por: Joêzer de Souza Mendonça
Por que o gospel conquistou o Brasil? Essa é a pergunta feita por uma revista semanal. Mas é bom deixar claro que o gospel não conquistou o Brasil. Na verdade, o gospel conquistou os evangélicos e o bolso falido do mercado fonográfico secular. E isto é um feito bastante comemorado. São evangélicos, e aqui agrego protestantes e pentecostais sob o mesmo guarda-chuva, os principais consumidores da música gospel. Quem compra produtos do Padre Marcelo Rossi dificilmente vai adquirir produtos com a marca evangélica. E vice-versa. Espiritualistas, umbandistas, budistas, judeus e muçulmanos também não são fazem parte do público de Regis Danese e Diante do Trono.
As evidências financeiras demonstram a força econômica do segmento evangélico. Candidatos a cargo legislativo não deixam de acenar para as igrejas evangélicas. Os meios de comunicação, atrelados a grandes gravadoras, promovem artistas cristãos. As universidades se debruçam sobre esse tema. Então, mesmo sem estar à altura de ser convidado a responder publicamente essa questão, nem a convite do meio secular nem do meio evangélico, vou sugerir algumas respostas e explicações.
A explicação estatística: o fenômeno do crescimento evangélico não é uma dádiva de toda denominação cristã. O número de católicos se reduz a cada censo e os protestantes têm crescimento moderado. As igrejas do pentecostalismo histórico, como a Assembleia de Deus, também não crescem em ritmo espantoso. A explosão demográfica ocorre no ramo neopentecostal (das igrejas Universal, da Graça de Deus, do Poder de Deus, Renascer, Sara Nossa Terra e muitas outras cujo nome começa com Comunidade Evangélica acrescido do bairro onde se localiza). Maior número de fiéis implica maior número de consumidores. Mas não existe aumento de consumo sem aumento da riqueza do país. Precisamos de mais justificativas.
A explicação econômica: Essa expansão religiosa começou principalmente em regiões urbanas com maior índice de pobreza e com menor escolaridade. Daí a argumentação de que estas igrejas exploram a necessidade de conforto espiritual e material ao prometerem bênçãos assim na terra como no céu: o fiel não precisa esperar para ter uma carruagem no céu; ele já pode ter seu carrinho aqui e agora. A teologia da prosperidade encontrou um terreno fértil na teoria econômica da prosperidade do governo Lula. O sucesso de um gigantesco plano de transferência de renda, como o Bolsa-Família, possibilitou a entrada de milhões de pessoas no mercado de consumo e a saída de outros milhões da miséria total. Mesmo longe do crescimento chinês, a economia brasileira cresceu o suficiente para animar o circuito do mercado: aumento de consumo – aumento de produção – aumento de empregos e mais consumo etc. No campo evangélico, surgiu um grande nicho consumidor de produtos de moda e música. Aumentou-se a produção musical, gerou-se mais renda e emprego na indústria de linha gospel, o que levou à organização de um evento comercial de grande porte como a ExpoCristã. Mas há velhos e novos ricos nessas igrejas; só a economia não explica tudo.
A explicação sociológica: desde sua inserção no Brasil, o protestantismo e o pentecostalismo afastaram-se da cultura musical popular brasileira. Os primeiros conversos eram de origem europeia e também não compartilhavam o gosto pela música tupiniquim. Depois os hinos passaram a ser cantados em português, mas eram, em sua maioria, versões de hinos norte-americanos e europeus. Era uma época em que o país era oficialmente católico e qualquer outra religião era vista com suspeita e preconceito. Junte-se a isso o sectarismo religioso e o elitismo musical e temos uma igreja cunhada em forte repressão a comportamentos individuais e objetos culturais (penteados, vestuário, música popular, futebol, filmes).
Desde o final do século 20, há maior espaço na sociedade para o exercício da individualidade e da identidade cultural local. Os jovens reúnem-se em torno de gostos e idiossincrasias comuns, gerando as chamadas "tribos urbanas" dos surfistas, dos metaleiros, dos skatistas etc. A cultura tornou-se um bem de consumo e o marketing uma ferramenta indispensável. Tudo isso repercutiu no campo religioso. Inclusive a crise de liderança hierárquica e institucional, o que, no campo denominacional, gerou uma infinidade de novas igrejas. Os novos comportamentos sociais fizeram com que as igrejas remodelassem seus métodos de evangelismo. A opção por mudar a forma sem alterar o conteúdo pode ter efeitos discutíveis, mas aproximou a mensagem cristã central de salvação dos marginalizados social e culturalmente. A música, formato de atração preferencial, conservou a mensagem central evangélica na letra e abriu-se para os antigos e novos gêneros musicais populares.
A explicação estética-cultural: se as pessoas se sentem mais livres para expressar sua fé segundo a cultura musical que entendem e apreciam, de nada mais adianta um pastor dizer que “Deus não gosta dessa música”. Até porque um irmão mais atento vai perceber que não há uma só linha na Bíblia indicando qual o estilo musical da preferência divina [Deus pode ter suas preocupações estilísticas, mas a Bíblia ressalta mais Seu descontentamento quanto ao coração hipócrita do adorador]. Durante décadas, a música foi administrada na igreja por pessoas que tinham formação musical clássica/erudita, o que teria determinado o modelo das composições litúrgicas. Às vezes, sem nenhum apoio escriturístico, eles associavam a música clássica ao bom gosto e, como o culto evangélico era tradicionalmente formal e solene, em algumas igrejas esse modelo musical se tornou “o gosto de Deus”.
A sociedade atual, uma vigilante da liberdade individual, fez triunfar a democratização musical. Não só os formados em conservatórios podiam compor música cristã, mas o sacerdócio musical passou a ser de todos os crentes. Logo, a linguagem e a forma seriam diversificadas. As pessoas não precisavam mais louvar a Deus com a música “importada”, de letras enciclopédicas e de estilo parnasiano. Nem ter voz formalmente educada. A contextualização da linguagem vista em livros e revistas (como a maneira apropriada de falar para faixas etárias diferentes) passou a ser ouvida e cantada. Além disso, por muito tempo se teve vergonha de ser brasileiro e a cultura popular era demonizada. Os novos evangélicos têm orgulho da cultura nacional e usam a cultura brasileira para celebrar sua conversão, sua nova vida e seu Deus. Há mais gêneros musicais sendo tocados, mais pessoas que esperam ouvi-los e mais empresários querendo abocanhar essa fatia do mercado.
A explicação mercadológica: em tempos de forte consumismo e de transformação da cultura em mercadoria, o modelo industrial necessita tanto de novidades para saciar a demanda quanto de produtos já consagrados feitos com a receita na mão. A receita para o sucesso tem sido a música de “Louvor & Adoração”. É um estilo de melodias e letras simples e refrões repetitivos, mas não foi criado pela indústria fonográfica. Trata-se de um gênero congregacional, feito para o povo cantar. As letras abordam principalmente temas como a grandiosidade de Deus e a paixão por Jesus. A repetição prolongada do refrão é vista como um estímulo ao êxtase ou transe místico – não por acaso, seus críticos chamam esse estilo de "mantra gospel". A fórmula não passou despercebida e hoje toda igreja tem um ministério de louvor.
A oferta musical é bem variada: do axé ao sertanejo universitário, do pagode ao heavy metal. A diversificação dos estilos acompanha a necessidade de atender às novas demandas musicais e litúrgicas dos evangélicos neste novo século, o que é resultado tanto da valorização dos estilos musicais populares (em oposição à elitização e preconceito musical do passado) quanto da forte interação entre capitalismo e neopentecostalismo.
O combalido mercado fonográfico secular viu que o gospel é um nicho em expansão e com menor índice de pirataria, o que gerou contratações de cantores e bandas evangélicas. Os CDs de "Louvor & Adoração" geralmente são os mais vendidos e alguns de seus cantores se tornaram eficientes garotos-propaganda de marcas e produtos. Sua aura de artista consagrado (alguns são chamados de "levitas") é alugada à indústria da moda e da sonoplastia, ocorrendo uma fusão de sua imagem religiosa com a marca comercial. A exposição do gospel na mídia aumentou, assim como o lucro das empresas. Boa parte dos evangélicos acredita que a exposição na mídia secular é uma benção para a evangelização do país. O sociólogo Max Weber acreditava que o espírito do capitalismo foi ativado pela ética protestante cuja mentalidade não mais via o lucro como pecado. Enquanto os puritanos norte-americanos de séculos passados trabalhavam para poupar e investir, os cristãos modernos estariam trabalhando para consumir. O teólogo Leonildo Campos avalia que o espírito do capitalismo foi reforçado pela ética neopentecostal cujo paradigma é "consumir não é pecado".
A explicação midiática: nos anos 1990, a Rede Globo exibia em seus telejornais algumas imagens polêmicas: um bispo da Record chutando a imagem de uma santa católica, enormes sacos com dinheiro sendo transportados após os megaeventos evangélicos no Maracanã. Mas, para alterar a ordem, nada como uma queda de audiência após a outra. O avanço comercial da Record levou a Globo a mudar a estratégia e hoje a "Marcha de Jesus" é mostrada no Jornal Nacional, artistas gospel cantam no Domingão do Faustão e a emissora divulga megaeventos gospel, como o Festival Promessas. Astros do futebol também demonstram sua fé em entrevistas e comemorações, imprimindo uma imagem de sucesso e jovialidade à religião. A exposição negativa na mídia, em geral, feita de denúncias de enriquecimento ilícito de certos líderes neopentecostais, é contraposta à exibição de imagens das multidões evangélicas pulando e cantando na rua (ainda que muitos evangélicos tradicionais nessas horas morram de vergonha alheia).
Com todo o respeito ao público que participa desses eventos, também é possível perceber que a consequência de megaeventos públicos não é a evangelização, mas sim a demonstração da necessidade de autoafirmação social. Assim como em outras marchas públicas, fica demonstrada uma necessidade de parecer "normal" e de deixar de ser socialmente invisível. Integração à cultura e visibilidade social amparadas pela música de trios elétricos e aparições de políticos. Ser evangélico não é mais ser “crente” no molde tradicional. O novo evangélico celebra sua fé, seu mercado, seu sucesso, seus artistas, sem medo de parecer um fã. À imagem e semelhança da mídia pop, as rádios utilizam o modelo da parada de sucesso para promover um CD e para dar voz ao ouvinte que vota na “melhor” música do dia; troféus gospel são concedidos aos “melhores” do ano. Como na mídia pop, o “melhor” nem sempre é o mais elaborado e profundo, e sim, o mais vendido e escutado. É quando a quantidade ganha ares de qualidade e o sucesso de vendas passa a ser visto como sinal de unção.
A explicação teológica: os pioneiros evangélicos enfrentaram mato, lama, distâncias e muito preconceito em sua missão de evangelizar o país no século 19 e início do século 20. Alcançada uma alma, esta teria que enfrentar uma bateria de estudos bíblicos em nível de vestibular. Depois, ainda teria que abandonar comportamentos costumeiros, tradições familiares, hábitos alimentares e culturais. Mas poucas igrejas mantiveram o rigor inicial quanto à repressão de costumes. Ou elas se adaptavam à sociedade ou minguavam. As adaptações, antes promovidas na esfera do comportamento e da aparência pessoal, passaram a ser teológicas.
As igrejas neopentecostais surgidas na década de 1970 enfatizavam o exorcismo e o dom de línguas. Várias igrejas neopentecostais nascidas duas décadas depois deram menor importância a programas em que o diabo era protagonista, renunciaram à glossolalia (o falar em línguas estranhas) e aderiram ao discurso da prosperidade e da cura. No campo musical, a retórica enfatiza a exaltação do poder de Deus e a unção espiritual. Há menor apelo à cruz, ao arrependimento, ao sacrifício pessoal. As músicas, assim como os sermões, estão menos focadas em ensinamento didático da doutrina e mais preocupadas em enunciar as fraquezas pessoais que podem ser reparadas por meio do louvor e da comunhão, embora nem sempre por meio da reforma de hábitos e do estímulo ao conhecimento bíblico.
A teologia suscita menor interesse do que o louvor, embora não se possa dizer que isso seja um comportamento exclusivo do nosso tempo. Mas é certo que a ênfase teológica foi atenuada em prol da pregação da convivência pacífica e fraterna. As letras das músicas também perderam a sua capacidade de diferenciar-se teologicamente, o que deu mais espaço para uma poética de clichês e chavões evangélicos (o "evangeliquês"). O desinteresse em aprofundamento teológico ecoa no desinteresse em densidade artística.
Uma música demonstra uma determinada visão teológica. Se esta visão teológica suaviza a doutrina e enfatiza a intimidade com Deus, os compositores farão músicas com tais características. O problema não está no sucesso popular desses caracteres, mas na exclusividade desse modelo teológico-musical. Quando a mídia gospel passa a celebrar "As 10 Mais" no rádio, a indústria, por sua natureza comercial, irá incentivar a criação de canções e grupos que reproduzam o modelo musical que está no topo da parada de sucessos.
Por enquanto, o mundo gospel demonstra uma nítida capacidade de amoldar-se aos modelos seculares de entretenimento e de estratégias musicais e publicitárias. Enquanto a música gospel atenuar sua mensagem de conversão, ela terá livre trânsito na mídia secular e exercerá forte atração no meio evangélico. Se um dia a mensagem for tanto de admoestação quanto de celebração, ou for mais de púlpito do que de trio elétrico, mais de cruz e serviço do que de cds e sucesso, mais inclinada à identidade bíblica do que ao linguajar ecumênico, então as avenidas se fecharão para essa mensagem e o mercado ficará vazio.
Não sei dizer se os evangélicos conquistarão o Brasil descrente para o evangelho, mas certamente já conquistaram o Brasil cristão para o gospel.
Fonte: Nota na Pauta