Hinologia

Uma Análise dos Cânticos nos Evangelhos – O Magnificat e o Benedictus

por: Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho [*]

Tem havido uma ênfase muito grande no Antigo Testamento, em nossas igrejas. Esta ênfase se verifica inclusive nas pregações e nos cânticos. Isto não é mau, em si. O autor deste trabalho é professor de Antigo Testamento e disciplinas correlatas, e autor de vários comentários exegéticos de livros do Antigo Testamento e se sente bem nesta porção da Bíblia. O problema é que alguns parecem esquecer que somos cristãos, somos regidos pelo Novo Testamento, que interpreta o Antigo, que somos filhos de nova aliança, prometida em Jeremias 31.31 e concretizada na instituição da ceia do Senhor, como lemos em Lucas 22.20. Muitas práticas e posições têm sido estabelecidas sem o parâmetro do Novo Testamento. Inclusive na área do louvor e de adoração. Isto se torna problemático para a igreja. Cristo tem sido empurrado para a periferia em muitas pregações e em muitas celebrações de louvor. E, em algumas ocasiões em que é lembrado, mais se assemelha a um Cristo da nova era, uma força ou uma energia, um emblema de uma espiritualidade vaga, do que a pessoa histórica em que Deus se encarnou e esteve entre nós.

Somos filhos de Novo Testamento, cuja teologia deve nos reger. Por isto que examinar seu ensino teológico sobre o conteúdo do louvor nos fará bem. Há hinos no Apocalipse, nas epístolas de Paulo e de Pedro, bem como nos evangelhos. Fiquemos por hora com dois dos cânticos mais conhecidos do Novo Testamento, e encontrados, ambos, no evangelho de Lucas. Um é o cântico de Maria (Lc 1.47-55), chamado de Magnificat, e o outro é o cântico de Zacarias (Lc 1.68-79), chamado de Benedictus. Como é a teologia deles? Que sinalizam para os cânticos contemporâneos, em termos de conteúdo?

Uma Pista Já Nos Títulos

O cântico de Maria é chamado de Magnificat por causa da primeira palavra em sua redação latina. “A minha alma engrandece ao Senhor” (Lc 1.46), diz-nos o texto em português. Mas magnificat é a expressão latina para “engrandece”. É um cântico que exalta a grandeza de Deus, colocando o adorador como quem reconhece e exalta esta magnificência divina. A ênfase está na grandeza do Senhor. Nada de novo, pois o Salmo 139 é uma exultação plena sobre a majestade divina em vários aspectos. Mas guarde-se isto: a ênfase não está no adorador, mas na grandeza divina. A grandeza de Deus é o motivo central do cântico. Os cânticos são para engrandecer a Deus, e não para nos sentirmos bem, embora engrandecer a Deus não nos faça mal. Mas o foco deve ser Deus. Outros aspectos são secundários.

O cântico de Zacarias é chamado de Benedictus por causa da expressão latina para “Bendito”, que é a primeira palavra do cântico (Lc 1.68). Ele segue uma estrutura comum nos cânticos de Israel. O cântico bendiz a Deus pelo agir divino no presente, que é a visitação divina na pessoa do menino, mas olha para o futuro, conforme se observa nos versículos 76-79. O cântico de Maria louva a Deus por aquilo que ele é. O cântico de Zacarias louva a Deus pelos seus atos na história, tanto no passado como no futuro. A ação de Deus na história é o motivo central do cântico do pai do Batista.

Os dois motivos centrais no dois cânticos são estes: Deus deve ser louvado pelo seu ser e pela sua obra. Pelo que é, pelo que fez e pelo que fará. Devemos adorar a Deus pelo seu caráter e por suas obras. Isto não traz nada de novo e todos concordaremos com isto, mas caminhemos mais um pouco em nossas observações.

Um Pouco do Conteúdo do Magnificat

Uma análise exaustiva do cântico de Maria nos tomaria muito espaço. Nosso propósito é uma visão geral que delineie o conteúdo do primeiro cântico de louvor a Deus no evangelho. Assim procedemos.

Começando pela exaltação do ser de Deus, o cântico logo nos desvela o sentimento da adoradora. “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito exulta em Deus meu Salvador” (vv. 46-47). Onde temos “engrandece”, o correspondente em hebraico seria “Proclama as grandezas”. “Minha alma” não deve ser entendida como a parte espiritual da pessoa, mas tem o sentido de todo o ser de Maria. Não é um ato mecânico, mas algo profundo, com todo o seu ser. O cântico traz o sentido de uma pessoa totalmente absorta em Deus, derramada diante dele, agradecida. O primeiro cântico de louvor do Novo Testamento nos mostra o sentimento do adorador. Não é uma catarse nem entretenimento, mas um profundo reconhecimento de quem é Deus e do se está fazendo. É um momento de contrição. A verdadeira adoração parte de um coração rendido e absorto em Deus. Não há estrelismo humano, mas uma glorificação de Deus.

Sem qualquer preocupação de desconstruir a figura de Maria, ressaltemos a expressão “atentou na condição humilde de sua serva” (v. 48). Não é um cântico de superioridade, mas de claro reconhecimento de sua humildade. O que Maria recebeu do Poderoso foi por causa de sua graça. Ele “atentou”. O mérito é dele. É óbvio que nossos cânticos devem expressar nossa fé e nossos sentimentos, mas devem deixar claro que tudo que recebemos de Deus é por bondade sua e não mérito humano. Não reivindicamos nem declaramos, mas dizemos ter recebido manifestações da bondade divina. Nossos cânticos não devem exaltar o humano, mas sim o divino. Muitos “momentos de louvor” em nossas igrejas mostram que as pessoas estão usurpando o lugar de Deus no culto. Ou querendo aparecer mais que ele ou, ainda, tentando manipular as pessoas, produzindo-lhes emoções. Produzir emoções na vida do adorador é obra do Espírito Santo. E o evangelho de Jesus é tão poderoso que não precisa que pessoas sejam manipuladas para ele produzir efeitos. Basta centrar o foco em Deus. Ele faz o resto.

De uma perspectiva pessoal, o cântico se desloca. De Maria, passa a falar do próximo. Fala dos que temem a Deus (v. 50), e diz que ele agiu contra os soberbos e poderosos (vv. 51-52), elevou os humildes (v. 52), cuidou dos famintos e puniu os ricos (v. 53). Saiu da esfera do “eu” para a esfera do “eles”. Um cântico que não olha apenas para si, mas inclui os demais. Louvamos a Deus pela sua bondade para conosco, mas devemos reconhecer sua bondade para com os demais. O culto não é apenas “eu e Deus”. É “eu, Deus e os outros”. Embora Maria parta de sua experiência muito particular, sua gravidez pelo Espírito Santo, seu louvor inclui os demais. Evitemos o intimismo e um tipo de culto que se restrinja a nós. Mesmo no momento mais pessoal de nosso louvor devemos lembrar que Deus é misericordioso para com todos os fiéis e carentes. Cânticos e culto não podem resvalar para o intimismo. Há uma mensagem para todos e não apenas para o adorador em particular. Em nossa gratidão lembremos dos irmãos. Deus não é propriedade um adorador em particular, mas é o Senhor de todos os que crêem em Jesus.

Mais uma vez o cântico se desloca. Sai do próximo para o povo na sua totalidade: “auxiliou a Israel” (v. 54). É lamentável que tantos cânticos e tantos cultos sejam excludentes de faixas etárias. “Culto jovem”, por exemplo, enfatiza o adorador, não Deus, e restringe o culto a uma faixa etária. Faz triunfar o aspecto cultural sobre o aspecto teológico. O culto é um pecúlio espiritual de todo o povo de Deus, dirige-se a todo o povo de Deus, e em sua dimensão horizontal fala de todo o povo. Maria entoa um cântico que sai de sua pessoa, de sua gratidão pessoal para o reconhecimento da bondade de Deus para com todos. Um cântico que vê a totalidade do povo de Deus e não apenas os sentimentos da adoradora. Oportuna lembrança para nós! O culto público, principalmente, não pode primar pelo privatismo e pelo exclusivismo. O individualismo de um mundo sem Deus tem marcado até mesmo alguns de nossos cânticos, em que parecem existir apenas duas pessoas, o cantante e Deus. O culto é dos demais irmãos, repartimos as bênçãos com eles, e nos alegramos com eles.

Um Pouco do Conteúdo do Benedictus

O Benedictus é introduzido pela declaração de que Zacarias “ficou cheio do Espírito Santo, e profetizou” (v. 67). Vem com a força de ser uma declaração inspirada por Deus. Só por isto merece nossa especial atenção. “Bendito” (Benedictus) é o grego eulógetos, o mesmo termo que introduz o hino trinitariano de Efésios 1.3-14. Só é usado para Deus. Geralmente o termo está sempre celebrando um benefício especial que Deus concedeu a alguém. É um cântico que celebra uma bênção recebida.

A bênção é comunitária. Zacarias entende quem é o menino e louva a Deus pelo seu significado na história de Israel. O centro teológico do cântico é o versículo 72: “Para usar de misericórdia com nossos pais, e lembrar-se do seu santo pacto”. Esta ideia de misericórdia, que é central, se repete no versículo 78: “graças à entranhável misericórdia…”. As ideias principais, além da misericórdia, o hesed (amor imutável e eterno, o amor do pacto), são: salvação, liberdade, justiça e serviço. O cântico de Zacarias tem um profundo senso de história da salvação, o que é notável, sendo tão curto. A salvação não é um evento esotérico nem subjetivo. Está enraizada na história. E o Deus da história age movido pela sua misericórdia. Nossos cânticos não podem perder a historicidade da fé cristã de vista. E esta fé cristã não pode ser reduzida a meras sensações, como alguns de nossos cânticos têm feito. Isto é um empobrecimento de nosso credo.

A ação de Deus Pai na história desemboca no menino (v. 76 – “E tu, menino…”). É um hino cristológico. Isto se reveste de grande valor para nós. Cristo tem sido esquecido em muitos dos cânticos atuais. Somos cristãos e nosso louvor deve ser cristológico. A igreja celebra a Cristo e deve mostrar isto em seus cânticos. Precisamos cantar Cristo e a misericórdia do Pai. Porque Cristo é a maior manifestação da misericórdia do Pai. Podemos notar, sem muito esforço, que o cântico de Zacarias apresenta, na parte que trata do Pai, três divisões, no modelo de um sermão clássico: 1) Deus intervém (vv. 68-69); 2) Deus cumpre o prometido (v. 70); 3) Deus salva (vv. 71-74). A seguir, ocupa-se do menino, em quem Deus interveio, cumpriu o prometido e salva. Não é demais enfatizar isto: o cântico tem uma culminância na pessoa de Jesus. Cuidado para com nosso louvor nunca nos esquecermos de Jesus. E ele não pode ser uma vaga referência, mas o ponto culminante de nosso culto. Precisamos colocar Cristo no centro do púlpito e no centro do que cantamos.

À Guisa de Conclusão – A Visitação de Deus

Maria foi visitada pelo Senhor, através de seu anjo (Lc 1.26). Em seu cântico mencionou esta visitação (Lc 1.49). A ideia é expressa de maneira mais acentuada por Zacarias, em Lucas 1.68: “visitou e remiu o seu povo” e “nos há de visitar a aurora lá do alto” (Lc 1.79). A ideia de uma visitação de Deus está associada a sua entrada na história e na experiência dos homens, para libertá-los (Gn 50.24 e 26, Rt 1.6). Os dois primeiros cânticos de louvor do Novo Testamento celebram a visitação de Deus. Isto deve estar presente em nossos cânticos e cultos. Nós cantamos a visitação divina. Nós cantamos a entrada de Deus na história. Nós cantamos uma fé que se enraíza na história e cuja objetividade histórica é reconhecida. Não a reduzamos a sensações e ao sentimentalismo. O nascimento virginal, o ministério de Jesus, a cruz, a ressurreição, a ascensão, todos eles são temas históricos que devem ser cantados. Os corinhos atuais (ou qualquer que seja a nomenclatura que lhes dêem) se centram mais em sentimentos do adorador e apregoam uma religiosidade vaga, a-histórica. Isto não é a fé cristã. Nosso Deus age na história. Nós cantamos a entrada de Deus na história e o fato de que ele dirige a história.

No paganismo grego, as pseudas-divindades entravam na história para se divertir e afligir os homens. No cristianismo, Deus entrou na história para salvar os homens, para dar-lhes esperança e um sentido para suas vidas. Nossos cânticos e nossos cultos devem celebrar a esperança que Jesus nos trouxe. Devem expressar nossa salvação por causa da obra de Cristo, devem celebrar o rumo de vida que a igreja tem, devem proclamar nossa esperança. Somos o povo que Deus visitou e tomou para si, e devemos celebrar isto em nossa adoração.

Com tudo isto, podemos afirmar convictamente: o culto não é uma catarse para externar emoções, nem é um momento de entretenimento espiritual para nos sentirmos bem. Cânticos e cultos devem celebrar os atos de Deus por nós e expressar nossa gratidão pela sua obra por nossas vidas. E o referencial que nunca pode ser perdido é isto: cânticos e cultos da igreja devem ser cristológicos, exaltando a pessoa de Jesus Cristo, chamando a atenção para ele, exaltando sua pessoa e seu significado na história e na nossa vida. Se perdermos Cristo de vista, nosso culto será tudo, menos culto cristão. Maria e Zacarias nos ajudam a compreender isto um pouco mais.


Nota dos Editores do Música Sacra e Adoração – O autor, ministro Batista, descreve a realidade em sua denominação, citando exemplos e dando referências que são próprias de seu contexto. Apesar disto, publicamos o texto porque acreditamos que qualquer denominação poderá tirar lições valiosas das reflexões aqui expostas, mesmo que a sua realidade seja ligeiramente diferente da descrita. (topo)


Fonte: Isaltino Gomes Coelho Filho


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