por: Joêzer Mendonça
Por que a maioria dos protestantes brasileiros aprecia uma hinologia ou um conjunto de músicas de origem americana ou européia mas demonstra pouca tolerância para com as canções religiosas de estilo popular nacional?
Esta é uma pergunta para a qual podemos dar várias respostas erradas, como: é uma questão de gosto, ou, é o respeito às tradições litúrgicas, ou ainda, é devido ao preconceito em relação à cultura brasileira, e a pior de todas, deve-se a uma alienação cultural americanizada e pequeno-burguesa.
Vou procurar algumas respostas que podem explicar esse tema que divide gerações de fiéis.
Gosto (o bom e o mau, se me permitem os relativistas mais ferrenhos) é algo que se constrói socialmente. Para Pierre Bourdieu, as diferenças entre os gostos musicais não se assemelham às diferenças de paladar alimentício – este estaria mais profundamente inscrito em nossos corpos que o paladar musical. O estudioso francês acrescenta que os diferentes gostos musicais não remetem unicamente a “preferências últimas e inefáveis, mas a diferenças no modo de aquisição da cultura musical” (Sociología y cultura, p. 178).
Como a hinologia protestante foi “adquirida”, então? Para alguns pesquisadores, como Prócoro Velásques e Antonio G. Mendonça, as missões norte-americanas tinham um pendor eurocêntrico e entendiam que sua cultura era superior a dos povos da América do Sul. Assim, a dominação econômica encontrava um correspondente na dominação cultural e religiosa, dominação essa que repudiava a música local e favorecia a adoção de uma hinologia euro-americana/estrangeira (ver Introdução ao protestantismo no Brasil, dos dois autores; ou O celeste porvir, de Antonio G. Mendonça).
Essa visão está bem simplificada aqui, mas traduz teoricamente a essência de um pensamento amparado no discurso nacionalista e marxista que procura explicar os fenômenos sociais pela ótica do conflito de classes. Esse argumento consolidou-se no Brasil dos anos 1960, quando a dicotomia nacional-popular versus cultura anglófona chegou ao ridículo de promover uma marcha dos artistas contra a guitarra (era um instrumento do rock, que nasceu nos EUA, que eram o império colonialista, etc) e ao mesmo tempo coroava-se como “legítimo” e “autêntico” o estilo de raiz nacional (baião, sertanejo, samba).
Esse discurso, que conferia autenticidade e legitimidade somente às músicas fiéis a uma tradição cultural de origem brasileira, ao espaço sociogeográfico das classes populares (o sertão, o morro) e ao argumento de independência cultural em relação ao mercado e às nações dominantes, chegou às igrejas protestantes nos anos 1970 refletindo o pensamento sociológico da época e modificando os padrões de composição de canções religiosas.
Com 30 anos de atraso, o mesmo discurso só agora alcança algumas igrejas adventistas e luteranas, por exemplo. A música de “raiz” nacional procura seu espaço na hinologia protestante. Porém, as justificativas encontradas são obsoletas. Primeiro, porque “cultura brasileira” não é um conceito monolítico que uma vez erguido estará consolidado para sempre. Ao contrário, trata-se de um conceito extremamente fluído e contraditório (quem diria, nos anos 60, que surgiria algo como rock “nacional” ou funk “carioca”). Em segundo lugar, o público, em especial a juventude, não se importa com questões de identidade nacional, mas prefere os símbolos e objetos mundializados, os gêneros e as performances transmitidos via mídia, remontando-os em perspectiva diversa da original.
A música popular brasileira é um referente atual para a música cristã. Essa perspectiva pode expressar pontos positivos (e há músicos capazes para tanto), mas também pode gerar problemas quando a renovação musical se dá por meio de um pragmatismo evangelístico entusiasticamente abraçado ou quando se acredita que a totalidade de uma cultura é plenamente aceitável ao ser transladada para o espaço da adoração cristã.
Voltando a questão no topo da página – o porquê da aceitação da hinologia tradicional em detrimento de uma música cristã popular brasileira -, nota-se que o argumento da autenticidade e legitimidade faz pouco sentido no espaço cultural hiper-globalizado. O debate marxista de conflito de classes, isto é, missionários a serviço do imperialismo norte-americano impingindo uma cultura “importada”, é um raciocínio que padece de xenofobia e descarta a reação e os anseios dos novos conversos, tratando-os como meros receptores passivos.
Michel de Certeau afirma que o sentido e o uso dos produtos culturais, dos sons musicais, na vida individual e social das pessoas não podem ser completamente determinados (A invenção do cotidiano, 1994). Assim, deve-se levar em conta também outros fatores para a adoção da hinódia euro-americana pelos primeiros protestantes brasileiros:
a) A ausência de referências sociogeográficas: os novos conversos desconheciam a origem da música (se era um folk irlandês, uma marcha da Guerra Civil americana, uma balada do teatro, uma canção de saloon), mas podiam aceitá-la pelo simples motivo de que era diferente das canções dos festejos a que estavam acostumados antes da conversão;
b) A noção protestante do sagrado: o “sagrado” significava algo que era “separado” para as atividades religiosas. A hinódia euro-americana recebida pelos novos protestantes expressava um caráter diferenciado ao ser cantada no local de adoração. Assim, modelava uma liturgia distanciada de práticas musicais sincréticas que serviam tanto para as festividades religiosas quanto para a diversão mais sensual.
Se lembrarmos também do preconceito e da marginalização sofridos pelos conversos no período de inserção do protestantismo no Brasil, veremos que a adoção daquela hinologia “importada” marcava uma construção de identidade coletiva interna e também uma diferença externa em relação aos cultos afro-brasileiros e católicos. Não se pode negar que houve (e há) certo sectarismo nessa perspectiva.
Por outro lado, havia (e há) uma clara relação de estilos musicais com atividades que se opunham frontalmente aos princípios cristãos, o que pode ter motivado tanto a recusa de determinados gêneros como o seu afastamento social. Assim, esse afastamento precisa ser revisto pela ótica da segregação sofrida e da auto-preservação moral.
São questões candentes que valem uma reflexão a respeito. E o primeiro passo para o entendimento possível é o diálogo. Meu objetivo não é conceder as únicas respostas, mas espero fazer as perguntas certas e até esquecidas.
Joêzer Mendonça é mestrando em música na UNESP. Escreve sobre atualidades e antiguidades relacionadas à música, mídia, religião e cultura no blog Nota na Pauta ( https://notanapauta.blogspot.com/ )
Fonte: Nota na Pauta