por: Natasha Romanzoti (HypeScience)
Muitas histórias que circulam pela internet não são verdades, ou são “meias verdades”. A história a seguir, porém, um tanto famosa na web, é muito verdade, e muito tocante.
Aconteceu mesmo, em 2007, na cidade de Washington, nos EUA. Um gênio (que não gostaria que usássemos essa palavra) parou na estação de metrô L’Enfant Plaza e posicionou-se contra uma parede ao lado de uma lata de lixo, usando calça jeans, camiseta de manga comprida e um boné de beisebol do Washington Nationals.
Em seguida, tirou um violino de uma pequena caixa. Colocou a caixa em aberto a seus pés, astutamente jogou alguns dólares para atrair outros mais, se virou para enfrentar o tráfego de pedestres, e começou a tocar.
Às 7h51 de uma sexta-feira, 12 de janeiro, no meio do rush matinal, um dos melhores violinistas do mundo tocou seis peças clássicas das mais elegantes já escritas, em um dos mais valiosos violinos já feitos por 43 minutos conforme 1.097 pessoas passaram.
O que acontece quando um artista de rua comum toca, todos sabemos: um ou outro transeunte dão rápidas olhadas e jogam moedas, outros muitos se irritam com a “poluição sonora” e a indução de culpa se não pagar por uma performance pela qual não pediu, enquanto raros param para apreciar o talento do próximo.
Aí vem a questão: o que um músico consagrado estava fazendo tocando em um metrô? A “pegadinha” tinha sido arranjada pelo jornal The Washington Post como uma experiência de percepção de contexto e prioridades, bem como uma avaliação do gosto do público.
Em um cenário banal em uma hora inconveniente, a beleza transcenderia?
O músico não tocava músicas populares cuja familiaridade poderia ter atraído o interesse de quem passava. Esse não era o teste. A ideia era ver se as obras-primas seculares brilhariam por si sós, fazendo com que a grandeza da música provocasse a reação da população de reconhecimento do incrível.
O que você acha que aconteceu?
Antes da pegadinha ser posta em prática, a opinião de um especialista foi pedida pelo Washington Post, que se referiu ao acontecimento como “hipotético”.
Leonard Slatkin, diretor musical da Orquestra Sinfônica Nacional dos EUA, respondeu o que ele pensava que ocorreria se um dos grandes violinistas do mundo se apresentasse anonimamente ao público na hora do rush em um metrô.
“Vamos supor que ele não é reconhecido e apenas tomado como um músico de rua. Ainda assim, eu acho que, se ele for realmente bom, não vai passar despercebido. Teria uma maior audiência na Europa, mas, sim, de 1.000 pessoas, o meu palpite é que pode haver 35 ou 40 que vão reconhecer a qualidade de seu som. Talvez 75 a 100 parem e passem algum tempo escutando”, chutou Slatkin.
Então, uma multidão se reuniria? “Ah, sim”, disse, convicto. E quanto esse músico deve ganhar? “Cerca de US$ 150 [R$ 300]”, opinou.
Em seguida, Slatkin soube que o evento não era hipotético. Tinha realmente acontecido. “Bem, quem foi o músico?”, perguntou.
Joshua Bell.
“NÃO!”.
Bell, o prodígio
Aos 39 anos, Joshua Bell é aclamado internacionalmente. Ele já tocou com as melhores orquestras por todo o mundo, mas também já apareceu em “Vila Sésamo”. Bell tocou até mesmo a trilha sonora do filme de 1998 “O Violino Vermelho”. Conforme o compositor John Corigliano aceitou o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original Dramática, creditou Bell, que, segundo ele, “toca como um deus”.
Três dias antes de sua “performance de rua”, ele se apresentou de casa cheia no imponente Boston Symphony Hall, evento no qual os “piores” assentos foram vendidos por US$ 100 (cerca de R$ 200).
Bell é um galã. Alto e bonito, simples e direto, é difícil de não notá-lo. Ao aceitar a pegadinha do jornal, apesar de estar acostumado com elogios, pediu apenas que não fosse referido como um gênio.
O evento havia sido descrito a ele como um teste para saber se, em um contexto incongruente, pessoas comuns reconheceriam genialidade. “Não me sinto confortável se você me chamar de gênio”, disse. Segundo ele, era uma palavra muito utilizada, e podia ser aplicada a alguns dos compositores cuja obra ele toca, mas não a ele. Suas habilidades são em grande parte interpretativas, argumentou.
No entanto, se tomarmos gênio como a definição é aplicada no campo da música, é exatamente o que ele é. Genialidade é um brilho congênito – uma habilidade inata e sobrenatural que se manifesta cedo, e muitas vezes de forma dramática.
Um fato intrigante sobre Bell é que ele teve suas primeiras lições musicais quando tinha 4 anos de idade, em Bloomington, Indiana (EUA). Seus pais, ambos psicólogos, decidiram dar-lhe treinamento formal depois que viram que seu filho havia amarrado faixas de borracha nas gavetas de sua cômoda e estava replicando melodias clássicas apenas de ouvido, movendo as gavetas para variar o tom. Se isso não for uma criança prodígio, não sei o que é.
O dia D
Bell levou para seu show anônimo o mesmo instrumento que sempre toca: chamado Gibson ex Huberman, é um violino artesanal feito em 1713 por Antonio Stradivari durante o “período de ouro” do mestre italiano, no final de sua carreira. Nenhum violino soa tão maravilhoso quanto Stradivarius da década de 1710, diria qualquer especialista.
Bell toma o maior cuidado com seu instrumento. Nada pode acontecer com ele, ou o som que ele produz pode ser diferente. A frente do violino está em estado quase perfeito, com um lustroso brilho. A parte de trás, no entanto, é uma bagunça; seu acabamento escuro avermelhado vai se esvaindo até uma seção de madeira nua.
Isso porque a parte de trás nunca foi refeita, e está com seu verniz original. Muitas pessoas atribuem os aspectos do som de um violino ao verniz. Cada fabricante tinha a sua própria fórmula secreta. Acredita-se que a de Stradivari era um coquetel engenhosamente equilibrado de mel, clara de ovos e goma arábica de árvores da África subsariana. E este instrumento em particular tem um passado cheio de mistério. Por duas vezes, foi roubado de seu proprietário prévio, o polonês Bronislaw Huberman.
A primeira vez, em 1919, desapareceu do quarto de Huberman em Viena, mas foi rapidamente devolvido. Da segunda vez, quase 20 anos mais tarde, foi pego de seu camarim no Carnegie Hall. Somente em 1985 o ladrão – um violinista de Nova York – fez uma confissão no seu leito de morte a sua esposa, e devolveu o instrumento.
Bell o comprou alguns anos atrás. Para tanto, teve que vender seu próprio Stradivarius e dar muito mais. O preço foi relatado em cerca de US$ 3,5 milhões (R$ 7 mi).
Naquela sexta, pessoas esperando o metrô ganhariam algo provavelmente mais caro do que poderiam pagar: um concerto de um dos músicos mais famosos do mundo de graça. Isso, é claro, se o notassem.
Bell decidiu começar sua apresentação com “Chaconne”, de Partita nº 2 de Johann Sebastian Bach em D Menor. Segundo ele, “não apenas é uma das maiores peças de música já escritas, mas uma das maiores conquistas de qualquer homem na história. É uma peça espiritualmente poderosa, emocionalmente poderosa, estruturalmente perfeita. Além disso, foi escrita para um solo de violino, por isso não estarei fazendo alguma versão meia-boca”.
Bell não disse, mas a peça também é considerada uma das mais difíceis de se dominar. Muitos tentam, poucos conseguem. É exaustivamente longa – 14 minutos – e consiste inteiramente de uma única progressão sucinta repetida em dezenas de variações para criar uma arquitetura assustadoramente complexa. Composta por volta de 1720, na véspera do Iluminismo europeu, é dita como uma celebração da amplitude da possibilidade humana.
Ele realmente não fez uma versão meia-boca: tocou com um entusiasmo acrobático, seu corpo inclinando-se para a música e arqueando na ponta dos pés nas notas altas. O som era quase sinfônico.
No entanto, três minutos se passaram até que algo aconteceu. 63 pessoas já haviam passado quando, finalmente, um homem de meia-idade alterou sua marcha por uma fração de segundo, virando a cabeça para perceber que tinha um cara tocando música. Só isso.
Meio minuto mais tarde, Bell conseguiu sua primeira doação. Uma mulher jogou um dinheirinho e continuou andando. Mais seis minutos depois, alguém finalmente se recostou contra uma parede para escutar.
Esse alguém era John David Mortensen. Ele não entende de música clássica. Mas, pela primeira vez em sua vida, parou para ouvir um músico de rua. Ele tinha três minutos para gastar, e ficou ali todos eles. No fim, outra atitude inédita: deu dinheiro a um músico de rua. Ele não soube dizer por que, mas algo sobre a peça o deixou em paz.
Depois de “Chaconne”, veio “Ave Maria” de Franz Schubert, que surpreendeu alguns críticos de música quando foi estreada em 1825: Schubert raramente mostrava sentimento religioso em suas composições, mas “Ave Maria” é uma obra de tirar o fôlego.
Um par de minutos se passa, e algo revelador acontece. Uma mulher e seu filho, em idade pré-escolar, emergem da escada rolante. A mulher anda rapidamente, segurando a mão da criança.
Sheron Parker está com pressa. Seu filho Evan, 3 anos, está intrigado, no entanto. Ele fica se deslocando, olhando para trás, tentando assistir Joshua Bell. Ele queria parar e ouvir, mas Sheron não podia. Ela habilmente se pôs entre Evan e Bell, cortando sua linha de visão. Mais tarde, quando soube o que havia perdido, riu. “Evan é muito inteligente!”, disse.
Crianças são mesmo inteligentes. Não houve padrão étnico ou demográfico para distinguir as pessoas que ficaram para assistir Bell, ou que lhe deram dinheiro. Brancos, negros e asiáticos, jovens e velhos, homens e mulheres, foram representados em todos os grupos. Mas um comportamento manteve-se absolutamente constante: toda vez que uma criança passava, tentava parar e assistir. Todas as vezes, um pai puxou a criança embora.
Bell toca em seguida a peça de Manuel Ponce “Estrellita”, então uma peça de Jules Massenet, e então começa novamente uma de Bach.
Conclusão: sete pessoas pararam o que estavam fazendo para lhe ouvir pelo menos por um minuto. 27 lhe deram dinheiro, a maioria deles sem parar; um total de US$ 32,17 (cerca de R$ 65). 1.070 pessoas sequer se viraram para olhá-lo.
Segundo Bell, nesse tempo todo, há seis momentos particularmente dolorosos de reviver: o que acontece logo após cada peça termina, que é… nada. A música para. As mesmas pessoas que não tinham o notado continuando não o notando. Nenhum aplauso, nenhum reconhecimento.
Observando o vídeo semanas depois, Bell se encontra mistificado por uma única coisa. Ele entende por que não há uma multidão o ouvindo na hora do rush, mas fica surpreso com o número de pessoas que não prestam atenção nenhuma nele, como se fosse invisível, quando na verdade está fazendo MUITO barulho.
E é verdade. Portanto, aqueles que passam, cabeça para a frente, como se não tivesse nenhum som ali, são totalmente alheios ao seu redor? Bell se pergunta se a sua desatenção pode ser deliberada: se você não tomar nota do músico, você não tem que se sentir culpado por não dar dinheiro.
Pode ser verdade, mas ninguém deu essa explicação. As pessoas simplesmente disseram que estavam ocupadas, tinham outras coisas em sua cabeça. Algumas pessoas que estavam falando em celulares gritaram mais alto quando passaram por Bell, tentando competir com o barulho infernal.
Na preparação para este evento, os editores do The Post discutiram como lidar com prováveis resultados. A suposição mais difundida era de que poderia haver um problema com o controle da multidão: eles achavam que várias pessoas reconheceriam Bell.
Conforme se reunissem, se uma multidão se formasse, câmeras provavelmente começariam a piscar, mais pessoas começariam a chegar, então o que aconteceria? Atrapalharia o metrô? Causaria brigas?
No fim das contas, apenas uma pessoa ficou mais de 9 minutos ouvindo Bell – John Picarello, porque gostava de música clássica e realmente adorou o que ouviu, distinguindo que era um músico muito bom que estava a sua frente.
E apenas uma pessoa realmente reconheceu Bell. Stacy Furukawa havia visto Bell tocar em um concerto antes, e certamente parou, surpresa, para ouvi-lo no metrô. “Foi a coisa mais impressionante que eu já vi em Washington”, diz Furukawa. “Joshua Bell estava lá tocando na hora do rush, e as pessoas não paravam, e nem mesmo olhavam, e alguns jogaram moedas para ele! Moedas!”, comentou. Graças a ela, que lhe deu US$ 20, a contagem final chegou a US$ 32,17.
Sim, algumas pessoas deram centavos ao cara que foi, semanas depois desse dia, aclamado o melhor músico clássico da América pelo prêmio Avery Fisher.
Não reconhecemos o belo, ou o belo é irrelevante?
Slatkin errou. Nunca houve uma multidão, nem mesmo por um segundo.
Foi tudo filmado por uma câmera escondida. Você pode reproduzir a gravação uma ou 15 vezes, nunca fica mais fácil de assistir.
Se um grande músico toca incríveis músicas e ninguém ouve… Será que ele é realmente bom?
Esse é um velho debate epistemológico. Platão já pesou sobre o assunto, assim como filósofos de dois milênios depois. O que é beleza?
É um fato mensurável (Gottfried Leibniz), ou apenas um parecer (David Hume), ou é um pouco de cada um, colorido pelo estado imediato da mente do observador (Immanuel Kant)?
Kant pode estar certo.
“No início, eu estava apenas concentrado em tocar a música. Eu não estava realmente vendo o que estava acontecendo ao meu redor. Quando você toca uma peça para violino, você é um contador de histórias, e você está contando uma história”, diz Bell.
Eventualmente, porém, ele começou a roubar um olhar de soslaio. “Foi uma sensação estranha, de que as pessoas estavam na verdade, ah…”. A palavra não vem facilmente. “… Ignorando-me”, fala, por fim.
“Em um concerto, fico chateado se alguém tosse ou se o celular de alguém toca. Mas lá, as minhas expectativas diminuíram rapidamente. Comecei a apreciar qualquer reconhecimento, mesmo um olhar ligeiro. Eu ficava estranhamente grato quando alguém jogava um dólar, em vez de moedas”, conta. E isso vem de um homem cujo talento pode exigir US$ 1.000 (cerca de R$ 2 mil) por minuto.
Mark Leithauser é o curador sênior da National Gallery, e supervisiona o enquadramento das pinturas. Ele acha que tem alguma ideia do que aconteceu naquela estação de metro.
Fora de contexto, Leithauser acredita que mesmo especialistas não reconheceriam uma obra-prima. Poderiam notar a similaridade, mas talvez não validariam um quadro famoso ou valioso pendurado sem uma moldura elegante em um restaurante qualquer.
Portanto, ele acha que não devemos rotular prontamente os transeuntes americanos de “não sofisticados”. O contexto importa.
Kant concorda. Ele já argumentou que a habilidade de apreciar a beleza está relacionada com a habilidade de fazer julgamentos morais. Mas há uma ressalva. Para adequadamente apreciar a beleza, as condições de visualização devem ser ideais.
No metrô, com pressa, indo ao trabalho, de fato não é o momento ideal para apreciar Joshua Bell. E, fora de contexto, é difícil reconhecê-lo – como de fato foi, até mesmo para o cara que se sentou lá 9 minutos e gostava de música clássica – e de Bell.
Vamos dizer que Kant está certo. Vamos aceitar que não podemos olhar para o que aconteceu em 12 de janeiro de 2007 e fazer qualquer julgamento sobre a sofisticação do povo ou a sua capacidade de apreciar a beleza.
Mas e sobre sua capacidade de apreciar a vida?
Estamos ocupados. Somos ocupados. A vida moderna nos leva a uma constante busca pela acumulação de riqueza. Mas e o resto?
Se não temos tempo para parar um momento e ouvir um dos melhores músicos da Terra tocar algumas das melhores músicas já escritas, então o que mais estamos perdendo? Nossas prioridades estão todas erradas?
Isso somente cada um pode dizer a si mesmo. Eu sei que, da próxima vez que passar por qualquer alguém tocando qualquer coisa, vou fazer meu máximo para ouvir. Antes perder meu tempo com coisas demais do que perder meu tempo com coisas de menos. [WashigtonPost]
Fonte: HypeScience.