenção dos cantos das várias partes do culto, como os da missa da Igreja Católica Romana, que ajudam os fiéis a compreendê-la melhor e retêm mais eficientemente a mensagem cristã. Também por essa razão, os cantos para crianças não podem ser esquecidos.

Verificou-se, por outro lado, que a maioria das igrejas sentiu necessidade de contextualizar seus cantos para igualar a sua linguagem àquela falada na cultura à sua volta, principalmente entre os jovens. Lançando mão de diversificados procedimentos, alguns mais outros menos exitosos, algumas igrejas cristãs preocupam-se em ser “sal e luz” no século XX.


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