por: Pr. Douglas Reis
Interpretando e Aplicando Conceitos de Ellen White
Durante meu processo de aceitação do adventismo, em nenhum momento fui informado a respeito de como deveria me servir da música. Lembro-me de que mantive minha preferência pelo rock de bandas como Led Zeppelin, Beatles, Engenheiros do Havaii, além de ouvir a música eletrônica que tocava nas FMs na década de 90. Jamais imaginei que o conjunto de crenças que eu aceitara incluía uma nova percepção do mundo, englobando todas as áreas da vida. Isso certamente, conforme percebi mais tarde, exigia uma transformação de meus gostos musicais.
Desde que me tornei adventista, tenho acompanhado a mudança de paradigma musical dentro da igreja. Percebo que boa parte da produção fonográfica denominacional tem sofrido influência de músicos cristãos de outros segmentos, que, obviamente, não são orientados pelos mesmos princípios que os adventistas. Esta constatação não intenciona ecoar as velhas queixas quanto ao uso da bateria no acompanhamento dos play-backs. Costumo me referir à bateria como a “ponta do iceberg”. O que está oculto às vistas é a questão da cosmovisão adventista.
Como denominação cristã, os adventistas acreditam ter recebido “luz especial” para o “tempo do fim”, período que antecede a segunda vinda de Jesus à Terra. O objetivo do Senhor, ao revelar de forma especial Sua vontade antes do Advento, é preparar um povo e, através dele, o mundo, para o evento derradeiro da História como a conhecemos.[1] Ou seja, a luz que Deus tem nos dado objetiva formar nossa visão de mundo, o que se reflete em nossa identidade como povo de Deus.
Caso percamos nossa identidade singular, não poderemos sustentar a insígnia de povo santo, escolhido de acordo com Sua vontade. Tampouco, poderemos cumprir nossa missão, de anunciar a queda de Babilônia, a advertência aos sinceros que a deixem e o convite a adorar ao Deus verdadeiro. Existimos como adventistas para cumprir esta missão.
Ocorre que a música se relaciona com a adoração. Se quisermos chamar outros à adoração correta, o que está incluso na primeira mensagem angélica (Apoc. 14:7), nós mesmos precisamos conhecê-la e praticá-la. Do contrário, se continuarmos a ser influenciados em nossa música e refletirmos a cultura religiosa dominante, no que diz respeito à nossa adoração, não podemos reclamar nossa identidade singular e, muito menos, cumprir a nossa comissão (Mateus 5:13).
Teríamos critérios claros e específicos para nos orientar na escolha e execução de músicas adequadas com nossa cosmovisão adventista? Creio que resposta seja “sim”. Dada a importância deste assunto, Deus não Se olvidaria de comunicar princípios-guia para o Seu povo na época pré-advento.
Infelizmente, assim como em minha experiência de recém-converso, muitas pessoas jamais foram informadas de que nossa visão de mundo deve selecionar e produzir música que reflita nossa identidade singular. Tais pessoas acabam, com o tempo, formando critérios pessoais sobre o que envolve a música (como música para a adoração, para entretenimento, para a devoção pessoal, etc.), baseando-se em sua própria experiência (anterior ou posterior à conversão),e nos padrões de algum tipo de mídia (secular ou cristã). Nota-se que tais influências acabam originando critérios bastante subjetivos[2] e, portanto, incompatíveis com o modo de Deus agir. Se ao longo da História, o Senhor tem sido bem específico ao revelar Sua vontade para cada área da vida humana[3], fica evidenciado que há uma verdade específica no que tange à música.
Tenho considerado essas questões há algum tempo, escrevendo sobre aspectos da música cristã moderna passíveis de crítica, com o objetivo de, pelo contraste, destacar a dicotomia entre o que nossos princípios prescrevem e como temos agido em relação à música. Justamente por não objetivarmos aqui qualquer crítica ao trabalho realizado por pessoas do meio musical Adventista (sejam elas ou não bem intencionadas), nortearemos nossa análise a partir de dados genéricos relacionados à música e adoração.
Uma vez que o assunto da adoração é vital para mantermos nossa identidade e, conseqüentemente, cumprirmos nossa missão, consideramos como apropriado analisar criticamente a atual conjuntura da Música Sacra Adventista. Fazemos isso apenas com o propósito de prestar esclarecimentos sobre um assunto importante, entendendo que um debate aberto promoverá crescimento neste campo doutrinário. Portanto, não se trata de uma “disputa” ou um ataque pessoal a qualquer músico Adventista de nosso tempo. Espero que estes sejam como e preocupem-se com o avanço da mensagem adventista nesses últimos dias.
Ao longo de nossa trajetória no contexto Adventista, quando falamos algo relacionado à música e à adoração, percebemos três premissas recorrentes e difundidas, a saber: a) a subjetividade de critérios filosóficos/teológicos para nortear a música cristã contemporânea, b) a dissociação entre a escolha da música e seu efeito sobre os adoradores e c) o reducionismo, tanto na abordagem histórica do contexto cultural no qual Ellen White estava inserida quando escreveu sobre a música, quanto na aplicação atual do que ela escreveu.
No presente artigo, discuto de forma sucinta cada um dos três aspectos citados acima e, a seguir, ocupo-me em dissertar sobre 9 questões que julgo importantes para a análise da Música Sacra dentro da cosmovisão Adventista. Na conclusão, procuro demonstrar a premente necessidade de um estudo comparativo das tendências musicais adventistas com as orientações inspiradas de Ellen G. White.
De antemão, reforço que o presente artigo não tem a intenção de causar celeuma ou agitar os ânimos; tecemos considerações que nos parecem, além de informativas, cabíveis, sem perder o respeito por aqueles que pensem diferentemente. Convidamos a todos que amam a causa do Senhor a refletir sobre a música dentro da cosmovisão adventista. Já passa o tempo de unirmos nossa mente para que a música na igreja deixe de ser “terra-de-ninguém”.
A subjetividade de critérios filosóficos/teológicos para nortear a música cristã contemporânea
Em toda espécie de arte[5], a forma tem geralmente refletido o conteúdo. Revoluções no pensamento e filosofia humana têm originado novas correntes artísticas, com preocupações estéticas distintas das correntes anteriores.
Para citar um exemplo: de 11 a 18 de Fevereiro de 1922 ocorreu a semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. Os maiores poetas da época eram neo-parnasianos e simbolistas menores, influenciados pela poesia européia, notadamente a francesa. A proposta dos novos poetas era substituir o formalismo na poética pelo experimentalismo das correntes vanguardistas da Europa. O público ficou chocado com as paródias, os poemas-piadas, os versos-livres (não metrificados) e a algazarra modernista. Isso porque a concepção artística do que era um poema passara por uma transformação. E a revolução não atingira apenas o conteúdo (tema), mas igualmente a forma. Em arte, geralmente forma e conteúdo se integram.
Falando da música, temos que entender que, como forma de arte, produto da cultura humana, ela reflete a cosmovisão de um indivíduo ou grupo de pessoas.[6] Para os grupos religiosos, o culto em geral, e o tipo de música em especial, é conduzido de acordo com a visão que se tem da divindade. [7]
Um exemplo disso temos na música entoada por um muezim, chamando os fiéis à prece vespertina. Mulçumanos são extremamente formalistas em seu culto, recitando textos árabes e “decorando” orações, porque vêem a Deus quase que como um Ser impessoal, um Absoluto distante do homem. O tipo de hinos cantado em uníssono numa espécie de cantochão, que lembra uma “ladainha” solene, está em conformidade com a forma muçulmana de enxergar Alá, seu Deus.[8]
Vejamos outro caso: a música reggae surgida na Jamaica, era uma expressão mística do rastafarianismo, movimento político-religioso, também de caráter étnico, surgido na Jamaica, que a partir de sua luta contra a “estrutura escravista britânica” reinterpretou a promessa bíblica da Terra Prometida, localizada agora na “Etiópia/África”. O reggae está profundamente ligado com substâncias alucinógenas, produtoras de “estados de consciência”, que, por sua vez “são ao mesmo tempo fonte de conhecimentos e comunicação com o sagrado, provocados não só pela música como pela erva, pelo contato com elementos da natureza, pelos sonhos e pelas visões.” Não à toa, o cantor de reggae Peter Toshem entrevista à revista High Times em 1981 afirmou que “[a] espiritualidade e a inspiração são decorrentes da capacidade do reggae de ‘hipnotizar’ e fazer o ouvinte ‘sair de si’, isto é, a música é capaz de provocar no ouvinte o acesso a outros ‘estados de consciência’.”[9]
Entendemos que os exemplos dados reforçam o conceito, que nos será caro, de que a cosmovisão, seja qual for, molda a expressão artística.
Não há um divórcio entre forma e conteúdo, o que garante a eficácia de determinada escolha musical para um fim específico. A adoração deixa transparecer que conceitos foram internalizados pelo adorador. Ou em outras palavras: “Aquilo com que você se deleita transparece quando dirige o louvor.”[10]
A música cristã tem sofrido muitas alterações ao longo da História, haja visto que a cultura ocidental é mais passível de mudanças. E, uma vez que as correntes filosóficas têm, principalmente desde o Iluminismo até o presente, se oposto à cosmovisão bíblica, as mudanças, em termos de ética e princípios, não são positivas.[11]
Em decorrência das mudanças na música cristã, é recorrente o debate Forma x Conteúdo, sendo que alguns tendam a restringir toda manifestação musical a uma (ou a algumas) determinada(s) forma(s), ao passo que outros argumentem que a forma não é importante.[12] Geralmente, a música cristã moderna segue a segunda tendência, se valendo da premissa de que “todo louvor seja aceitável a Deus”.
Realmente toda forma de adoração seria válida? Se encararmos a adoração como um reconhecimento do caráter amoroso de Deus e uma homenagem sincera a Seus atributos, seríamos levados a reconhecer que a adoração tem de agradar-Lhe. É dever do adorador apresentar algo agradável ao ser adorado. Costumo exemplificar isso de uma forma simples: se alguém quiser me presentear, não me dê uma roupa da cor vermelha! Por questão de gosto pessoal, não conseguiria sentir-me bem usando uma roupa vermelha. Na experiência humana, quando queremos presentear a alguém, levamos em conta o gosto da pessoa, não o nosso. Na adoração, devemos levar em conta o “gosto” divino.
O próprio Jesus disse à mulher samaritana que Deus, o Pai, busca aqueles que o adorem em “espírito e verdade” (João 4:23). A que o Mestre se referia? Para Jesus, a adoração é tanto um fenômeno espiritual – e, portanto, independente do local (e a dúvida da interlocutora estava relacionada com qual seria o correto: adorar no templo em Jerusalém ou no monte Gerizim), do ambiente, dos objetos cúlticos, etc – quanto algo coerente com a Revelação, ou, nas palavras dEle, com a “Verdade”. Daí se conclui que há uma verdade a respeito da adoração que todo adorador deveria conhecer e praticar, para estar entre os adoradores daquela espécie que Deus-Pai busca.
De modo geral, uso textos do Espírito de Profecia para mostrar que o louvor agradável a Deus, em qualquer esfera (quer pessoal, quer pública), é o que está coerente com Sua Revelação (portanto, fora da competência de sentimentos e intenções meramente humanos).[13] Gostaria de acrescentar a esta reflexão mais um texto, que trabalha com os conceitos fundamentais da resposta de Jesus à samaritana (o binômio “espírito/Verdade”):
“Quando os seres humanos cantam com o espírito e o entendimento, os músicos celestiais apanham a harmonia, e unem-se ao cântico de ações de graças. Aquele que nos concedeu todos os dons que nos habilitam a ser coobreiros de Deus, espera que Seus servos cultivem sua voz, de modo que possam falar e cantar de maneira compreensível a todos. Não é o cantar forte que é necessário, mas a entonação clara, a pronúncia correta, e a perfeita enunciação. Que todos dediquem tempo para cultivar a voz, de maneira que o louvor de Deus seja entoado em tons claros e brandos, não com asperezas, que ofendam ao ouvido. A faculdade de cantar é um dom de Deus; seja ela usada para Sua glória.“[14]
Gostaria de salientar que o texto desdobra o conceito de adorar em “espírito e verdade” em algumas ações específicas, como a entonação “clara”, “branda”, sem “asperezas”, apenas para destacar algumas; tendo essas características citadas em mente, alguém dificilmente poderia concluir que, em matéria de música, “Deus aceita tudo”. O conteúdo do louvor musical deve ser considerado tanto quanto a sua forma. É claro que estamos falando de princípios revelados, mas não podemos criar um “índex” catalogando as músicas ou os cantores “corretos”.[15] A Revelação deve ser aplicada de forma coerente pelo adorador individual, a medida em que ele cresce em sua compreensão da Verdade, rendendo sua individualidade ao controle do Espírito Santo; não ser trata de uma “anulação” do indivíduo, como propõe a filosofia chinesa, mas de submeter-se a Deus, expressando individualmente o quanto Ele representa para nós:
“Nossa confissão de Sua fidelidade é o meio escolhido pelo Céu para revelar Cristo ao mundo. Temos de reconhecer-Lhe a graça segundo nos é dada a conhecer através dos santos homens da antiguidade; mas o que será mais eficaz é o testemunho de nossa própria experiência. Somos testemunhas de Deus, ao revelar em nós mesmos a operação de um poder que é divino. Cada indivíduo tem uma vida diversa da de todos os outros, uma experiência que difere essencialmente da sua. Deus deseja que nosso louvor a Ele ascenda, com o cunho de nossa própria individualidade. Esses preciosos reconhecimentos para louvor da glória de Sua graça, quando corroborados por uma vida semelhante à de Cristo, possuem irresistível poder, eficaz para salvação de almas.” [16]
Muitos, ao se depararem com o texto acima, poderiam argumentar que, se o que vale é o “testemunho de nossa própria experiência” e se essa experiência “difere essencialmente” da de outros, então somos “livres” para usar critérios pessoais e subjetivos em nossa maneira de louvar a Deus através da música. No entanto, o contrapeso a essa conclusão imediata está nos outros dados da Revelação sobre o assunto. Se aceitarmos que a Revelação não pode se contradizer, então forçosamente admitiremos que o testemunho de uma experiência iluminada por Cristo se aproximará em cada ponto das ações específicas mencionadas nos diversos textos que abrangem o assunto.
Deus julga a cada ser humano pela luz que recebeu. O Senhor aceitou quando Miriã “tomou na mão um tamboril, e todas as mulheres saíram atrás dela com tamboris, e com danças” (Êxo. 15:20), porque a sua cultua era egípcia, e não havia luz maior sobre a adoração naquela situação vivencial (sitz in libem). Como adventistas, entendemos que o cabedal de conhecimento que temos hoje relacionado ao assunto não nos permitiria uma prática análoga a de Miriã.[17] Os adventistas entendem que há diretrizes divinas que provêem parâmetros musicais.
Em contrapartida, a posição dos evangélicos em geral difere completamente do que as citações do Espírito de Profecia que acabamos de ler nos sugerem. Um dos mais influentes líderes evangélicos, o Pr. Rick Waren, reconhece que o poder da música leva a mensagem “diretamente para o coração”. Por isso, segundo ele, temos a oportunidade de utilizar a música contemporânea, com seu poder de alcance, para espalhar “valores de Deus”; do contrário, utilizando o mesmo tipo de música, “satanás vai ter acesso a uma geração inteira”.
Embora Waren reconheça que o tipo de música determine a identidade da igreja e seu posicionamento na comunidade em que estiver inserida, ele alerta os cristãos de que têm de “admitir que não existe um estilo de música em particular que é ‘sagrado'”. Segundo o seu parecer, “O que faz uma música sagrada é a sua mensagem [letra]. A música não é nada mais do que um arranjo de notas e ritmo. […] Não existe música cristã, mas sim, letras cristãs. Se fosse tocada uma música sem palavras, você não saberia se é cristã ou não.”[18]
Esta opinião é bem aceita nos círculos evangélicos[19], mas não é unânime. Berit Kjos, analisando a perspectiva de Waren questiona a tendência “liberal” de aderir à adoração contemporânea. Kjos observa que “A escolha do pastor Warren na área da música está de acordo com as principais tendências atuais de mudança – na cultura, nos negócios e também nas igrejas.” Ele ainda afirma que isso faz parte de uma estratégia de marketing voltada para as “‘necessidades sentidas’ das massas.” “Assim, quando Rick Warren ofereceu a música que a maioria das pessoas queria, elas se arrebanharam para a igreja.” Mas esse “sucesso” não prova, como Kjos ainda observa, que Deus tenha aprovado determinada escolha musical.Usando de lógica irrefutável, Kjos pergunta:
“Quando o pastor Warren nos diz que ‘Deus ama todos os tipos de música’ e que ‘Deus ama a variedade’ você pode imaginar onde ele traçaria a linha? Essa linha divisória vital curvar-se-ia de acordo com nossa cultura mutável? Ou com a crescente tolerância a todos os tipos de variações espirituais e escriturais? Essas são questões cruciais, pois a música se tornou uma força motriz no Movimento de Crescimento de Igrejas.”[20]
Acredito que essa seja a “chave da questão”. Qual a linha divisória, se Deus ama todos os tipos de música? Do Rock ao Axé, qualquer gênero é aceitável! Mas se a variação musical é uma das conseqüências da mutabilidade da Filosofia Ocidental, estaria a adoração sujeita a tanta mudança, sendo que ela se fundamenta na Revelação de um Deus que não muda? Ou estamos tentando acompanhar as tendências seculares para agradar os não-cristãos?
Alguns poderiam afirmar “Música é questão de cultura”. É verdade que toda expressão artística (música, artesanato, artes plásticas, etc) parte de uma cultura. Mas os valores é que moldam a cultura. Se os princípios da Palavra de Deus moldam nosso coração, não nos afastaremos totalmente da nossa cultura de origem – no meu caso, e no da maioria dos leitores, a cultura brasileira – , mas ela será transformada, e seus aspectos contrários ao Evangelho serão sublimados.
Até que ponto um culto contemporâneo realmente atrai pessoas preocupadas em servir a Deus e lhes provê instruções suficientes para promover um crescimento espiritual coerente com a Revelação, em todos os seus variados matizes? Será que fazer “concessões” quanto à adoração não nos leva a “amenizar” os demais mandamentos e orientações das Escrituras? David Fisher conta a história que, em conversa com seu filho, um cristão “afastado”, ele lhe sugeriu que freqüentasse uma igreja próxima, que possuía cultos no estilo “tradicional” e “contemporâneo”. Seu filho retrucou, afirmando não estar interessado em cultos “modernos”, nos quais os cristãos tentam parecer “amenos”. “O cristianismo”, afirmou o rapaz, “não é ameno. Ele tem de ser diferente.”[21]
Quando oferecemos música secular com letra religiosa, estamos desfocando a adoração, que consiste em oferecer algo santificado a um Deus Santo. Deus deve estar no centro da adoração para que ela seja bíblica. Notemos o que o Espírito de Profecia afirma sobre o impacto da adoração em “espírito e Verdade” sobre os não-cristãos:
“Vi que todos devem cantar com o espírito e com o entendimento também. Deus não Se agrada de algaravia e dissonância. O correto é sempre mais agradável a Ele que o errado. E quanto mais perto o povo de Deus se puder aproximar do canto correto, harmonioso, tanto mais é Ele glorificado, a igreja beneficiada e os incrédulos favoravelmente impressionados.”[22]
Deus se agrada do “correto”, com aquilo que está relacionado com o “entendimento”; perceba que o binômio que mencionamos anteriormente, referindo-nos a João 4:24, “espírito/ Verdade”, encontra um correspondente neste novo binômio “espírito/entendimento” – sendo o aspecto espiritual, como já o afirmamos, ligado ao próprio fenômeno da espiritualidade, enquanto o “entendimento” relacionado à apreensão da Revelação, ou seja, da “Verdade” bíblica objetiva. Quando temos a preocupação de ser coerentes com a Revelação, além de glorificar a Deus, somos beneficiados como povo e impressionamos os “incrédulos”.[23] Em outro texto, lemos o seguinte:
“Quando os professos cristãos alcançam a alta norma que é seu privilégio alcançar, a simplicidade de Cristo será mantida em todo o seu culto. As formas, cerimônias e realizações musicais não são a força da igreja. No entanto, estas coisas tomaram o lugar que deveria ser dado a Deus, tal como se deu no culto dos judeus.
O Senhor revelou-me que, se o coração está limpo e santificado, e os membros da igreja são participantes da natureza divina, sairá da igreja que crê a verdade um poder que produzirá melodia no coração. Os homens e as mulheres não confiarão então em sua música instrumental, mas no poder e graça de Deus, que proporcionará plenitude de alegria. Há uma obra a fazer: remover o cisco que se tem trazido para dentro da igreja. …”[24]
Não devemos estar tão preocupados em ser conhecidos como uma “potência musical” quanto em “alcançar a norma mais alta”. Isso se torna real quando “a simplicidade de Cristo” é mantida, e “os membros da igreja são participantes da natureza de Cristo”. Se estamos em comunhão com Cristo e mantemos obediência à Sua Revelação, vamos apresentar uma adoração cujo impacto criativo atingirá os corações, não porque essa seja a preocupação principal, mas porque a presença de Deus produzirá impressão duradoura nos corações. Quando analisarmos a interpretação de Ellen White, abordaremos mais detidamente os aspectos normativos de sua compreensão da música na adoração.
Outro fator que explica a mudança na música é o fato de que a modernidade tem contribuído para a construção de um novo paradigma religioso, o da “modernidade religiosa”, cuja marca de identificação é “a tendência geral para a individualização e a subjetivação da vida religiosa.” Embora este paradigma afete as “religiões tradicionais”, “não cancelou as formas de crer, que são cada vez mais individuais, subjetivas, dispersas e feitas de diversas combinações, ou, em uma única palavra, fluidas.”[25] Esse cristianismo mais “fluido”, não revela, em sua adoração, uma preocupação com a forma, mas com a experiência subjetiva em níveis pessoais.[26]
Tão fundamental quanto reconhecer que a concepção de mundo e do Ser adorado exercem papel decisivo no tipo de adoração e na música empregada durante o momento cúltico, é admitir que a música tem efeito direto em nossa mente – assim, ou a música favorece a atmosfera de reverência, entrega, submissão, louvor, gratidão e compromisso durante o processo de adoração ou deturpa a adoração, comunicando uma mensagem independente, não-correlacionada com os princípios de verdadeira adoração. Esse é o ponto de que trataremos no próximo tópico.
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Notas:
[1] Houve um período de desenvolvimento doutrinário, em torno da compreensão da doutrina do santuário, bem como das três mensagens angélicas de Apocalipse 14. Um excelente trabalho sobre este assunto é Alberto R. Timm, “O Santuário e as três mensagens angélicas: Fatores integrativos no desenvolvimento histórico das doutrinas adventistas” (Engenheiro Coelho,SP: Imprensa Universitária Adventista, 2002).
[2] No Mato-Grosso do Sul, conheci uma professora recém-conversa, que vinha do sul do país. Como havia freqüentado uma igreja adventista de tendências liberais, ela não achava errado assistir shows de cantores seculares e, infelizmente, na nova cidade, associou-se a membros da igreja que também não viam problemas nessa prática. Quando minha esposa conversou com ela e expôs as orientações bíblicas e o pensamento denominacional sobre a questão, foi um choque para aquela professora ver que estava agindo de forma equivocada – não por desobediência aberta, mas por desinformação!
[3] “A Bíblia não foi escrita para os doutos unicamente. Ao contrário, destina-se ao povo comum. As grandes verdades indispensáveis para a salvação, nela se acham reveladas com a clareza da luz meridiana; e ninguém errará nem perderá o caminho a não ser os que seguirem seu próprio juízo em vez da vontade de Deus, claramente revelada.” Ellen G. White, Caminho a Cristo, p. 89. Cf.: Conselhos Professores, Pais e Estudantes, p. 463, Conselho sobre Mordomia, p. 38.
[5] De fato, temos de considerar a arte do ponto de vista da estética cristã. Wolfgang H. M. Stefani chama a atenção para as artes como “[…] um aspecto do estilo de vida adventista no qual a comunicação e a transmissão de valores característicos são fracas.” Ele advoga que deveríamos nos preocupar com esta omissão. O artigo “Música: Força Ecumênica?“, da autoria de Stefani, pode ser encontrado em https://musicaeadoracao.com.br/19647/musica-forca-ecumenica
[6] “[…] a música carrega traços de história, cultura, e identidade social, que são transmitidos e desenvolvidos através da educação musical.” Beatriz Ilari, “A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: investigação, fatos e mitos”, disponível em http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv9-1/ilari.html, acesso: 21 de Agosto de 2007. ” Antes de tudo, existe alguma razão para pensar que a atividade musical, desconsiderando sua variedade, tem algumas características em comum que nos permitem vê-la como um todo unitário. Além do mais e em conexão com isto, assumimos que existe alguma habilidade de fazer e/ou comunicar com sons que é comum a todos os membros de uma cultura, embora distribuída ou exercida de várias maneiras e papéis. Ambas as afirmações não são exclusivas à música, mas são também válidas para outros tipos de expressão social, tais como gesto, pintura etc.” Gino Stefani, “Uma Teoria de Competência Musical“, disponível em http://www.musicaecultura.ufba.br/numero_02/artigo_stefani_01.htm, acesso: 21 de Agosto de 2007.
[7] As reflexões sobre como as cosmovisões religiosas, variando entre os extremos de transcendência (um Deus Superior e distante) e Imanecência (um Deus que interage com Sua criação, e, que Se nivela a ela) é magistralmente expresso em Wolfgang Stefani, “Música sacra, cultura e adoração” (Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2002)
[8] É interessante como Pearcey relaciona a expansão do Império Muçulmana, nos séculos VII e VIII, durante os quais territórios da Espanha à Pérsia foram anexados, com a influência que o pensamento grego (Neoplatonismo) passou a exercer sobre o Islamismo; para o Neoplatonismo, assim como para as religiões místicas orientais, Deus é uma “essência não-pessoal”. Para Percey, tal concepção de uma divindade impessoal, que se tornou predominante no pensamento muçulmano, explicaria “por que os muçulmanos expressam sua fé em rituais quase mecânicos[…]”. Para maiores detalhes, ver o apêndice 2, “O Islamismo Moderno e o Movimento da Nova Era“, em Nancy Pearcey, “Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de seu cativeiro cultural” (Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2006), 1ª ed, pp. 431 a 435. Mansour Challita, em seu livro “As mais belas páginas da Literatura Árabe” (Rio de Janeiro, RJ: Associação Cultural Internacional Gibran, sem indicação de data da publicação), endossa o que vimos anteriormente quando afirma: “Graças às conquistas que se estenderam em todas as direções, a língua árabe é adotada pouco a pouco por países que vão do Iraque até a Espanha, formando o que desde já podemos chamar o Mundo Árabe. Um mundo em plena vitalidade, em plena efervescência criadora.”A mistura das raças, o intercâmbio com civilizações e literaturas estrangeiras, orientais e mediterrâneas, a vasta tradução de livros antigos (notadamente gregos) abrem horizontes para a cultura árabe. Até o século XII, as grandes obras se multiplicam em toda parte. É a idade de ouro da literatura árabe.” p. 23.
[9] Olívia Maria Gomes da Cunha, “Fazendo a “coisa certa: Reggae, rastas e pentecostais em Salvador“, em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_23/rbcs23_09.htm, acesso em 28 de Agosto de 2007.
[10] Darlene Zschech, “Adoração Extravagante” (Belo Horizonte, MG: Editora Atos, 2006), 2ª reimpr. Da 2ª Ed, p.83.
[11] Wolfgang Stefani, em “The Pscho-Physiological Effects of Volume, Pitch, Harmony and Rhythm in the Development of Western Art Music Implications for a Philosophy of Music History” (MA Doctrinal Dissertation: Andrews University, 1981), [posteriormente publicado em português como “Música sacra, cultura e adoração” (Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2002)], dá o seguinte veredito: “Todas as evidências consideradas indicam que, a partir de uma perspectiva cristã, existem razões esmagadoras para interpretarmos a história do desenvolvimento da arte musical ocidental em termos de um processo gradual de degeneração e deterioração.” p.273, citado em Adrian Ebens “A Música na Adoração: Fontes para um modelo cristão de música na adoração”, publicado em https://musicaeadoracao.com.br/28263/musica-na-adoracao-indice, acesso: 10 de Agosto de 2007. É interessante um contraste entre esta constatação, de um ponto de vista cristão, feita por Stefani sobre a decadência cultural no Ocidente e a opinião similar expressa em Harold Bloom, “O Cânone Ocidental” (Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 1995). Bloom, tido como um dos críticos literários mais importantes em atividade, defende os valores estéticos da literatura clássica e dos escritores mais importantes do Ocidente contra o relativismo literário, responsável pela decadência na produção contemporânea . “O mundo experimenta uma degradação do conhecimento por causa da conversão da cultura em produto. Apesar de todas as vantagens que trouxeram, computadores, internet e televisão estão levando os jovens a se desacostumar dos livros. A longo prazo, a cultura como conhecemos hoje vai desaparecer. Por causa do mundo digital, as pessoas estão perdendo até a capacidade de compreender um texto a fundo. E ainda não inventaram veículo melhor que o texto escrito em papel.” Harold Bloom, em entrevista a Luis Antônio Giron, em http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1044475-1666-2,00.html. Bloom também escreveu “The american Religion: the Emergence of the post-christian nation” (New York: Simon & Schuster, 1992). Ali qualifica a forma de cristianismo tipicamente americana como “altamente emocional, individualista e ‘gnóstica'”, entendendo o gnóstica como focada “na alma individual e em sua relação imediata com Deus”. Citado em Nancy Pearcey, Verdade Absoluta, nota 60 da página 327.
[12] Em nossa opinião, a primeira perspectiva é incompleta, e, portanto, limitada, correndo o perigo de dar a determinado gênero musical o caráter de uma Revelação normativa, o que se aplica apenas aos cânticos bíblicos, escritos por homens inspirados por Deus, e jamais a nenhum hino de hinários cristãos; quanto a segunda posição, além de ignorar a coerência entre forma e conteúdo, ignora os efeitos da música sobre o nosso cérebro, efeitos esses que independem da letra da música.
[13] Os textos foram Ellen G. White, Testemunhos Seletos,vol. I, p. 45 e Ellen G. White, Testemunhos Seletos, vol. I.
[14] Mensagens aos Jovens p. 294, grifos supridos.
[15] Nos comentários que os leitores deixaram em LG, alguns sugeriram, ironicamente, que aquilo que pretendíamos fazer era “rotular” os bons e os “maus” cantores, músicas, etc. Trabalhamos com princípios de uma perspectiva adventista, convidando outros a refletirem dentro de suas realidades, quer em nível denominacional, quer em pessoal.
[16] Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, Página 347
[17]“O fato de Deus ‘desejar que nosso louvor ascenda a Ele levando o cunho de nossa própria individualidade’ [o livro “A Ciência do Bom Viver“, p. 80 como fonte da citação, porque se trata de outra reprodução do mesmo texto] não justifica que adotemos para uso na igreja aqui o que foi, talvez, aceitável para um escravo americano, ou um havaiano, ou um canibal no sul do Pacífico, ou um índio asteca. Seria deliberadamente fechar os olhos às orientações divinas para Laodicéia [silepse, o símbolo pelo que ele simboliza, para a igreja adventista do sétimo dia].” Dario Pires de Araújo, “Música, Adventismo e Eternidade” (são Paulo, SP: Impressões Gráficas Alfa Ltda.; Londrina, PR: Gráfica e Editora Líder Ltda.: 1994), 2ª ed.,p. 60. O trabalho de Araújo é, sem dúvida, o mais relevante de sua época publicado por um adventista brasileiro.
[18] Rick Waren, “Uma igreja com Propósito” (São Paulo, SP: Editora Vida, 2002), 2ª Ed., 7ª reimpressão, pp. 272 e 273.
[19] “A verdadeira música crista, a música que identifica o povo de Deus, é a musica profética, a música que declara as Escrituras Sagradas. Se a musica cristã tem como identidade a pregação da Escrituras Sagradas, esta música tem de ser coerente: coerente com as Escrituras Sagradas, pois ‘o que faz uma musica sagrada é a sua mensagem. A música não é nada mais do que notas e ritmos. São as palavras que fazem uma música espiritual'”. Jairo de Souza Santos Júnior, “A música evangélica de adoração: uma análise de sua identidade” (Revista Teologia Hoje, 2003), vol. 1, num. 2, artigo 4. Também disponível em http://www.ftsa.edu.br/revista/TeologiaHoje.htm. Acesso: 3 de Agosto de 2007. Note que a declaração final é uma citação de Waren, que revela o quanto ele tem influenciado os pensadores evangélicos no que diz respeito à adoração.
[20] Berit Kjos, “Igreja Dirigida pelo Espírito ou Orientada por Propósitos? – Parte 1- Análise do livro Uma Vida com Propósitos, de Rick Warren”, disponível em http://www.jesussite.com.br/PurposeDriven1.asp, originalmente: http://www.crossroad.to/articles2/006/pd-deception.htm.
[21] David Fisher, “O pastor do século XXI” (São Paulo, SP: Vida, 2001), 3ª reimpressão, p. 254.
[22] Ellen White, Evangelismo, p. 508.
[23] Usando a mesma citação, segui raciocínio semelhante em meu artigo “Shows cristãos: culto, entretenimento ou mundanismo?“, disponível em https://questaodeconfianca.blogspot.com/2007/07/shows-cristos-culto-entretenimento-ou.html.
[24] Ellen G.White, Evangelismo, p. 512.
[25] Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, “Mística e Sociedade” (Itajaí, SC: Universidade do Vale do Itajaí; São Paulo, SP: Paulinas, 2006), pp. 190 e 189. Os autores estão sintetizando as ideias de Daniéle Hervieu-Leger.
[26] Ambos os fatores, a preocupação em atingir os descrentes, como a subjetividade inerente ao cristianismo moderno, podem ser responsáveis pelo esvaziamento de conteúdo doutrinário da música evangélica hodierna.
O Pr. Douglas Reis mantém o blog Questão de Confiança.