Pr. Douglas Reis
“Tenho que agradecer porque eu tenho uma vida abençoada. Ele existe em minha vida.” Esta frase, cheia de fervor religioso, não foi dita em uma igreja, mas em meio ao final do show da banda “Babado Novo”, na terça-feira do Carnaval baiano. Cláudia Leite, ex-vocalista da banda, proferiu as palavras, enquanto se despedia de seus companheiros.[1] Cláudia, que está investindo pesado em sua carreira solo, tem feito notórias demonstrações de sua espiritualidade. A revista Veja, em matéria sobre a artista, observou: “A cantora fala em Deus a todo instante e, mesmo quando rebola no palco, se preocupa em não parecer vulgar. ‘Uso shortinho para valorizar minhas curvas, mas sem desrespeitar a Deus.'”[2]
Parece surpreendente que algumas noções bíblicas sobre conduta sejam ignoradas mesmo por pessoas que se declarem religiosas ou “abertas à espiritualidade”. Esse contra-senso pode ser explicado pela “modernidade religiosa”, mais descomprometida e livre de padrões encontrados em instituições cristãs tradicionais.[3] Ou seja, seguindo esse novo paradigma, todos falam livremente de Jesus sem haver necessariamente um compromisso religioso formal ou um comportamento que se enquadre naquilo que a moralidade cristã há séculos tem disseminado.
O fenômeno da “modernidade religiosa” atrai cada vez mais a atenção de antropólogos, sociólogos e estudiosos do campo religioso. Geralmente o enfoque de muitas dessas pesquisas recai sobre as formas de se cultuar a Deus. Também não é incomum a mídia secular comentar, grosso modo mordazmente, as extravagâncias de cultos ou de determinados músicos e eventos musicais do mundo gospel.[4]
Talvez vitimada por essa “febre” de interesse na mudança do paradigma religioso, a revista Galileu tenha publicado, no mês de Fevereiro, uma reportagem destinada a retratar grupos religiosos que buscam atrair determinados segmentos da sociedade através de formas pouco convencionais de cultuar a Deus.[5]
Ao se deparar com a matéria, um leitor mais avisado percebe de imediato um lapso do articulista, que afirma que a revista visitou certos segmentos religiosos com o fito de “[…] entender os novos caminhos do protestantismo no Brasil.”[6] É preciso que se estabeleça a distinção entre os protestantes, grupos cristãos surgidos a partir ou sob a influência da Reforma Protestante do século XVI, e os pentecostais, grupos de cristãos surgidos no início do século passado: os primeiros enfatizam princípios como sola scriptura (fé somente baseada na Escritura), desenvolvendo um estilo de vida baseado no que acreditam ser princípios bíblicos. O culto em tais igrejas é, em geral, pacífico, sem grandes exibições teatrais, focado no estudo da Bíblia e bem próximo da imagem que a maioria das pessoas esperaria encontrar em um culto cristão.
Os pentecostais, por sua vez, enfatizam a experiência mística intensa, explorando a adoração que leva a um êxtase místico, que, naqueles grupos mais antigos, é atingido quando a música utilizada pelos adoradores (bastante dinâmica e ritmada) conduz à glossolalia (o falar em línguas estranhas); presente em um culto realizado no BOPE (Batalhão de Operações Especiais da PM carioca), a reportagem de Galileu descreve que na “platéia, algumas pessoas entraram em uma espécie de transe conhecido como ‘falar línguas estranhas’, no qual o fiel supostamente possuído por alguma força espiritual, diz coisas sem sentido. Outros falam sozinhos, convictos de que conversaram diretamente com Deus.”[7] Essa descrição não pode ter qualquer relação com supostos caminhos do “protestantismo no Brasil”, porque se trata claramente de um culto pentecostal!
Feita essa ressalva, a matéria segue descrevendo o marcante “tom emocional” presente nas reuniões realizadas no BOPE. Além de retratar as experiências místicas, Galileu mostra a tendência das denominações pentecostais de utilizar versões “cristianizadas” de ritmos seculares para atrair novos adeptos. Em certo trecho, podemos ler que
“Na igreja, [o pastor Silas] Rahal promove algumas vezes por ano shows abertos, nos quais qualquer banda pesada, cristã ou não, pode chegar e dar uma canja. Ele mesmo inicia o evento cantando e tocando uma guitarra distorcida, acompanhado por adolescentes no baixo e na bateria. Toca uma dezena de músicas, quase todas falando de Deus […]”[8]
O pastor Rahal, incentiva os seus fiéis a participar de seus cultos-shows comparando “a dança das festas da Palestina”, as quais “Jesus e os apóstolos adoravam” ao punk – “tenho certeza de que se vivessem hoje, [Jesus e os apóstolos] estariam conosco.”[9]
Outro exemplo da mesma tendência de uso da música secular é citado na matéria; o pastor Anderson Dias Barbosa, ex-membro da igreja Renascer em Cristo, e líder da Comunidade Crescendo na Graça, diz que seu foco é “200.000 % hip hop”.[10] Sua denominação atinge pessoas da periferia, que se identificam não apenas com a opção musical, mas com o estilo de vida adotado pelos membros da igreja – bem próximo delas mesmas.
Em contrapartida, essa forma de evangelizar não é hegemônica entre os cristãos. Muitos pensam que esses procedimentos descaracterizam o estilo de vida bíblico. Até que ponto podem os cristãos influenciar outras pessoas se sua mensagem é divulgada em meios associados à violência, sensualidade, rebeldia ou contra-cultura?
Charles Colson argumenta que:
“O perigo é que a cultura popular cristã possa imitar a cultura em voga, mudando somente o conteúdo. O mercado musical abunda de rock e rap cristãos, blues e jazz cristãos, heavy metal cristão. […]De muitas formas, este é um desenvolvimento saudável, mas sempre precisamos perguntar: Estamos criando uma cultura genuinamente cristã, ou estamos simplesmente criando uma cultura paralela com uma aparência cristã? Estamos impondo um conteúdo cristão a uma forma já existente? A forma e o estilo sempre transmitem uma mensagem própria.”[11]
De uma perspectiva cristã, é preciso que se considere até que ponto é saudável ao culto uma abordagem que se baseie na proximidade com quem se quer evangelizar em detrimento de profunda consideração sobre o que o próprio Deus revelou a respeito de Si e da forma como quer ser adorado – tanto na esfera congregacional como na vivência pessoal.
Notas:
[1] Exibido em reportagem do programa telejornalístico “SBT Brasil”, em 5 de Fevereiro de 2008.
[2] Sérgio Martins, “A aposta de Cláudia”, Revista Veja, edição 2049, ano 41, número 8, 27 de Fevereiro de 2008.
[3] Para uma abordagem mais abrangente deste ponto, o leitor poderá consultar Douglas Reis, “A música sacra dentro da cosmovisão adventista: interpretando e aplicando conceitos de Ellen White”, primeira parte, disponível no Questão de Confiança. Ali se comenta sobre os efeitos da “modernidade religiosa”, com seu perigoso subjetivismo aplicado aos critérios (ou falta deles) na adoração.
[4] Um exemplo recente se encontra em Felipe Patury, “A voz não era da Terra”, entrevista com Sarah Sheeva, cantora gospel, publicada na seção “Holote”, Revista Veja, edição 2049, ano 41, número 8, 27 de Fevereiro de 2008.
[5] Pablo Nogueira, “Evangélicas customizadas”, Galileu, Fevereiro de 2008, número 199.
[6] Idem, p. 43.
[7] Idem, p. 44.
[8] Idem, p. 47.
[9] Ibidem.
[10] Idem, p. 49.
[11] Charles Colson e Nancy Pearcey, “O cristão na cultura de hoje: desenvolvendo uma visão de mundo autenticamente cristã” (Rio de Janeiro, RJ: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2006), 2ª edição, p. 291.
Fonte: Questão de Confiança