por: Rolando de Nassáu
Dos três principais Reformadores (Martin Luther, Huldrich Zwingli e Jean Calvin), Calvino era provavelmente o menos capacitado para a técnica musical, mas era um esteta, conhecia as ideias e teorias musicais da Idade Média e da Antiguidade. Conscientemente, eliminou a admissibilidade do aproveitamento da tradição católica, da música erudita e das canções folclóricas profanas (ver: http://www.nassau.mus.br).
Sua atitude em relação à música era condicionada por sua estrita obediência à Bíblia. Acreditava que a música tinha origem divina e função espiritual. Preocupava-se com a possibilidade de ocorrerem abusos na execução musical, causados pela vaidade do executante. Por isto, omitiu o canto no altar, que afinal foi abolido; também porque o latim era incompreensível à maioria da congregação. O canto dos salmos devia ser executado por toda a congregação, e não apenas pelo pastor. Calvino entendia o canto de salmos como sendo uma oração.
Ele vetava o recurso ao “contrafactum“, isto é, emprestar um texto religioso a uma melodia profana pré-existente. Este procedimento significava modificar palavras do texto profano para obter uma versão religiosa; assim, uma canção de amor profano tornava-se um cântico de louvor a Deus.
Somente a música diretamente ligada a um texto, e compreensível pela congregação, era justificada no culto. O canto, uníssono e no vernáculo, sem acompanhamento instrumental, tornou-se a única forma de música.
A música devia ser “convenable au sujet” (conveniente ao assunto da letra). Não era o tratamento das palavras o importante, mas o estilo que se ajustasse ao culto divino (que deveria ser majestoso, moderado e modesto), e que fosse basicamente diferente do estilo profano, “léger et volage” (ágil e volúvel). O estilo sacro pode evocar alegria, mas uma alegria casta, não sensual (ver: OJB, 22 mar 1992, p. 2).
Calvino, conscientemente, eliminou a tradição musical católica e a música erudita profana. A ênfase da Igreja Reformada no combate à imoralidade rejeitou a música folclórica e popular do século 16. Restou aos compositores reformados compor música de acordo com os ideais reformistas, expressos por meio de salmos parafraseados, para serem cantados pelas congregações. O Saltério seria a única fonte do canto congregacional (ver: Arnold Geering, “Calvin und die Musik” in Calvin-Studien, ed. J. Moltmann Neukirchen, 1960).
Calvino estipulou que somente um salmo seria cantado antes do sermão; mais tarde, ordenou que fossem cantados salmos no começo do culto, antes e depois do sermão, nos cultos matutino e vespertino do domingo (ver: Friedrich Blume, Protestant Church Music. London: Victor Gollancz, 1975).
Em Basiléia (1537) e Genebra (1541) ordenou a introdução dos salmos para “melhor convidar o povo a orar e louvar a Deus, começando pelas crianças, depois, com o tempo, toda a Igreja”.
Calvino permitiu arranjos polifônicos, “non pas pour induire à les chanter em l’ Église” (não para induzir alguém a executá-los na igreja), que eram usados pelos calvinistas em suas residências, como forma de evitar as composições profanas. Desde 1551 surgiram, para uso doméstico, edições com as melodias do Saltério, harmonizadas a várias vozes, preparadas por Claude Goudimel (1510-1572), compositor morto no massacre de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572) (ver: Alexandre Cellier, La valeur musicale des Psaumes de la Réforme française. Paris: 1950; Alfred Colling, Histoire de la Musique Chrétienne. Paris: 1956).
Em 1991, alguém tentou fazer crer que as melodias do Saltério de Genebra, patrocinado por Calvino, são adaptações de canções folclóricas.
A teoria de O. Douen (1879) de que a origem das melodias do Saltério de Genebra estava principalmente em canções folclóricas, não é mais sustentável, depois de ter sido contraditada por C. Haein (1926) e H. Hasper (1949). Ambos afirmam que as raízes das melodias do Saltério ginebrino estão principalmente em canções eclesiásticas medievais, em conformidade com um expresso propósito de Calvino, que almejava um estilo melódico para o canto congregacional da Igreja Reformada, perceptivelmente diferente do estilo melódico da canção folclórica. Entretanto, os traços característicos do Saltério de Genebra, na opinião de Walter Blankenburg (1953), são encontrados não somente em sua melodia, mas também em seu ritmo. Portanto, havia considerável diferença estilística entre a música de igreja e a profana. (ver: “Louvor“, abr/jun 1991; OJB, 12 jan 1992).
Calvino faleceu em Genebra, em 27 de maio de 1564. Ainda vivia, quando sua influência chegou ao Brasil. Nicolau Durand de Villegaignon (1510-1571) solicitou a Jean Calvin e à Igreja Reformada de Genebra (Suíça) o envio ao Rio de Janeiro de pastores. Pierre Richier e Guillaume Chartier chegaram em 10 de março de 1557 com o propósito de estabelecer no Brasil uma Igreja Reformada; nesse mesmo dia, foi realizado o primeiro culto evangélico em nossa pátria, quando os calvinistas entoaram o Salmo 5, “Dá ouvidos às minhas palavras, ó Senhor” (“Aux paroles que je veux dire, plaise-toi l’aureille prester“), de Marot e Bourgeois (ver: Henriqueta Rosa Fernandes Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Kosmos, 1961). Em 14 de fevereiro de 1630, o pastor holandês Johann Baers oficiou culto reformado após a conquista de Olinda e Recife (PE) por Maurício de Nassau. Os primeiros hinos evangélicos cantados no Brasil, em língua portuguesa, foram entoados na Escola Dominical fundada, em 19 de agosto de 1855, em Petrópolis (RJ), pelo casal de missionários congregacionalistas Robert R. Kalley e Sarah P. Kalley. (ver: H. R. F. Braga, 1961).
O Saltério de Genebra (1562) ainda é cantado em pleno século 21!
Calvino, na observação de Otto Maria Carpeaux (ver: História da Literatura Ocidental, vol. I-A. Rio de Janeiro: Edições “O Cruzeiro”, 1961), “é uma personalidade menos espetacular, mas não menos poderosa do que Lutero”.