por: Rolando de Nassau
Martin Luther (1483-1546) empreendeu, na primeira metade do século XVI, uma série de reformas na Alemanha; foi um movimento de ideias e práticas religiosas, conhecido como Reforma Protestante, que teve repercussões na religião, teologia e liturgia, na hinodia, canto e música, na literatura e política. Escondido no castelo de Wartburg, perto de Eisenach, iniciou realmente a sua obra reformadora traduzindo a Bíblia do latim para o alemão. Na literatura, “Lutero é o maior escritor da língua, o Dante da literatura alemã” (ver: Carpeaux, Otto Maria, História da Literatura Ocidental, vol. IA, pp. 607-615 e 657. Rio de Janeiro: Edições “O Cruzeiro”, 1961). Na política, escreveu “A liberdade de um cristão”; quando os camponeses alemães insatisfeitos (durante muito tempo esquecidos econômica e socialmente) ouviram as palavras de Lutero, guardaram-nas e marcharam atrás de Thomas Munzer para mudar pela força a ordem social (o que Lutero rejeitava) na revolta iniciada em 1525. O movimento impulsionado por Lutero dividiu a Igreja cristã ocidental em duas facções opostas: a Igreja Católica Romana e as igrejas reformadas.
A teologia ensinada por Lutero na universidade de Wittenberg estava baseada na Bíblia, e não nas tradições da Igreja Romana; dava ênfase à doutrina da “justificação pela fé”.
Para ter uma liturgia “reformada”, foi necessário alterar a missa católica. A Igreja na Alemanha tinha desenvolvido uma tradição própria; além de usar tropos e seqüências, na língua alemã eram cantados os Dez Mandamentos, as Sete Últimas Palavras de Cristo, alguns Salmos, o Credo e a Oração Dominical, bem como cânticos folclóricos no estilo “gregoriano”.
Lutero realizou uma gradual mudança na forma do culto; modificou-o culto divino, que era celebrado na forma da missa católica, até então cantada exclusivamente pelo coro e sacerdotes, ao permitir o canto da congregação.
Na infância, tinha sido educado para tornar-se um cantor no “Kurrende“, um coro que ia de casa em casa para cantar em cerimônias matrimoniais e fúnebres. Na juventude, Lutero tomou conhecimento, e era ardoroso apreciador,da música coral de Ockeghem, Isaac, Obrecht e Josquin.
Entre 1524 e 1545, Lutero compilou nove hinários, cujas melodias eram procedentes de: 1) hinos alemães medievais; 2) hinos latinos (seqüências, tropos, etc.); 3) composições destinadas à liturgia “reformada”. Como exemplo das melodias do primeiro grupo, citamos “In dulci jubilo”; do segundo grupo, “Veni, Redemptor genitum“, “A solis ortus cardine” e “Veni, Creator Spiritus“; do terceiro grupo, “Vom Himmel hoch” e “Allein Gott in der Hoh sei Ehr“. Lutero abandonou “Aus fremden Landem komm’ Ich her“, porque era melodia usada nas tavernas.
Em 1524 foi publicado o primeiro hinário reformado, “AchtliederBuch” (Livro dos Oito Cânticos), contendo quatro hinos de Lutero. Ele contou com a colaboração de Johann Walther na publicação do “Wittenberg Gesangbuch” (Livro de Cânticos de Wittenberg); Lutero selecionou as melodias e os textos, enquanto Walther elaborava as composições polifônicas. Lutero era músico prático na direção da música de igreja; convocava compositores profissionais para ajudá-lo. Ele teve participação importante no desenvolvimento do “coral”, hino destinado à participação da congregação na liturgia “reformada”; a ele são atribuídos 37 corais,cujos textos e melodias adaptou com base no repertório usado pela Igreja antes do movimento reformista (ver: Riedel, Johannes, The Lutheran Chorale, 1967).
O mais conhecido de seus “corais” é “Ein Feste Burg ist unser Gott“(Um Castelo Forte é o Nosso Deus), cuja melodia procede do Canto Gregoriano; o texto é uma paráfrase do Salmo 46. Podemos imaginar Lutero contemplando os muros do castelo de Wartburg nos dias que antecederam seu julgamento em Worms (ver: OJB, 08, 15 e 22 out 2006). Sua confiança estava em Deus. Ele sabia que Satanás era o seu grande Inimigo; seu defensor era Jesus. Os adversários procuravam prendê-lo e matá-lo; a Palavra de Deus tinha poder para salvá-lo. Nada -ódio, ofensa, morte – poderia atingi-lo, porque o Reino de Deus é eterno! Lutero cria que o hino tinha poder para transmitir substância teológica.
O “Lutheran Book of Worship” (Livro Luterano para o Culto), publicado pela “The Evangelical Lutheran Church in America“, contém a melodia original. Os hinários brasileiros em que figura o famoso hino de Lutero são os seguintes: “Hinário Luterano” (no. 165); “Hinário Evangélico” (no. 206); “Novo Cântico” (no. 155); “Cantai Todos os Povos” (no. 409); “Salmos e Hinos” (no. 640);”Cantor Cristão” (no. 323); “Hinário para o Culto Cristão” (no. 406); “Harpa Cristã” (no. 423). [*]
No tempo de Lutero, os “corais” (hinos para a congregação) eram cantados sem acompanhamento instrumental; o órgão de tubos fazia o prelúdio;esse instrumento era usado em alternância com o coro: um verso tocado pelo órgão e o verso seguinte pelo coro e a congregação.
Quanto à data de elaboração do hino, existem algumas hipóteses:
- numa noite de abril de 1521, preparando-se para obedecer à intimação pelo imperador Carlos V de comparecer perante o parlamento em Worms, onde defendeu suas obras teológicas; tendo saído de Wartburg e passado a noite com os Agostinianos na fortaleza Marienberg, em Wurzburg, próxima do rio Meno; o papa Leão X tinha inscrito o nome de Lutero na lista dos hereges, banindo-o da Igreja Católica;
- algum tempo depois de 1521, lembrando-se do julgamento em Worms;
- em 1527, quando sofreu sua primeira crise renal;
- em outubro de 1527, por ocasião do décimo aniversário da afixação das Noventa e Cinco Teses na porta da capela do castelo em Wittenberg;
- em 1527, quando soube da execução de crentes reformados em Bruxelas;
- em 1529, por ocasião da invasão turca do Ocidente.
Lutero imprimiu o hino em folhas de papel, sem a melodia, que rapidamente se espalharam pela Alemanha; em 1529, o hino foi incluído na coletânea”Geistlich Lieder” (Cânticos Espirituais), publicada por Joseph Klug.
Em 19 de abril de 1529, as autoridades alemãs que adotavam as ideias de Lutero apresentaram, ao parlamento reunido em Espira, um protesto (daí o apelido “Protestantes”) contra as medidas legislativas referentes à liberdade de culto, que significavam séria ameaça à Reforma. Neste ambiente crítico, deprimidos, mas inspirados pelo Salmo 46, os crentes cantaram o hino de Lutero.
Tímida, angustiada e sombria, esta parece ser a interpretação fiel do hino (tal como gravada, em 1962, pelo Coral Luterano de Porto Alegre, regido por Hans Gerhard Rottmann, no LP-CAVE-DAVEL-CAV4/6); e não intrépida e reluzente, como ocorre na grande maioria das execuções congregacionais e corais.
A ideologia nacionalista, apoiada por Otto Von Bismarck, Heinrich Treitschke e o imperador Guilherme II, propunha-se a tornar a Alemanha uma potência européia. Pressentindo a eclosão do pangermanismo, Harry Heine deu ao hino de Lutero a alcunha, algo jocosa, de “Marselhesa da Reforma Protestante”.
[*] – Os editores do Música Sacra e Adoração notam que este hino também está presente no Hinário Adventista, sob o no. 33. Veja também outras histórias deste hino. (voltar)
O presente artigo foi enviado ao Música Sacra e Adoração diretamente pelo autor, Rolando de Nassau. Agradecemos a ele por esta iniciativa.