por: Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho [*]
Continuamos considerando o texto de Efésios 1.3-14, estudado no número anterior. Naquele artigo consideramos aspectos lingüísticos e de estrutura do hino paulino. Hoje vamos analisá-lo por dois ângulos. O primeiro é sua perspectiva teológica, com uma visão trinitariana. É o que os teólogos chamam de “economia da Trindade”. O outro é o das bênçãos que temos em Cristo.
Uma Visão Trinitariana do Hino Cristológico de Efésios
As três pessoas da Trindade aparecem no texto. O Pai aparece nos versículos 3-6. O Filho, nos versículos 7-10, e o Espírito, nos versículos 13-14. Isto não é mera curiosidade textual ou diletantismo teológico. A fé cristã não é unitariana nem coloca uma das pessoas da Trindade sobre as demais. Já ouvi corinhos em que o Espírito era mostrado apenas como o “poder de Deus”, uma energia, uma coisa, não uma pessoa. Nossa fé é trinitariana, como o hino 8 do HCC tão bem nos ensina. Aliás, muitos dos hinos do passado eram ensinos teológicos, com doutrina bem fundamentada. Muitos dos cânticos atuais são experiencialismo puro, exaltação de sentimentos e valorização de sensações. Cuidado com isso. Poderemos ter uma igreja sentimentalóide, mas vazia em seu credo.
Evitemos também compartimentalizar as pessoas da Trindade, em aspectos tão estanques que elas parecem nada ter a ver uma com a outra. Fica-se com uma Divindade esquizofrênica, em conflito entre si.
Não Cantemos o Aplacacionismo!
Nesta visão trinitariana, devemos evitar a heresia do aplacacionismo, segundo o qual o Filho veio para aplacar a cólera de um Pai iracundo, e opõe as duas pessoas. O Novo Testamento não diz que o Filho nos reconciliou com o Pai, mas que o Pai nos reconciliou consigo por Cristo (2Co 5.18-19). O Pai é o mentor da salvação. Ela nasceu em seu coração, na eternidade (v. 4). Não se pode passar a imagem de que o Pai condena e o Filho vem para se opor ao Pai e nos salvar. Não é como nos filmes americanos, “o policial mau e o policial bonzinho”. A Trindade é boa. Toda ela.O Pai ama, o Filho ama, o Espírito Santo ama. A igreja deve cantar uma Trindade harmônica, que ama o homem. Muitos cânticos mostram um Pai santo, exigente, e um Jesus meloso, bondoso, que aceita tudo. Cuidado com o Jesus que diz “Venha como está” ou “Venho como estou”. Pode vir como está, mas não para ficar como está. “Vai-te, e não peques mais”, disse Jesus (Jo 8.11). É para ser santo, pois para isto fomos eleitos (v. 4). Não podemos conflitar os atributos de Deus, menos ainda as pessoas da Trindade, em nosso louvor. Nem pensar que uma condena o pecado e a outra passa a mão na cabeça do pecador.
O Filho No Cântico
O Filho nos redime do tirano, que não é o Pai, mas o pecado (v. 7). O que foi feito do pecado em nossos cânticos? Parece se exaltar um evangelho psicológico, que faz a pessoa se encontrar existencialmente, ter sentido na vida, ser feliz. Mas e o poder do pecado, seu perigo sobre os crentes? Ele sumiu das pregações e dos cânticos. De um lado, pelo triunfalismo, em cânticos ingênuos mostrando uma vitória sobre o Diabo, ignorando a tensão da vida cristã entre o já e o ainda não. Há aspectos que já se concretizaram, mas outros ainda não. Simplifiquemos: a igreja ainda é militante, e não triunfante, em glória. A salvação ainda não chegou ao estágio da glorificação, que alguns cantam como já presente. Do outro lado, um evangelho mais voltado para o cotidiano, muito imanente, pouco transcendente. Está se cantando muito o aqui e o agora, e pouco o metafísico. Um evangelho que atende nossas necessidades psicológicas e emocionais (o sentir-se bem) e não seu aspecto transcendente (perdão dos pecados e libertação do poder do mal). Cuidado para não humanizar tanto o evangelho que ele passe a ser auto-ajuda.
Pelo Filho conhecemos o “mistério” (v. 8). Paulo bate de frente com os gnósticos, que diziam “temos a chave para compreender o mundo”. Paulo mostra que o mistério para entender o mundo é Jesus. Cuidado com o Cristo esotérico, intimista, tão internalizado, que passa a ser um sentimento. Cristo é a chave para se entender o mundo. Nossos cânticos devem mostrar que nós entendemos o mundo pelo evangelho, que Jesus é a resposta divina às mazelas do pecado. Devemos evitar o esoterês evangélico, que vai se tornando comum em nosso meio. O
O Espírito No Cântico
A igreja canta o Espírito. Ele sela a eleição (v. 13). A raça humana estava dividida entre judeus e gentios e Deus fez deles um só povo. E deu o Espírito a todos (a igreja deve cantar a universalidade do Espírito) para selá-los em uma nova humanidade. O Espírito não é uma força, nem energia, nem o poder de Deus. É uma pessoa. Alguns de nossos corinhos parecem apontar para o Espírito como se fosse um fio desencapado, dando choque nas pessoas. Ele vem para eletrizar o culto, nesta visão distorcida. Ele é a prova de que a igreja é igreja. Ele une a igreja, não a divide. Aliás, quem a divide não tem o Espírito (Jd, 19).
O Espírito mantém a igreja unida. Infelizmente, muita carnalidade e vaidade se disfarçam de “louvor” ou de “defesa da pureza da fé”, e divide as igrejas. O Pai nos fez um pelo Espírito. Está errada a letra do hino 564 HCC, pedindo que o Pai nos faça um. Ele já nos fez. Nós é que quebramos a unidade, mas ela foi feita na cruz, e é aplicada pelo Espírito.
O Pai tem sido injustiçado em muitas pregações e cânticos evangelísticos. É uma parte destrambelhada da Trindade. O Filho tem recebido uma visão distorcida, como a parte da Trindade bem sentimental, edulcorada. Mas com o Espírito é pior: ele tem sido rebaixado a mera energia. A Trindade trabalha em harmonia. Os novos compositores fariam bem em ler um pouco sobre a Trindade e examinar os “ultrapassados” hinos trinitarianos do CC e do HCC.
Respeitosamente: compositores, procurem uma orientação teológica. Não ensinem o povo a cantar errado. Doutrina não é irrelevante. Sem ela saímos do aspecto real da fé e caímos em sentimentalismo, quando não em erro.
O Aspecto das Bênçãos Que Temos em Cristo
O texto paulino alista as bênçãos de Deus para os cristãos. Temos pensado em bênçãos em termos materiais. Mas Paulo alista aqui as maiores bênçãos que o ser humano pode ter: eleição e predestinação (vv. 4, 5 e 11), redenção e remissão (v. 7) e significado correto da vida (v. 14).
O verbo grego para “predestinar” é proorisos, “marcar antes”. Não se trata de arbitrariedade, mas de segurança. Nossos cânticos devem refletir a segurança de que a salvação não é intempestiva. Nem somos os cachorrinhos que recolhem as migalhas caídas da mesa. Alguns parecem pensar que quando Israel rejeitou Jesus, Deus ficou meio perdido: “Ora, com essa eu não contava!” e se voltou para os gentios e formou a igreja. Assim, somos herdeiros do restolho. A igreja deve nutrir esta fé e cantá-la com vigor: ela não é acidente. Ela existe no coração de Deus desde a eternidade. Deve cantar com júbilo por ser igreja. Todas as vezes que canto o hino 504 do HCC, “Da igreja o fundamento”, eu me comovo. Chego a chorar. Que alegria! Eu sou igreja de Jesus, ele me escolheu na eternidade está trabalhando minha pedra bruta para me tornar uma pedra viva, que glorificará o nome de Jesus! Nossa fé deve ser cantada lembrando que fomos escolhidos e que Deus está trabalhando em nós.
Redenção e remissão (v. 7) são termos muitos parecidos. Completam a ideia de comprar e de soltar. Devemos cantar nossa liberdade do poder do pecado (Jo 8.34,36) e o fato de que fomos tornados livres em Cristo. Nossos cânticos devem enfatizar que não somos mais escravos, mas filhos (v. 5). Nosso culto deve expressar esta profunda convicção: “Amados, filhos somos já de Deus…” (364 CC). Mas isto não é por bondade nem pelo louvor. Aliás, cuidado, o louvor tem se tornado “a quarta pessoa da trindade”. Ele não nos torna aceitáveis diante de Deus. Não é o que fazemos, mas o que ele fez. Somos filhos, sim, devemos cantar. Mas revelemos o preço: “pelo seu sangue” (v. 7). Cuidado com o louvor caimita, de frutos da terra. O louvor deve expressar que somos aceitos por causa do sangue de Cristo. A morte vicária de Cristo não pode ser escondida nem subdimensionada. É por ela que nos vêm as bênçãos de Deus. É por causa dela que cultuamos.
Por Que Tudo Isto?
“Para o louvor da sua glória” (vv. 6, 12 e 14). É para glória de Deus. Eis mais uma bênção. O sentido de tudo isto: passamos a viver com significado, para a glória de Deus. Os cânticos modernos têm sido muito antropocêntricos e alguns refletem esta concepção “Deus faz coisas para mim, Deus é para mim”. Ele já fez. A salvação é “Eu para Deus, eu devo glorificá-lo”. Nossa vida passa a ser em função dele, não apenas o louvor, mas a vida. A psicologização do evangelho junto com o enfoque antropocêntrico põem o foco no homem e em suas necessidades. Temos necessidades que só Deus pode suprir, mas devemos lembrar que existimos para ele. “Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém” (Romanos 11.36). Cuidado com cultos que glorificam pessoas. Tudo é para glória de Deus e esta glória não pode ser confundida com nosso sentimento. Quanto menos aparecemos e quanto mais sua pessoa e seus atributos aparecem, mais a glória divina foi apresentada.
Conclusão
Muitas mais verdades poderiam ser mostradas neste cântico, mas a exigüidade do espaço nos limita. Recomendamos ao leitor que releia o estudo passado, após ter lido este. E reflita seriamente, lendo algumas vezes o cântico cristológico e trinitariano de Efésios 1.3-14. E que pense: Deus é mesmo glorificado em nossos cultos? Quem é a platéia, ele ou pessoas a quem queremos agradar?
Tudo para a Trindade bendita. Que ela seja louvada!
Nota dos Editores do Música Sacra e Adoração – O autor, ministro Batista, descreve a realidade em sua denominação, citando exemplos e dando referências que são próprias de seu contexto. Apesar disto, publicamos o texto porque acreditamos que qualquer denominação poderá tirar lições valiosas das reflexões aqui expostas, mesmo que a sua realidade seja ligeiramente diferente da descrita. (topo)
Fonte: Isaltino Gomes Coelho Filho