O Adorador

O Remanescente e a Cultura Pós-Moderna

por: Pr. Douglas Reis

Após minha ordenação ao ministério, esperei ansioso o primeiro batismo que eu oficiaria. A oportunidade chegou: batizaria uma jovem que aceitara a verdade bíblica. No dia da cerimônia, concluído o sermão, saí para colocar o caça-marreco, macacão de borracha impermeável vestido por baixo da beca batismal. Dentro do tanque, senti a temperatura da água, embora não me molhasse. “Isso funciona mesmo!”, pensei. No fim da cerimônia, quase não precisei usar a toalha, porque meu corpo estava apenas levemente úmido.

Estar na água sem ter contato direto com ela: isso faz recordar a oração de Jesus antes de ser preso: “Eu lhes tenho dado a Tua palavra, e o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como também Eu não sou. Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como também Eu não sou. Santifica-os na verdade; a Tua palavra é a verdade” (João 17:14-17). De acordo com Jesus, Seus discípulos não são do mundo, mas estão no mundo. Estão cercados pela cultura, com elementos contrários ao evangelho, mas sem imergir nela. A verdade tornaria os discípulos impermeáveis aos erros da cultura ao redor.

Desafio da cultura

Cultura é um termo bem amplo. [1] De modo geral, inclui costumes, língua, tradições, história e modo de viver de um povo. A cultura se assemelha a um tapete, composto de fios diversos, formando uma peça única com determinada estampa. [2] Em verdade, a cultura não é autônoma, mas é o que fazemos dela. A maneira pela qual interagimos com a cultura define nossa atuação como cristãos – a começar pela interpretação do que significa ser cristão e pela leitura da época na qual estamos inseridos. E o que dizer da cultura ocidental no século 21?

As mudanças filosóficas e culturais levaram a sociedade ocidental ao período conhecido como pós-modernidade. Ele norteia os debates acadêmicos das universidades, mas afeta igualmente a cultura popular. Se o desafio dos cristãos é estar no mundo, sem pertencer a ele, devemos entender o que é a pós-modernidade. Afinal, temos que interagir com a cultura pós-moderna com o objetivo de testemunhar para as pessoas dessa época. Contudo, ainda devemos ficar impermeáveis, protegidos pela verdade que santifica.

Cultura pós-moderna

O pensamento pós-modernista é influente na atualidade, sobretudo sobre as gerações mais novas. Ele nega o racionalismo autoconfiante do período anterior, a modernidade. A mente pós-moderna desistiu de buscar a verdade absoluta. Vale agora a verdade útil, que funcione e traga satisfação em nível individual. A isso chamamos de relativismo, ideia segundo a qual a verdade depende da perspectiva de quem a examina, variando conforme as circunstâncias. [3]

O pós-modernismo defende que não há critérios morais válidos para todos os contextos. [4] Assim, somos simplesmente o produto de determinadas condições históricas e culturais além de nosso controle. [5] Para medirmos o alcance do relativismo, o filósofo cristão Paul Copan cita uma pesquisa do Instituto Barna Group, realizada em 2002: 83% dos adolescentes americanos dizem que a moral depende das circunstâncias e 75% dos adultos abraçam o relativismo moral. [6]

Sendo que não há verdade objetiva, cada tradição intelectual ou religiosa encara a verdade de forma diferenciada, não sendo melhor nem pior do que outras verdades. Diz o filósofo ateu Richard Rorty: “Tudo de que precisamos é abandonar a ideia de que deveríamos tentar encontrar uma forma de fazer tudo permanecer unido, que fale aos seres humanos o que fazer com a vida deles, dizendo a todos a mesma coisa”. [7] Em vez de defender o que cremos como verdade, os pós-modernos exigem que sejamos tolerantes.

Talvez haja poucas palavras tão evocadas atualmente quanto tolerância. É correto afirmar que “tolerância se tornou parte da ‘estrutura de plausibilidade ocidental’”. [8] Antes, tolerância implicava resignar-se perante divergências de natureza ideológica ou de mera opinião. Agora, tolerância implica minar as próprias divergências. Qualquer ideologia ou opinião não mais é considerada superior às outras. Em tempos do politicamente correto, toda afirmação dogmática pode ser avaliada imediatamente como intolerante. A persuasão religiosa é vista com ressalvas e considerada potencialmente perigosa. Afinal, forçar o outro a crer não significaria imposição? Se todas as religiões fizessem isso, não veríamos conflitos religiosos?

Dentro dessa perspectiva dinâmica, mudar de opinião, segundo a conveniência, é usual – as pessoas trocam de marca de roupa e de religião sem nenhum peso na consciência. O importante é ter muitas opções de escolha e experimentar sempre, para escolher do seu jeito (não por acaso, o consumismo é um dos traços mais fortes do comportamento pós-moderno).

A pós-modernidade vem chamando a atenção dos cristãos. Alguns até se declaram pós-modernos, adaptados às demandas da época. Falta saber qual é o impacto da pós-modernidade sobre o movimento adventista. Como as noções pós-modernas afetam sua identidade e a alegação de que somos o povo remanescente?

Cansados da cultura do remanescente?

O adventismo é um movimento cristão singular, que surgiu do cumprimento das profecias e com o propósito de ser usado por Deus para testemunhar à cultura sobre o plano de salvação expresso na Bíblia e detalhado nas profecias. [9] A justificativa de sua existência é “viver e apresentar seu projeto teológico alternativo, com base na Bíblia, a todo o mundo”. [10] Há clara identificação do adventismo com o remanescente de Apocalipse 12, uma entidade visível formada por pessoas com uma mensagem mundial. [11]

Na essência do adventismo está a doutrina do grande conflito cósmico, que serve de “pano de fundo dentro do qual se desenvolve o plano para salvar o ser humano”. [12] A salvação anunciada “é mais do que salvação pessoal” – implica a restauração dos homens e da própria criação. [13]

Essa autocompreensão adventista é posta em xeque pela pós-modernidade. O teólogo Alberto Timm reconhece que denominações cristãs “de tempos em tempos se inclinam a substituir os ensinos da Bíblia pelos componentes antibíblicos da cultura contemporânea”. [14] Como isso ocorre em relação ao adventismo? “O adventismo se seculariza ao adaptar seu pensamento e conduta aos padrões do mundo, este mundo que está mais distante do Deus da Bíblia do que o mundo do século 19 estava dos pioneiros adventistas.” [15 ]

Um estudo recente, divulgado em outubro de 2013, confirma a pressão vinda das “águas” da cultura: intitulado “Twenty-first century seventh-day adventist connection study”, o estudo parte de cinco projetos integrados, apresenta o resultado de 41 mil entrevistas ao redor do mundo, tornando-se a mais abrangente pesquisa desse tipo realizada com adventistas. Entre as doutrinas adventistas mais rejeitadas, estão as que figuram como as mais distintivas: casamento entre homem e mulher; santuário no Antigo Testamento como modelo do santuário celestial; criação em seis dias em um passado recente; dom de profecia em Ellen G. White; juízo pré-advento; crença de que somos o remanescente da profecia, etc. [16] Dizer que alguém queira se batizar por ter aceitado a verdade é inconcebível na cultura pós-moderna – até para certos adventistas!

Pelo que tudo indica, muitos adventistas renunciam claros ensinamentos bíblicos da igreja devido à influência da cultura pós-moderna. Certo jovem adventista fez o seguinte comentário em meu blog: “É preciso buscar um caminho novo, e não voltar ao antigo que nos trouxe até aqui. Um adventismo mais honesto e autêntico, que admita sua busca e repudie a noção de que temos quase toda ou mesmo enorme parte da verdade.” Infelizmente, o ato de recorrer à cultura tem gerado polarização entre os adventistas e não união nem avanço missionário (como as pesquisas mostram). [17]

Remar contra a cultura secular

Embora muitos líderes cristãos se regozijem com a abertura da pós-modernidade às crenças, o tipo de espiritualidade atual é destituído de conteúdo cognitivo e incompatível com o que a revelação apresenta. A Bíblia assume que a verdade é objetiva e passível de ser conhecida. Embora o conhecimento humano não seja absoluto, no sentido de ser exaustivo e onisciente (I Coríntios 13:9-10), é possível obter suficiente conhecimento da verdade (Deuteronômio 29:29), mediante a revelação feita por Deus, principalmente por meio de Jesus, a própria verdade (João 14:6; 17:3, 17). [18]

A solução para avançarmos é partir da perspectiva do pensamento bíblico. [19] O que foi revelado na Bíblia e nos testemunhos de Ellen G. White deve nortear não só crenças religiosas, mas comportamento, princípios e estilo de vida. O conhecimento acadêmico deve empregar a revelação como referencial; a vestimenta e a música que escolhemos têm que se conformar aos padrões estabelecidos por Deus. Quando isso for real, cada um de nós contará com o favor do Céu, experimentando a unidade. Na mesma oração em que Jesus menciona que não somos do mundo, apesar de vivermos nele, também é revelado que o caminho para a unidade (João 17:11) é sermos santificados na verdade (v. 19), o que fará o mundo crer que Deus nos enviou (v. 21).

Nesse sentido, compensa recorrer à seguinte citação dos testemunhos: “Deus queria que Seu povo fosse disciplinado e levado à harmonia de ação, de maneira a ter o mesmo ponto de vista, e ser de um mesmo espírito, julgando da mesma forma. A fim de produzir esse estado de coisas, muito há a fazer. O coração natural deve ser submetido e transformado. É desígnio de Deus que haja sempre um vivo testemunho na igreja. Será necessário reprovar e exortar, e alguns precisarão ser incisivamente repreendidos, segundo o caso o exigir.” [20] Quando vivermos a verdade em uma cultura que a rejeitou e valorizarmos a obediência a toda a Palavra de Deus, como Paulo e Jesus (Mateus 4:4; Atos 20:27, 30), isso causará profundo impacto nas pessoas à nossa volta. Santificados na verdade, venceremos!


Douglas Reis, capelão do IAP, atualmente cursa o mestrado em Teologia pela Universidade Adventista del Plata, Argentina.


Referências

1. Para uma discussão da evolução do conceito a partir de sua etimologia, ver Terry Eagleton, A Ideia de Cultura (São Paulo, SP: Editora Unesp, 2011), p. 10. (voltar)

2. David J. Hesselgrave, A Comunicação Transcultural do Evangelho (São Paulo, SP: Vida Nova, 1995), p. 217. (voltar)

3. Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia (Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 2008), 5a ed., p. 238, verbete “relativismo”. (voltar)

4. D. A. Carson, Becoming conversanting with emerging church understand a movement and its implications (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2005), p. 112. (voltar)

5. Arno Anzenbacher, Introdução à Filosofia Ocidental (Petrópolis, RJ: Vozes, 2009), p. 187. (voltar)

6. Paul Copan, “True for you but not for me”: deflating the slogans that leave Christians speechless (Bloomington, Minnesota: Bethany House Publishers, 2009), p. 11-12. (voltar)

7. Richard Rorty, Filosofia Como Política Cultural (São Paulo, SP: Martins fontes, 2009), p. 24, 25, 28, 61. (voltar)

8. D. A. Carson, The Intolerance of Tolerance (Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 2012), 1. Estrutura de plausibilidade se refere a pressupostos assumidos que legitimam processos sociais. (voltar)

9. Richard P. Lehmann, “O Remanescente no Apocalipse” em Ángel Manuel Rodríguez, Teologia do Remanescente: Uma Perspectiva Eclesiológica Adventista (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 109. (voltar)

10. Fernando Canale, “Completando La Teología Adventista: El Proyecto Teológico Adventista Y Su Impacto En La Iglesia – Parte II”, DavarLogos (Libertador San Martín, 2007), v. 6, nº 2, p. 135. (voltar)

11. Ronald D. Bisell, “Reflections on the SDA Church as the Eschatological Remnant Church,” Asia Adventist Seminary Studies (Filipinas, 2001), v. 4, p. 74. (voltar)

12. Norman R. Gulley, Systematic Theology (Berrien Springs, Mich.: Andrews University Press, 2003), p. 433. (voltar)

13. Norman R. Gulley, “The Cosmic Controversy: World View for Theology and Life,” Journal of Adventist Theological Society (Berrien Springs, MI, 1996), ano 7, v. 2, p. 90. (voltar)

14. Alberto R. Timm, “Scripture and Experience,” Adventist Biblical Research (Silver Spring, MD, abril de 2009), 1, https://adventistbiblicalresearch.org/wp-content/uploads/Scripture-and-Experience.pdf. Acesso: 3 de fevereiro de 2014. (voltar)

15. Fernando Canale, “¿Adventismo Secular? Cómo Entender La Relación Entre Estilo de Vida Y Salvación” (Lima, Peru: Universidad Adventista Unión, 2012), p. 25. (voltar)

16. Douglas Jacobs et al., “Twenty-First Century Seventh-Day Adventist Connection Study Research Report” (Robert H. Pierson Institute of Evangelism and World Missions, 2013), 30, disponível em http://www.cye.org/assets/resources/icm/Research Data/Adventist Connection Survey Research Report.pdf. Acesso: 17 de novembro de 2013. (voltar)

17. Ángel Manuel Rodríguez, “Polarización Teológica: Causas Y Tendencias,” Ministerio Adventista 59, nº 350 (outubro de 2011), p. 13. (voltar)

18. Ver Douglas Reis, “Explosão Y: Adventismo, pós-modernidade e gerações emergentes” (Ivatuba, PR: IAP, 2013). (voltar)

19. Fernando Canale, “Absolute theological truth in postmodern times”, Andrews University Seminar Studies (Berrien Springs, MI: 2007), v. 45, nº 1, p. 93. (voltar)

20. Ellen G. White, Testemunhos Seletos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996), v. 1, p. 343, 344. (voltar)


Fonte: Revista Adventista, Maio de 2014, pp. 8-10


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