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Além da Estética: Um Ensaio Sobre a Música Sacra e Seu Significado

por: Jetro Meira de Oliveira, DMA


Resumo: Este ensaio propõe que o foco das discussões sobre música sacra na Igreja Adventista do Sétimo Dia deve ser o “significado musical”, e não a “estética musical” como tem frequentemente acontecido. Uma breve perspectiva histórica sobre música e significado é oferecida com o objetivo de contextualizar o assunto. É proposta uma mudança de postura que inclui um minucioso estudo do que tem sido escrito por diversos autores sobre música e significado.


1. Introdução

A Igreja tem vivido acaloradas e infrutíferas discussões sobre qual é a melhor música para ser usada nos cultos. A grande maioria destas discussões tem focado os aspectos estéticos da arte musical, abordando questões de estilo, gênero e forma. Mesmo quando é possível alcançar algum tipo de conclusão, a dúvida permanece, pois dizer que uma música é esteticamente superior a outra não implica que esta seja a mais apropriada para os cultos da igreja.

Isto tem se manifestado em discussões sobre várias vertentes musicais, como por exemplo, a superioridade estética da música germânica dos séculos XVIII e XIX em comparação com os negro spirituals americanos, ou qualquer outra manifestação musical afro. Já outro segmento debate sobre a utilização de fontes e modelos seculares na música sacra do passado como justificativa para se usar a música popular e secular contemporânea como modelo de nossa música sacra [1]. Porém, há um consenso de que a música, seja qual for para cada indivíduo, desempenha um importante papel em nossa vida espiritual.

Enquanto critico o fato de que o foco das discussões da música na Igreja esteja no campo estético, não descarto de maneira alguma a importância deste aspecto na equação deste grande tema. No entanto, creio que temos negligenciado o estudo da música sob outras perspectivas, ignorando assim, importantes contribuições existentes para a compreensão do efeito da música no ser humano. Tal comportamento perpetua um tipo de ignorância acariciada.

Devemos dar “ouvidos” ao comando do salmista quando diz: “Cantai louvores a Deus, cantai louvores; cantai louvores ao nosso Rei, cantai louvores. Pois Deus é o Rei de toda a terra; cantai louvores com inteligência.” Mas, o que seria este “cantar louvores com inteligência? [2]” Seria isto apenas experimentar fortes emoções através da música sem saber exatamente como isto acontece? Ou seria uma compreensão do significado da música resultando em uma profunda experiência emotivo-cognitiva?

Proponho que podemos nos relacionar com a experiência musical de duas maneiras basicamente. Podemos nos envolver com a música apenas como experiência sensorial, achando certos sons mais bonitos que outros. Ou podemos ainda buscar uma compreensão do significado da música, numa experiência na qual o ouvinte participa de maneira ativa, buscando através da razão, inteligência, entender o que a música diz.

Neste ensaio discutirei a possibilidade de compreendermos a música como uma linguagem simbólica expressiva capaz de comunicar ideias e emoções. Há, naturalmente, outras possibilidades de abordagem, como por exemplo, o efeito físico e neurológico da música no corpo e mente do ser humano, bem como a antropologia e sociologia da música, apenas para citar duas possibilidades [3].

2. Ritual x significado: uma perspectiva histórica [4]

A história da música ocidental é dividida em períodos que refletem a predominância de características estéticas que distinguem uma época da outra. Tanto na música sacra como na secular, podemos observar momentos distintos na maneira como o ser humano tem se relacionado com esta arte. Nas próximas linhas farei uma breve reflexão histórica sobre a relação entre texto e música. Isto nos ajudará a compreender como em diferentes épocas tivemos diferentes objetivos no relacionamento entre ser humano e música.

2.1 Idade Média e Renascimento

Durante a Idade Média e o Renascimento houve uma forte ênfase no aspecto de ritual na religião cristã. A missa era proferida em latim, uma língua não acessível a todos, e conseqüentemente, a música sacra também era neste idioma. Inicialmente, a música sacra era o canto gregoriano. Qualquer um que já tenha escutado qualquer exemplo de canto gregoriano pode facilmente atestar do caráter místico deste gênero musical. Isto não é por acaso, pois o foco da religião desta época era justamente o sobrenatural. A arquitetura das igrejas, a liturgia da missa, a música e tudo mais, apontavam para um Deus que misteriosamente estava acima de todos, mas entre os adoradores também.

Imaginem um serviço religioso de vésperas, que começava ao cair do sol. Não havia energia elétrica, a iluminação era precária. Ao sentar-se na igreja você olharia para cima e literalmente não enxergaria o teto. A igreja era assim, como uma ponte com o infinito. A arquitetura, música e a liturgia em latim também serviam para dar a experiência religiosa um caráter de distanciamento com a vida cotidiana das pessoas, transportando-as para este misterioso mundo espiritual.

Com este pensamento, o canto gregoriano era isento de qualquer característica que pudesse associá-lo com a música secular da época. A ênfase da experiência religiosa estava no aspecto de ritual, numa experiência mística de temática mais ampla, sem a preocupação de uma micro-compreensão dos detalhes ou frases de cada parte proferida. A própria construção melódica do canto gregoriano, com sua limitada extensão, recitação e ondulação, contribuía de certa maneira, com um efeito hipnótico dentro deste ritual.

Gradativamente, o que chamamos de processo de composição se desenvolveu e foi preservado, em grande parte, por meio da música sacra. Apesar do canto gregoriano nunca ter sido abandonado por completo, havendo ainda hoje congregações que fazem uso deste gênero musical, o interesse pela polifonia, os muitos sons ao mesmo tempo, atraiu o interesse de compositores a ponto de se tornar a manifestação musical de maior interesse no Renascimento [5].

A maioria das composições sacras do Renascimento pode ser compreendida como “canto gregoriano em vozes”. Neste período, a ênfase ainda estava numa experiência religiosa ritualística. A música litúrgica desta época refletia isso ao não haver uma preocupação notável entre a relação de letra e melodia nos textos da missa que eram musicados. Muitos manuscritos de trechos do ordinário da missa musicados na época (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei) não possuíam indicação precisa de quais sílabas deviam ser cantadas, e em quais notas. Havia somente a indicação de qual texto devia ser cantado. Por exemplo, o texto do Kyrie, não era colocado inteiro na música, já que a adequação da letra à melodia ficava por conta dos cantores.

Contudo, nem toda música sacra do Renascimento se mostrou despreocupada em expressar de maneira mais específica na música o que o texto falava. Um gênero musical sacro de grande importância no Renascimento foi o moteto. Neste gênero musical, cujo o próprio nome vem de mot, francês para “palavra”, as possibilidades da música comunicar as ideias do texto, da palavra, passaram a ser de grande interesse para os compositores.

Josquin des Prez (c.1440-1521), um dos compositores mais importantes do Renascimento, recebeu reconhecimento de intelectuais da época, como Castiglione, Rabelais e Lutero, pelo seu estilo retórico de composição musical [6]. Houve uma diferença marcante na preocupação de Josquin em alinhar o texto com a música nos seus motetos e em suas missas. Nos motetos, o compositor não deixava dúvidas, colocando de maneira específica quais sílabas deviam ser cantadas com quais notas. Já que isto fez grande diferença no significado da música em relação ao texto.

Por sua vez, isto não aconteceu em muitas de suas missas, pois neste caso, não houve a preocupação de expressar as ideias específicas do texto de cada parte da missa através da música. Permaneceu ainda nas missas de Josquin um sentido ritualístico, no qual a representação de cada texto na música não era tão importante quanto à experiência mística do próprio ritual. A possibilidade de tornar o texto vivo através da música, como exemplificada nos motetos de Josquin, se tornou um marco de época, e foi de grande importância para a Reforma de Lutero, que tanto prezou pela importância da palavra.

2.2 O texto acima da música

A virada do século XVI para o XVII presenciou uma das mais importantes mudanças de estilo na música ocidental. Se até então predominara a ideia de que o texto servia a música, agora no século XVII os papéis se inverteram. Através de caminhos diferentes os pensadores chegaram a esta importante conclusão e proposta: a música devia estar a serviço da letra, de modo que as ideias do texto fossem intensificadas e ilustradas através da própria música.

Se até ali a música sacra se caracterizara pelo estilo a cappella, sem acompanhamento instrumental, agora teríamos uma crescente presença de instrumentos, não somente na música litúrgica, mas em todos os gêneros da época. Assim, a monódia barroca nasceu. Um gênero musical para ser executado por uma única voz com acompanhamento instrumental.

Na monódia barroca a música é “derivada” do texto e o grande objetivo é “afetar” o ouvinte, ou seja, levá-lo a uma profunda experiência emotivo-cognitiva. O compositor lê o texto absorvendo o ritmo inerente das sílabas tônicas e observando o seu sentido retórico. Busca então, reproduzir estas ideias na música.

É importante observar que esta preocupação em expressar o texto por meio da música, abriu caminho para uma enorme variedade de recursos expressivos na música: aumento no uso de cromatismo, contraste, livre uso de dissonância, combinação intencional de instrumentos e vozes, apenas para citar alguns [7]. Cada um desses recursos servindo o propósito maior de criar significado na música.

Grande parte da estrutura formal da música do século XVII era derivada dos conceitos de oratória de Cícero, Tasso e a maioria dos escritores da Renascença. Destaque especial era dado ao que chamamos de “figuras de linguagem” e “figuras de retórica”, que são reproduzidas na música. Por exemplo, iteratio é repetição por veemência. Se podemos repetir palavras para enfatizar, podemos também repetir música com o mesmo efeito. Assim, inúmeras ideias expressivas da linguagem e retórica foram transferidas para a música. “O propósito das figuras de retórica musical é clarear o afeto (a emoção), o significado das palavras, dar suporte e força ao texto, tornar claro o ‘significado completo’, isto é, a ‘intenção’ do texto” [8].

Esta maneira de pensar e compor não ficaram restritos a música vocal solo, mas tiveram desdobramentos na música coral e também na música puramente instrumental. Este enfoque dado ao texto na música do período Barroco [9] foi de grande importância para a Reforma de Lutero. Podemos dizer que houve um casamento entre as intenções de tornar a Palavra de Deus acessível ao povo, por parte da Reforma Luterana, e as possibilidades expressivas da música barroca. Isto serviu de estímulo para a criatividade de vários compositores que produziram um vasto repertório de música sacra baseado na importância do texto.

É neste sentido que Johann Sebatian Bach é considerado o mais importante compositor de música sacra de todos os tempos. Hoje, o mundo artístico reconhece na música de Bach um grande valor estético. No entanto, este valor estético foi fruto da intenção de tornar o texto vivo na música. A música de Bach é rica em significado, de modo que para esse ser compreendido, exige do ouvinte uma participação ativa neste processo.

2.3 Simplificação e pirotecnia

Durante todo o período Barroco e até mesmo no final do século XVIII a expectativa era de que a música tivesse significado e pudesse ser compreendida por seus ouvintes. Foi a partir do século XIX que podemos observar uma separação entre significado, compreensão e estética musical, promovendo o que chamo de relacionamento ritualístico com a música.

Há vários motivos para isso. A Revolução Francesa, por exemplo, difundiu uma simplificação musical com o objetivo de influenciar a opinião pública numa pré-manifestação de globalização, oferecendo uma “língua” que todos entendessem sem precisar aprendê-la. A prática de multidões cantando, pelas ruas, melodias de fácil aprendizado é um dos símbolos da Revolução Francesa.

Outro importante fator foi a mudança no modelo de ensino de música. Até o século XIX aprendia-se música num sistema de mestre e aprendiz que privilegiava a compreensão do significado da música. Mas, a partir do século XIX temos o fenômeno dos grandes virtuoses como Liszt e Paganini, intérpretes de excepcional habilidade técnica. Influenciado por este fenômeno de super performers, o ensino de música passa a ter como principal objetivo o desenvolvimento técnico do jovem músico em detrimento do aprendizado do significado musical [10]. Talvez você já tenha ouvido ou até mesmo tido a experiência, de que para ser um bom pianista é necessário aprender todos aqueles “exercícios técnicos” de Hanon e Czerny. Esta postura nasceu no século XIX, e infelizmente perdura até nossos dias em muitos estabelecimentos de ensino musical.

Apenas para ilustrar o que é o desenvolvimento técnico na música sem a compreensão de seu significado, seria como um animal amestrado de circo que faz incríveis acrobacias, mas que não tem compreensão do que está fazendo. Isto também se refletiu na maneira como o público em geral passou a ver a música. A decodificação musical se tornou algo limitado aos “entendidos”. Enquanto isso, a grande maioria ficou apenas com o vislumbre e admiração das habilidades técnicas dos intérpretes e o impacto sensorial sonoro inicial, mas sem ter compreensão do significado da música.

3. Situação contemporânea e a Igreja Adventista do Sétimo Dia

Estas atitudes se desenvolveram e ganharam corpo durante todo o século XX, chegando até aos nossos dias. Creio que reside neste ponto o principal problema da música na Igreja. Há falta de compreensão do significado da música tanto por parte dos músicos como das congregações. Isto tem promovido um relacionamento ritualístico com a música.

Tentarei explicar melhor. Toda vez que nós entramos em contato com a música sem ter o objetivo de compreender o seu significado, estamos envolvidos em algum tipo de ritual automatizado. Vários comportamentos revelam isto, como o uso de música de fundo para “acompanhar” outras atividades, seja estudo, dirigir, esperar, ou qualquer outra coisa.

Este relacionamento de ritual com a música enfatiza aspectos como gosto, preferência, estilo, beleza e sentimento superficial. Há um foco no artista-intérprete em detrimento da própria música, e o significado não está intrinsecamente na música, mas no conjunto do ritual do qual ela é parte, permitindo assim, inúmeras interpretações.

Tente lembrar-se de momentos importantes e alegres do seu passado. Geralmente estas memórias estão associadas a músicas. Posso facilmente lembrar-me da “trilha sonora” que acompanhou minha adolescência e juventude. Não existe significado intrínseco nesta “trilha sonora”, mas sim no conjunto total do qual ela faz parte.

Por outro lado, quando nos relacionamos com a música buscando de maneira ativa, consciente e inteligente compreender seu significado, temos enfoques diferentes. Primeiramente, não é possível fazer isto sem concentrar-se neste objetivo, como quando usamos música de fundo para outras atividades. O foco está no significado da mensagem encontrada dentro da própria música, e não há uma grande dependência em fatores externos para isso. É possível observar uma relação lógica entre texto e música. A música e o significado que ela possui em si é mais importante do que a interpretação peculiar do artista A ou B.

Há inúmeros exemplos de relacionamento ritualístico com a música, e observe que este comportamento não está limitado exclusivamente a um estilo de música em particular. Estilos/gêneros musicais que se manifestam também através de um estilo de vida, como nas “tribos”, são os principais exemplos. Não é incomum encontrarmos seguidores de algum estilo musical, como o hip-hop, que quando são questionados sobre a mensagem das músicas que apreciam, desaprovam-na, mas mesmo assim continuam “gostando” do estilo musical.

Outro exemplo, é a grande quantidade de pessoas da chamada alta sociedade que vai ao Teatro Municipal numa récita de ópera, não necessariamente para assistir e “entender” a ópera. Elas freqüentam esses ambientes mais como parte de um ritual social que inclui um desfile de roupas e adornos extravagantes e a possibilidade de ser mencionado nas colunas sociais dos jornais.

3.1 Atitudes e expectativas que trazemos para a igreja

Este relacionamento ritualístico com a música está também presente na Igreja. Fico bastante frustrado quando, após cantar ou reger num culto recebo elogios que só falam da beleza musical da apresentação. Seria muito mais importante receber um feedback que falasse de uma compreensão da mensagem contida na música. Isto exemplifica o fato de que grande parte de nossas expectativas para com a música usada na Igreja está focada na estética musical, evidentemente, no nível em que cada um de nós compreende isto.

Outra expectativa, ainda mais preocupante é de “entretenimento”. Como já mencionei na introdução, a estética musical é importante, mas não deve ser o foco de nossas atenções. Caso contrário, continuaremos a usar a música na Igreja de maneira muito limitada, perdendo a possibilidade de comunicarmos por meio dela, verdades que não são, necessariamente, “belas” do ponto de vista estético ou dotadas apenas de uma expressão emocional superficial.

No entanto, para que possamos mudar este comportamento, é necessário um esforço de todos nós. Nas palavras de Harnoncourt, “precisamos saber o que a música quer dizer, para compreender o que nós queremos dizer através dela. O saber deve agora preceder o puro sentimento e a intuição.” [11]

Mas como podemos alcançar este “saber” musical que não seja apenas intuitivo? É possível obter este conhecimento de maneira instantânea, como se faz uma pipoca de micro-ondas no “fast-mundo” no qual vivemos? Naturalmente que não. Este “saber” musical só pode ser alcançado através de um constante e gradativo estudo, tanto por parte de músicos como da congregação. Caso contrário, estaremos cometendo o mesmo erro que o antigo Israel incorreu.

3.2. Rindo à toa

Mesmo estando sob domínio babilônico, o antigo Israel dos tempos do profeta Ezequiel gozava de certo conforto material. Ao povo era permitido vender e comprar, e manter uma vida praticamente normal. Não tenha dúvida de que isto criava a ilusão de que tudo estava bem, e de que estar sob domínio estrangeiro não era tão ruim assim. No entanto, o estado espiritual havia há muito se degradado, e Deus continuava de maneira paciente e incansável tentando despertá-los deste estado de mornidão.

O profeta Ezequiel foi o mensageiro escolhido por Deus para levar esta mensagem de arrependimento e transformação ao impenitente povo de Israel. Como um bom aluno da Escola de Profetas, Ezequiel havia recebido instrução nas artes, principalmente na poesia e música. E foi através das artes que Ezequiel proclamou a mensagem que lhe fora confiada. O profeta utilizou os recursos da linguagem através de metáforas e alegorias, da representação dramática, e certamente se valeu da música para cumprir a própria missão.

Todavia, curiosamente o povo rejeitou a mensagem de Ezequiel. Digo curiosamente, porque ele em si não foi ignorado, como se poderia esperar. Muito pelo contrário, o povo costumava reunir-se regularmente para ouví-lo.

E eles vêm a ti, como o povo costuma vir, e se assentam diante de ti como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as praticam; pois lisonjeiam com a sua boca, mas o seu coração segue a sua avareza. E eis que tu és para eles como uma canção de amores, canção de quem tem voz suave e que toca bem; porque ouvem as tuas palavras, mas não as praticam" (Ezequiel 33: 31, 32).

A natureza do problema é primordialmente de ordem espiritual, mas é também de ordem cultural. Para o povo de Israel, Ezequiel era um verdadeiro showman da religião. Ezequiel foi, sem dúvida, um hábil artista e creio que ele recebeu de Deus não somente a mensagem, mas também as diferentes maneiras de apresentá-la. Sendo assim, o problema não estava na mensagem ou as maneiras como foi apresentada. Os israelitas foram capazes apenas de apreciarem a estética, a beleza de suas apresentações, sem captar o significado, a tão importante mensagem contida nelas.

Certamente podemos traçar um paralelo entre o antigo Israel e a religião cristã contemporânea. Ainda estamos sob domínio do mal, mas gozamos de certo conforto material. Nosso aguçado sentido estético nos leva a desejar, apreciar e comprar aquilo que nos parece belo, seja isto materializado em roupas, carros, música, comida ou religião, apenas para mencionar alguns.

Vivemos numa época, em nosso país, em que a religião protestante já não enfrenta tantas barreiras. Hoje, a pregação do evangelho é algo muito mais aceitável. Tal liberdade religiosa é atestada pelos inúmeros programas de TV e rádio evangélicos. A mídia religiosa se tornou presente e notada na sociedade contemporânea, aproximando a religião do cotidiano das pessoas. O número de membros nas diversas igrejas nunca foi tão grande.

Apesar disto, a sociedade continua a passos largos em direção a um total colapso de valores éticos e morais. Não deveria a maior quantidade de cristãos na sociedade melhorar a condição da mesma? Ou será que ouvimos atentamente, quando é “bonito”, mas não somos capazes de extrair o significado da mensagem, ficando apenas num nível de apreciação estética e emocionalismo superficial?

Há aqui uma moeda de duas faces. Falando especificamente de música, de um lado temos a congregação com suas “expectativas”, que podem estar apenas num nível estético e de emoção superficial. Do outro lado temos o músico em si. E quais são suas expectativas e objetivos? Tem este uma mensagem vinda de Deus que toma uma forma que torne o significado da mensagem claro na música, ou deve esta “forma” ser moldada de acordo com o “gosto” ou a expectativa estética do povo?

Creio que muitas vezes, a maioria delas, nossas escolhas quanto a forma do culto estão sendo baseadas nas expectativas estéticas existentes na congregação. Mais uma vez digo que não estou rejeitando a questão de estética, mas que quando o foco de nossas atenções está na estética, perdemos em muito a possibilidade de trazer para a música o significado da mensagem.

4. Carentes de pão em meio à abundância

Por onde quer que tenha passado pregando ou palestrando sobre música sacra, sempre recebo o pedido de que a Igreja, ou eu mesmo, ofereça um “edito”, dizendo o que é certo ou errado quanto a escolha da música de adoração. Por mais inocente e simplório que este pedido possa parecer, o mesmo, revela uma atitude de passividade. Queremos respostas rápidas para tudo, inclusive para um assunto tão amplo e complexo como o uso da música na Igreja. Se esta fosse a vontade de Deus, Ele mesmo teria deixado uma lista de músicas aprovadas ou rejeitadas.

Diante desta situação complexa, muitos simplesmente desistem de buscar um conhecimento mais profundo, e passam a adotar a sua intuição e sentimentos como guia. Isto poderia até mesmo ser compreendido se não tivéssemos quantidade e qualidade de materiais para estudo. Este é o ponto que mais me chama a atenção. Em raríssimas ocasiões nas quais estive presente em discussões sobre a música litúrgica pude observar a inclusão de pesquisas feitas em busca do significado contido na música. Temos ignorado na Igreja, aquilo que para o mundo secular tem sido paradoxalmente de grande importância!

Poderíamos pensar que este assunto é pouco estudado e que não há literatura em português nesta área. No entanto, a verdade é o oposto disso. Há inúmeros livros e artigos sobre música, cognição e significado, tanto de autores traduzidos como de autores nacionais [12]. Se padecemos por falta de conhecimento, não é porque este não exista ou não está disponível. Muito pelo contrário, é porque “desejamos” continuar ignorantes, como se a ignorância fosse uma nobre virtude cristã.

Até mesmo a MPB (música popular brasileira), que serve de modelo estético para grande parte dos compositores adventistas brasileiros, tem sido objeto de estudos que buscam compreendê-la como fenômeno sociológico e como expressão de sentido e significado. Se realmente tivéssemos a devida seriedade e sobriedade que o assunto do uso de música na Igreja requer, iríamos no mínimo ter a curiosidade de tentar descobrir como a música é capaz de nos afetar e comunicar ideias e sentimentos.

Houve inúmeras influências ao longo da história que contribuíram para que hoje tivéssemos uma atitude tão passiva em relação à música. O estudo destas influências pode ser útil para mudarmos esta postura. De especial interesse para nossa reflexão, é a formação da cultura e identidade religiosa brasileira. O Brasil teve uma colonização católica. E isto se manifestou musicalmente com a produção de um grande repertório de música sacra em latim, de maneira predominante até o século XIX.

Comparando com outras culturas ocidentais nas quais predominam as religiões protestantes, não há no Brasil ou Portugal um repertório significativo de música sacra em português. O português foi usado na música quase que exclusivamente no campo secular. Somente no século XX, com a consolidação do protestantismo brasileiro, houve um estímulo para se utilizar a língua pátria na música religiosa. Mas mesmo assim, isso se deu através de versões para o português de músicas oriundas principalmente dos EUA. Tal comportamento caracteriza a falta de tradição de um repertório sacro em português. Demonstra também a falta de modelos sacros de como musicar o português, de maneira que haja uma íntima relação entre texto e música. Abre-se a porta então para o fascínio estético e para uma postura ritualística no nosso relacionamento com a música.

5. Idéias finais

É imperativo que aprendamos a fazer e a apreciar música pelo seu significado e não somente pelo seu atrativo estético. Isto não vai acontecer por acaso e nem será de maneira instantânea. E creio estar aí o grande empecilho para que a Igreja possa fazer um uso mais significativo da música. Em sintonia com a sociedade contemporânea, também queremos uma “fast-religião” que ofereça prazeres e satisfação instantâneos, imediatos.

Precisamos ouvir a forte afirmação de Davi quando disse que não ofereceria ao Senhor holocausto que nada lhe custasse (I Crônicas 21:24). É necessário que estejamos dispostos a “pagar o preço” de um envolvimento mais profundo com a arte musical, se realmente desejamos utilizá-la de maneira mais significativa na pregação do evangelho e na adoração a Deus. Isto não se aplica exclusivamente á música, mas a todos os aspectos da vida espiritual. Fico imaginando o que aconteceria se caminhássemos neste sentido. Teríamos músicas de profundo significado, capazes de comunicar as peculiaridades da doutrina adventista em várias dimensões. Não estaríamos mais presos ao formato de 12 músicas num CD, e poderíamos aí sim, ser criativos para a honra e glória de Deus.


Notas de Referência

1 – Conclusões mal informadas sobre o uso de fontes seculares nos hinos de Lutero. (voltar)

2 – Salmos 47: 6 e 7. Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida, 1995.(voltar)

3 – Recomendo aos que se interessarem nestas áreas: CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. UMESP/Edições Loyola: São Paulo (1998). IANNI, Octavio. Ensaios de Sociologia da Cultura. Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro (1991). MARTELLI, Stefano. A Religião na Sociedade Pós-Moderna. Paulinas: São Paulo (1995).(voltar)

4 – Não há nesta breve e fragmentada perspectiva histórica nenhuma presunção de profundidade, servindo esta apenas para ilustrar as duas possibilidades básicas de relação entre texto e música.(voltar)

5 – É no Renascimento (1450-1600), que podemos observar a proliferação e amadurecimento das técnicas de combinar sons simultâneos (contraponto), permitindo um sentido mais amplo de criatividade na composição musical. A partir deste período há um contínuo sentido cronológico de causa e efeito na música ocidental.(voltar)

6 – DUFFIN, Ross W. A Josquin Anthology. Oxford University Press: Oxford (1999). P. vii.(voltar)

7 – HILL, John W. Music of the Seventeenth Century. Apostila: University of Illinois Campus Publishing Services (1999). S.p.(voltar)

8 – SCHMITZ, Arnold. “Figuren, musikalisch-rhetorische.” Die Musik in Geschichte und Gegenwart, vol. 4 (Kassel, 1955), col. 176-183. IN: HILL, John W. Music of the Seventeenth Century. Apostila: University of Illinois Campus Publishing Services (1999). S.p. (minha tradução).(voltar)

9 – O Barroco (1600-1750) é período no qual a música sacra mais proliferou. Impulsionados pela nova maneira de compor e pela Reforma protestante, um grande número de compositores dedicou sua criatividade à música sacra. É também no Barroco que se torna comum a utilização da língua nacional na música sacra. Até então, com a predominância da Igreja Católica, o latim era o idioma usado na música. Mas com a Reforma isso mudou, trazendo a possibilidade de cada povo ouvir a mensagem da música em sua própria língua.(voltar)

10 – HARNONCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro (1988). P. 13.(voltar)

11 – HARNONCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro (1988). P. 28.(voltar)

12 – Recomendo: 1. SWANWICK, Keith. Ensinando Música Musicalmente. Editora Moderna: São Paulo (2003). 2. SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante. Editora UNESP: São Paulo (1992). 3. TOMÁS, Lia. Ouvir o Lógos: Música e Filosofia. Editora UNESP: São Paulo (2002). 4. CAZNOK, Yara Borges. Música: Entre o Audível e o Visível. Editora UNESP: São Paulo (2003). 5. PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de Semiótica da Comunicação. EDUSC: Bauru, SP (2004). 6. WISNIK, Miguel. O Som e o Sentido. 7. Todos os livros de Luiz Tatit, mas em especial: Musicando a Semiótica. Annablumme/Fapesp: São Paulo (1997).; e Semiótica da Canção: Melodia e Letra. Editora Escuta: São Paulo (1999).(voltar)


Jetro Meira de Oliveira, DMA é Professor de História da Música do curso de Educação Artística do Unasp Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho


Fonte: Revista Kerigma – Ano 2 – nº 1, pp.22-29.


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