por: Parcival Módolo
Quando Martinho Lutero referiu-se à música de boa qualidade como eficiente veículo para explicação do texto, serva, portanto, e não espetáculo por si mesma, estava, na verdade, refletindo parte do pensamento de sua época: música boa agradava a Deus, música má agradava a Satanás, independente de ela estar associada ao culto ou não. Os critérios que definiam a qualidade e a conseqüente utilidade da música eram absolutamente claros. Falava-se, assim, objetivamente, em música própria para adoração a Deus e em música objetivamente imprópria para o serviço litúrgico.
Se Lutero enfatizava a importância da anunciação da Palavra de Deus através da prédica no culto, entendia que boa música poderia fixar as verdades teológicas anunciadas. É neste contexto que deve-se entender sua concessão: “Depois (ao lado) da teologia, à música o lugar mais próximo e a mais alta honra”.(1) É que, para ele, teologia e música pertencem-se, relacionam-se estreitamente, já que música é veículo apropriado para anunciar a Palavra de Deus, e o faz de forma especial, em sons. Entendeu Lutero que do maravilhoso presente divino (donum divinum et excellentissimum) dado exclusivamente aos homens, a união dos sons vocálicos (vox) à palavra (sermo), de música e canto, deviam ser corretamente utilizados para que esses mesmos homens adorassem seu Deus.(2)
“As notas musicais vivificam o texto”.(3) Elas intensificam a força da palavra. Na tradição musical reformada luterana, a música revela o texto. Ela o explica (explicatio textus). Nesse sentido ela deverá ser uma espécie de exegese, uma explanação do texto, um “sermão em sons” (prædicatio sonora). Segundo Lutero, “Deus mesmo fez com que o evangelho fosse anunciado com música”.(4) O cântico congregacional só atingirá seu objetivo se a Palavra de Deus puder ser anunciada, absorvida e preservada pelo povo por meio dele.(5) É este o “cântico popular” defendido por Lutero para o culto. Um cântico que explicasse o evangelho para o povo e o interiorizasse. “Cântico popular”, neste contexto, não se refere à música profana da época, se considerada música má, e portanto, agradável apenas aos ouvidos de Satanás. A música que se canta no culto deve “fortalecer e intensificar o Santo Evangelho e também impulsioná-lo”.(6)
Boa Música, Música Má
O conceito de “qualidade”, ou a definição do que seria bom ou mau no que se referia à música, era, nos séculos XVI a XVIII, bastante objetivo e claro. Falava-se em música boa e má usando-se parâmetros muito bem determinados e que iam além da beleza do produto final, da intenção de quem o produzira e, até mesmo, da finalidade da obra.
No ano de 1700 foi editado em Hamburgo uma espécie de método de estudo para o baixo-cifrado, técnica musical bastante comum na época. O editor, Friedrich Erhard Niedt, escreveu no prefácio:
…a finalidade e a razão de toda música devem ser somente a glória de Deus e a recreação sadia da alma. Onde isto não é levado em conta, não há música propriamente, e aqueles que abusam desta nobre e divina arte são “musicantes” do demônio, pois Satanás tem seu prazer em ouvir tais coisas infamantes. Para ele, tal música é boa o suficiente, mas para os ouvidos de Deus, são berros infamantes. Quem deseja, na sua profissão de músico, ter a graça de Deus e uma consciência limpa, não desonra esta grande dádiva de Deus, pelo seu abuso.(7)
Niedt nos revela aqui parte do pensamento corrente do seu tempo e que, por sua vez, era uma síntese do pensamento dos dois séculos anteriores. Seguindo-se seu raciocínio, toda música, mesmo a secular, devia ser escrita “para a glória de Deus”. Para isso, devia preencher, naturalmente, alguns requisitos. Se o fizesse agradaria a Deus. Mas se não o fizesse, agradaria a Satanás, mesmo que houvesse sido composta para agradar a Deus!
O Princípio da Ordem e do Número
No período do barroco, “boa música” estava associada ao princípio da ordem e do número. Falava-se em “harmonia sonora”, uma arte baseada em regras bem determinadas. O princípio da ordem, musical ou não, era divino. O princípio do caos, musical ou não, era satânico. Satanás era, aliás, o principal desestruturador da ordem divina. A música que recebia aceitação e aprovação como “boa” era aquela possível de ser racional e intelectualmente decodificada. Devia “falar ao intelecto”. Quando isto acontecia, então podia-se falar em uma verdadeira Ars, ou seja, em Arte no sentido mais restrito da palavra. A Ars Musica baseava-se no princípio da ordem e do número. Se não o fosse, era objetivamente má.
As raízes desta concepção vão até a Idade Média, ou ainda mais longe. Não só a música, como também outras formas de expressão artística, pareciam tentar refletir essa dualidade quase maniqueísta do bem e do mal, do bom e do ruim. Obras da pintura, escultura, relatos de visões que se conservaram escritas, mitos e lendas a partir de figuras bíblicas, nos revelam sempre um universo bipolarizado. Se os templos abrigam imagens de santos e anjos em seu interior, admitem também dragões, górgones e demônios esculpidos no seu exterior. Se as telas, afrescos e retábulos retratam coros de anjos tocando belos instrumentos nos céus, retratam também o lamento e o ranger caótico da música do diabo em esferas mais baixas.
Por causa da sua estrutura ordenada numericamente, a música era apropriada para refletir e até mesmo para representar o cosmos, o universo, a criação divina, que, da mesma forma, estavam ordenados à partir do número. Já no tratado anônimo de música, surgido antes do ano 900, Musica Enchiriadis, encontra-se o princípio: “Na formação da melodia, o que é gracioso e gentil será determinado pelo número, aos quais os tons se condicionam. O que a música oferece […], tudo é formado a partir do número. Os tons passam rapidamente, mas os números […], esses permanecem”.(8) Em 1538 escreveu Lutero em seu “Encomion musices“: “Nada há sem […] o número sonoro”.(9)
Quase dois séculos mais tarde, em 1707, na época de J. S. Bach, Andreas Werckmeister escreveu: “As proporções musicais são coisas perfeitas que o intelecto pode compreender. Por isso são agradáveis. Mas o que o intelecto não compreende, o que confunde e perturba, isso o ser humano abomina”.(10)
Eis aí, em todos esses registros, de diferentes períodos históricos, a definição de boa música e de música má. Era a essa boa música que Lutero se referia quando dizia querer vê-la “explicando o texto” e “pregando através de sons”.
Exegese do Texto na Música Vocal
Johann Gottfried Walther, em seu Praecepta der Musicalischen Composition de 1708, afirma que se um compositor quiser “…compor música para um texto específico”, deve representar “…não só a ideia geral do mesmo mas também representar musicalmente o significado e a expressão de cada palavra específica”.(11)
Walther não estava dizendo nada novo. Estava, antes, refletindo o pensamento de sua época, que entendia boa música como aquela que, organizada numericamente, representasse o texto da qual devia ser serva. Só assim agradaria a Deus.
É assim que deve ser entendida, por exemplo, toda a obra de J. S. Bach. Toda ela é “boa música”, toda ela escrita para agradar a Deus, sempre baseada no princípio do número, sempre representando cada palavra do texto, quando música vocal. Por isso “S. D. G.” (Soli Deo Gloria), expressão que Bach invariavelmente assinalava no final das suas obras, mesmo daquelas que não eram escritas para o serviço litúrgico.
Bach era amigo e parente de Walther: o avô de Walther era meio irmão da mãe de Bach. Tornaram-se amigos em Weimar, onde ambos trabalharam na mesma época, Walther como organista, Bach como músico de orquestra, e mais tarde Mestre de Capela. Bach foi padrinho de batismo do primeiro filho de Walther. Foi em Weimar, por essa época, que Walther escreveu seu tratado de composição musical. Bach conhecia o conteúdo do volume e certamente trabalhou com Walther na sua elaboração.
Representar cada palavra do texto era preocupação antiga, anterior a Bach e a Walther. Ali pelo ano de 1606, um grupo de compositores, regentes e teóricos de Hamburgo, reuniu-se para elaborar uma espécie de catálogo de figuras retórico-musicais. Eram cinco músicos conceituados: Nikolaus Listenius, Heinrich Faber, Johann Andreas Herbst, Joachim Burmeister e Christoph Bernhard. O volume produzido chamou-se Musica Poetica e utilizava-se de expressões gregas para classificar diferentes figuras musicais. Assim, por exemplo, expressões no texto como “Ele ressuscitou” deveriam ser representadas por uma Anabasis (em grego “subida”, “ascensão”), uma linha melódica de muitas notas ascendentes. Se o texto, ao contrário, trouxesse palavras que falassem em descida, o Advento, por exemplo, ou quem sabe a palavra “inferno”, o compositor deveria utilizar-se de uma Katabasis (em grego “descida”), representada musicalmente por uma longa figura de notas descendentes.(12)
O catálogo Musica Poetica fala ainda em Paranomasia, em Apocope, em Katachresis, em Aposiopesis, em Pathopoeia, em Hypotyposis, em Anaphora, em Kyklosis, em Hyperbaton, em Palillogia e em muitas outras expressões mais, todas elas representando figuras musicais que descreveriam o texto ao qual estivessem associadas.
Essa música agradava a Deus. Essa música era feita na igreja e servia de modelo para a música secular praticada nas cortes da época. Compositores não sacros viajavam distâncias enormes para aprenderem com os músicos sacros, imitarem seu estilo, copiarem suas formas musicais. E é essa a tradição musical reformada. É dessa música que somos herdeiros.
Entretanto, deixamos de ser “referência” há muito tempo. A música secular não mais se espelha na nossa. Os músicos seculares não mais procuram imitar nosso estilo. Ao contrário, nós é que corremos desesperadamente atrás da secularização de nossa música. Nós evangélicos é que buscamos mais e mais modelos seculares para a música do nosso culto a Deus. Não falamos mais em “boa música” e em “música má”. Não mais pensamos em música objetivamente boa para agradar a Deus, nem entendemos seu polo contrário como música que agrada a Satanás. Não temos mais critérios objetivos que nos ajudem a falar de um tipo de música verdadeiramente sacra.
Além disso, música não tem mais sido serva da Palavra de Deus, mas sim espetáculo nos nossos cultos. Não mais cantamos teologia: cantamos aquilo que agrada a um ou a outro grupo da igreja. Aliás, música, que sempre foi o elo de ligação entre diferentes gerações, hoje tornou-se o principal fator de discórdia, quando não de separação “intra ou extra-muros” em nossas igrejas. Não mais cantamos nossa fé reformada, não mais cantamos aquilo em que cremos, da forma como cremos. É por este motivo que tanto faz cantarmos os hinos dos nossos hinários ou qualquer outro cântico, de qualquer outra seita, que diga qualquer coisa, desde que nos deixe felizes ou emocionados. E é também por esta razão que tanto faz freqüentar a nossa igreja ou a do vizinho, ou qualquer nova seita que vier.
Não acredito, como músico, que o problema seja, todo ele, causado pela música. Penso que ela é apenas sintoma, reflexo. Temo que haja muito mais a considerar. Mas é também como músico que acredito que a música verdadeiramente sacra poderá nos ajudar a reencontrar caminhos porventura perdidos, a falar da nossa identidade e, certamente, proclamar o nome daquele em quem cremos, por que cremos e como cremos. Nossa música poderá ser novamente explicatio textus, praedicatio sonora.
Notas
1 – “Nach der Theologia der Musica den nähesten Locum und höchste Ehre” (M. Lutero, “Tischreden,” em D. Martin Luthers Werke, vol.6 (Weimar, 1921) n. 7030).
2 – M. Lutero, “Encomion musices,” em D. Martin Luther Werke, vol.50 (Weimar, 1914) 372.
3 – “Die Noten machen den Text lebendig” (M. Lutero, “Tischreden,” em D. Martin Luthers Werke, vol.2 [Weimar, 1913] n. 2545).
4 – Ibid., n. 1258
5 – Carta de Lutero a G. Spalatin em 1523 (“Briefwechsel,” em D. Martin Luthers Werke, Vol. 3 [Weimar, 1969] 220).
6 – “Das heylige Evangelion[…] treyben und ihn schwanck […] bringen” (M. Lutero, no prefácio da 1a. edição do Geistlichen Gesanbüchlein de Wittenberg, editado por J. Walther, 1524).
7 – F. E. Niedt, Musicalische Handleitung […] vom General-Bass (Hamburgo, 1700). Citado em Bach-Dokumente II, 334
8 – “Musica Enchiriadis.” Scholien, em: Scriptores ecclesiastici de musica sacra potissimum, ed. M. Gerbert, vol.1 (St. Blasien, 1784) 195
9 – “Nihil enim est sine […] numero sonoro.” (Luther, “Encomion musices,” 369).
10 – A. Werckmeister, Musicalische Paradoxal-Discourse […] (Quedlinburg, 1707) 13.
11 – J. G. Walther, Praecepta der Musicalischen Composition (1708), ed. P. Benary (Leipzig, 1955) 14.
12 – J. Burmeister, Musica Poetica (Rostock, 1606); ed. fac-simile por M. Ruhnke (Kassel,1955).
Fonte: http://thirdmill.org