Introdução
Ellen White Era Contra a Bateria na Música Sacra? Uma análise sobre o uso de instrumentos musicais na adoração nos escritos de Ellen White. André Reis Existe atualmente uma escola de pensamento no Adventismo que se opõe a instrumentos de percussão na música por causa de uma passagem de Ellen White que menciona esses instrumentos de maneira desfavorável. Mas qual era a posição de Ellen White sobre a percussão, bateria e outros instrumentos na música adventista? Qual o contexto e aplicação da declaração à música e culto adventistas no passado e hoje? Este artigo se propõe a esclarecer estas questões nos escritos de Ellen White. |
Ellen White Era Contra a Bateria na Música Sacra? – Uma Resposta Comentários e considerações dos editores e colaboradores do espaço virtual Música Sacra e Adoração. (01) A “passagem (sic) de Ellen G. White” citada pelo articulista refere-se ao texto encontrado no livro Mensagens Escolhidas, vol.2, pp. 31 a 39. Trata-se de todo o capítulo 3 deste volume. Sugerimos fortemente que, antes de entrar nos detalhes desta réplica, o leitor leia todo o texto, que pode ser encontrado em nossas páginas (02). Inicialmente, devemos esclarecer que a corrente que se opõe ao uso irrestrito de instrumentos de percussão (inclusive a bateria) na igreja Adventista não é atual. Na verdade, esta é a posição histórica dos adventistas do sétimo dia com relação a este assunto. Além disso, esta corrente não existe por causa deste texto de Ellen White. Suas razões são muito mais profundas, baseando-se em vários textos, tanto bíblicos quanto do espírito de profecia, a partir dos quais podemos inferir os instrumentos de percussão como inadequados ou, no mínimo, problemáticos para o uso na adoração litúrgica. Esta corrente de pensamento apenas interpreta esses textos da mesma forma como estes têm sido interpretados por vários estudiosos e comentaristas bíblicos como apoio à sua argumentação, no decorrer de nossa história, conforme será demonstrado nesta réplica. Portanto, esta corrente de pensamento está utilizando o referido texto de Ellen G. White (02) da mesma maneira como ele é utilizado pelos adventistas do sétimo dia desde que foi escrito. Se este posicionamento é correto ou não, ficará a cargo do leitor analisar os argumentos e decidir. Com relação ao título do artigo que motivou esta réplica, transcrevemos abaixo, até o final deste trecho, parte de uma excelente resposta postada no conceituado blog Diário da Profecia (03). A resposta completa pode ser lida aqui (04). “[…] o artigo pretende responder à seguinte pergunta: ‘Ellen White era contra a bateria na música sacra?’. A simples consideração do título, não deixa dúvida que a intenção do artigo é estabelecer uma de duas possíveis respostas imediatas ao questionamento sugerido: sim ou não. Com o devido respeito ao articulista, a quem desde já concedemos o benefício da dúvida, o seu raciocínio parte de um sofisma. Explico: Ellen White, ao menos no que transparece de seus escritos, nunca se demonstrou contra a ‘bateria’ e, isso se dá pelo simples motivo de que ainda não existiam baterias nos moldes que hoje conhecemos nos tempos dela. Temos portanto, em realidade e em última instância, que o artigo através de seu título leva o leitor menos atento a considerar que se o arrazoado demonstrar que Ellen White não se manifestou contra a bateria, automaticamente [ela seria favorável ao seu uso e] não há que se discutir sobre a presença de tal instrumento no âmbito da adoração. Ora, o processo indutivo é claramente de cunho falacioso. Não existe nos escritos do Espírito de Profecia qualquer referência expressa ao termo ‘bateria’, senão na profecia derivada da compreensão do movimento da carne santa, que inclusive será abordado especificamente mais adiante, por entendermos ser este o ‘coração’ do artigo em voga e, que merece maior vagar em sua análise. Assim, pretender se demonstrar a inexistência de algo que realmente inexiste, para fins de sustentação de outra argumentação, seja ela a que título for, se demonstra como uma indução no mínimo de caráter equivocado, considerados os princípios da lógica.“ Finalizando este trecho, destacamos que, se usarmos a omissão como autorização, especialmente com relação a elementos que não haviam sido inventados ou ainda não eram conhecidos à época em que o texto foi escrito, ficaremos em grandes dificuldades com relação à Bíblia e ao Espírito de Profecia. Exemplos claros são o uso do televisor e das drogas disponíveis hoje. O que realmente importa são os princípios exalados das orientações e não uma lista completa, acabada, universal e eterna de coisas que podem ou não ser usadas. |
Pano de Fundo
No ano de 1899 desenvolveu-se um movimento dentro do Adventismo no estado de Indiana, EUA, chamado movimento da Carne Santa.[i] Entre outras heresias, a liderança da igreja naquele estado começou a propagar a ideia de que a conversão levava a um estado de santidade física. Ao obterem o Espírito Santo através de manifestações físicas, os crentes passariam pelo “jardim”, receberiam “carne santa” e estariam livres do pecado e prontos para a trasladação. O movimento culminou na campal de Indiana no verão de 1900. Dois ministros adventistas, Stephen Haskell e A. J. Breed passaram o relato abaixo: […] em seus cultos, os fanáticos chegavam ao êxtase pelo uso de instrumentos musicais como o órgão, a flauta, violinos, tamborins, trompetes e até um bumbo. Buscavam uma demonstração física e gritavam, oravam e cantavam até que alguém na congregação caía no chão, prostrado e inconsciente. Um ou dois homens designados, que andavam pelos corredores, levavam a pessoa até a frente. Então um grupo de umas doze pessoas se reunia em volta do inconsciente, alguns cantando, alguns gritando e alguns orando, todos ao mesmo tempo. Quando o inconsciente se levantava, consideravam-no como tendo passado pela experiência do Getsêmane, tinha obtido “carne santa” e tinha a fé para a trasladação.[ii] No dia 25 de Setembro de 1900, Stephen Haskell escreveu para Ellen White que se encontrava na Califórnia, recém chegada da Austrália: Há um grande poder que acompanha o movimento … por causa da música que é tocada… Quando eles chegam a uma nota aguda, não se escuta a congregação cantando, apenas se ouvem os gritos dos que estão quase enlouquecidos.[iii] Entre outras ameaças à Igreja em 1900, o risco de o carismatismo da Carne Santa se alastrar era tão real que Ellen White havia decidido voltar da Austrália já em janeiro de 1900, quando recebera a visão do episódio. No dia 17 de abril de 1901, ela leu trechos da Carta 132 de 1900 a Haskell na reunião da Conferência Geral. A mensagem foi então incluída no livro Mensagens Escolhidas, vol. 2, p. 31-39. Com a oposição de Ellen White às heresias do movimento, o presidente da associação de Indiana e outros líderes confessaram o erro publicamente e o movimento se desfez.[iv] A passagem que menciona a percussão e que está no centro da controvérsia atual diz: |
Pano de Fundo
Embora a contextualização feita no início desta seção esteja correta, é necessário destacar um ponto, o qual acreditamos ser crucial para o argumento que será desenvolvido posteriormente pelo articulista. É de conhecimento geral que as mensagens presentes nos livros da série Mensagens Escolhidas tratam-se de compilações, como sugerido pelo próprio título. Uma análise simples, até mesmo superficial, do capítulo 3 do volume 2 desta série demonstrará claramente que este capítulo compõe-se, na verdade, de dois textos distintos de Ellen G. White. Porém, uma análise mais cuidadosa com pesquisas ao catálogo virtual do Ellen G. White Estate (05) confirma categoricamente este fato, conforme demonstramos abaixo. O primeiro texto (pág. 31 a 36) tem como foco central o combate à doutrina do movimento da Carne Santa, e inicia-se com o título “Uma Repetição do Antigo Fanatismo“. Este texto foi publicado no General Conference Bulletin de 23 de abril de 1901 – conforme destacado no próprio livro – e pode ser encontrado no referido catálogo em Periodicals – GCB-The General Conference Bulletin – April 23, 1901 “Blessed are the pure in heart.” É interessante notar que o texto original contém 27 parágrafos, dos quais foram utilizados nesta compilação apenas os parágrafos 1-5; 8-9; 12-19. O segundo texto, que nesta compilação segue-se imediatamente ao primeiro, inicia-se na página 36 com o título “Culto com uma Balbúrdia de Ruído” e vai até a página 39, sendo a resposta de Ellen G. White à primeira carta de S. N. Haskell. Este texto é um trecho do documento catalogado como “Carta 132”, datado de 10 de outubro de 1900 e que pode ser encontrado integralmente no catálogo referido acima em Manuscript Releases, v. 21, nr. 1525, pp. 126 – 133. Os parágrafos selecionados para compor esta compilação podem ser encontrados entre as páginas 128 a 132. Este documento, entre outros assuntos, contém comentários da Sra. White às referências de Haskell às manifestações carismáticas – do ponto de vista físico, exterior e não doutrinário – as quais foram presenciadas por Haskell durante a campal de Indiana. O leitor poderá facilmente verificar isto, lendo o texto ao lado, de autoria de Haskell, gentilmente transcrito pelo articulista. Fica claro que o foco do comentário dele é o aspecto físico das manifestações, e não a teologia do movimento. O êxtase, ou seja, a predominância das emoções sobre a razão, é provocado – segundo Haskell, testemunha ocular do evento – pelos instrumentos, devido à maneira que eram usados. É muito importante notar que os dois textos que formam este capítulo foram escritos após a campal de Indiana e que, além do tema em comum, os documentos não são relacionados, de qualquer forma, entre si. Na verdade, o segundo documento tem data anterior ao primeiro. Assim, vemos que cada um dos documentos possui contexto e objetivos diferentes. Misturar as duas mensagens pode levar a conclusões equivocadas e descontextualizadas, como ficará patente no decorrer destas considerações. Presumindo-se que o articulista seja um estudioso dos escritos de Ellen White, já que pretende “esclarecer estas questões nos escritos de Ellen White“, fica difícil compreender qual motivo exegético idôneo poderia levá-lo a misturar os dois textos, tão claramente indicados e referenciados pelos editores que compilaram os livros da série Mensagens Escolhidas. Mais uma vez, fica ao leitor a tarefa de pesar os argumentos e compreender de que lado está a verdade e de que lado está o sofisma. Aliás, ao ler na totalidade a Carta 132 de Ellen G. White encontramos um trecho não utilizado na compilação do capítulo em questão, mas que se aplica perfeitamente ao contexto desta réplica: “Diga às pessoas que não levem em conta as palavras de homens com respeito aos Testemunhos, mas que os leiam e estudem por si mesmos, e então saberão que estão em harmonia com a verdade. A Palavra de Deus é a verdade.” (Carta 132 de 1900 – Manuscript Releases, v. 21, nr. 1525, p. 131 – tradução nossa) |
Antes de entrarmos no cerne da questão, é bom um lembrete sobre a diferença entre exegese e eisegese. A exegese está preocupada em extrair do texto o que está sendo dito, enquanto a eisegese acrescenta ao texto o que não foi realmente dito. Eisegese é o que “eu acho que deveria ter sido dito”, onde uma opinião pré-formada influencia a leitura e palavras isoladas do contexto tornam-se um fim em si mesmas. | Este lembrete do articulista parece sugerir que ele acredita ser a única pessoa com algum conhecimento teológico e que, portanto, qualquer outra pessoa que não concorde com suas ideias, está cometendo erros exegéticos.
O problema com a distinção entre “eisegese” e “exegese” é que muitas vezes a análise de um texto escrito por terceiros é feita na base do “eu concordo com as conclusões” ou “eu não concordo”. Ao invés de acusar um comentarista de eisegese seria mais construtivo indicar que regra de exegese foi quebrada, onde isto ocorreu e qual seria a interpretação correta, porque o erro pode ser involuntário. Porém, uma simples indicação de eisegese, sem maiores detalhes e argumentações, equivale a acusar o debatedor contrário de má intenção. É um julgamento de intenção, não construtivo. Aplicar esta observação do articulista ao trecho acima, onde ficou claramente demonstrado que textos diferentes foram mesclados, é um exercício interessante para diferenciar “eisegese” e “exegese“. Porém, note que destacamos o erro, e apresentamos a relação correta entre os texto; acreditamos ser esta a prática saudável e procuraremos segui-la no decorrer desta réplica. |
Neste artigo, vamos nos ocupar com exegese que é o estudo do que Ellen White intencionou nesta passagem levando-se em consideração o contexto histórico e teológico dos seus escritos, termos usados e a mensagem central do que está sendo dito. Sobre a interpretação de suas mensagens, ela recomenda que
Quanto aos testemunhos, coisa alguma é ignorada; coisa alguma é rejeitada; o tempo e o lugar, porém, têm que ser considerados.[vi] Veja a sua preocupação em que o “tempo e lugar” de suas mensagens tenham a prioridade na sua interpretação e aplicação. Este ponto é crucial para o entendimento correto da mensagem à Carne Santa. |
A intenção do articulista é louvável, mas inicia com a mácula de haver desconsiderado o princípio básico daquilo que ele próprio se propõe a fazer, ao mesclar os dois textos por nós indicados, uma vez que o contexto teológico, os termos utilizados e a mensagem central dos dois textos que compõem o capítulo 3 do livro Mensagens Escolhidas são diferentes. Apenas o contexto histórico é o mesmo. Portanto, os dois textos deveriam ser analisados separadamente, por si mesmos, para então podermos alcançar conclusões complementares entre eles.
O texto citado pelo articulista é um princípio básico de exegese. Não pode ser violado. As preocupações de “tempo e lugar” são exatamente as nossas preocupações, uma vez que o texto em pauta envolve questões do passado, presente e futuro do ponto de vista da autora e essas questões são fundamentais para compreender a mensagem de advertência que está sendo dada. Voltaremos a este princípio no decorrer desta réplica. |
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Parte 02 – Tambores: Ponto Central? |