A Seleção de Cantos Para o Culto Cristão – Capítulo III
por: Denise Cordeiro de Souza Frederico
A Tensão Entre Tradição e Contemporaneidade na Idade Média e no Contexto da Reforma
Este capítulo tem como propósito levantar a tensão que existiu entre tradição e contemporaneidade na música sacra ocidental durante a Idade Média, a Reforma e a Contra-Reforma para retirar daí critérios de seleção de cantos para o culto cristão. Reconhece-se a dificuldade de abarcar com profundidade todos os episódios ocorridos nessa fase, dada a sua longa extensão. Serão listados apenas os fatos que realmente poderão contribuir para esclarecer a tensão, iniciando-se com Gregório Magno por causa de sua valiosa contribuição para a música sacra. O terceiro capítulo segue o curso da história e leva em consideração a mudança do enfoque dado pela igreja medieval ao culto cristão, onde a congregação passou a um plano secundário na ação litúrgica. Isso ocasionou transformações drásticas para o canto na igreja, pois só os profissionais pasticipavam ativamente da música. É aí que floresceu a schola cantorum. Nutrido por um forte monasticismo, o canto gregoriano conseguiu elevar-se à categoria de “canto oficial da igreja”, o que, considerando-se as resoluções atuais da Igreja Católica Romana, ainda permanece.
Lutero desestruturou todo este status quo, quando viu o culto não como sacrificium, mas como um beneficium. Cantos antigos e novos foram usados para diferentes cultos. Baseado no “sacerdócio geral de todos os crentes”, Lutero introduziu o canto coletivo em língua vernácula, levando as pessoas a participarem ativamente nos cantos e no culto. Quer-se detectar como a Reforma trabalhou a tradição e o motivo pelo qual novas tendências foram acrescidas. Que fatores teriam levado Lutero a reter os hinos em latim? Por que, se usava o latim, também quis introduzir cantos em alemão? Quais eram os temas predominantes em seus cantos e por que razão os usava?
E outros reformadores, como Calvino e Zwínglio, como enfocaram a música nos cultos de suas igrejas? Os anabatistas tinham um modo peculiar de lidar com a música. Usavam os cantos para fortalecer a fé cristã, ameaçada de todos os lados pela perseguição. Será possível aprender algo com os hinos produzidos pelos anabatistas que sirva para a seleção de cantos na igreja? Que assuntos eram os escolhidos para seus hinos e por quê?
A Contra-Reforma estabeleceu o músico Palestrina como o paradigma a ser imitado por todos os que desejassem escrever música para a igreja. Mais uma vez, aqui, o canto continuou prestigiando a classe dos músicos profissionais e deixou os fiéis em plano secundário. Com vistas a esse procedimento, precisa-se averiguar como o movimento considerou a tradição dos cantos e que novas concepções musicais foram introduzidas.
Levantadas as causas que levaram as pessoas a reter a tradição ou a adotar procedimentos novos em relação à música usada nas igrejas e estudadas as conseqüências desses fatos, espera-se retirar resultados práticos para o último capítulo. Esse material servirá para ajudar as igrejas cristãs da atualidade a elaborar seus hinários com critérios abalizados e contextualizados e a escolher os cantos do culto cristão com maior fundamentação.
3.2 – A tensão entre tradição e contemporaneidade na Idade Média
3.2.1 – A contribuição da schola cantorum, do canto gregoriano e do monasticismo para a perpetuação de uma tradição
Gregório Magno, cujo papado ocorreu no período de 590 a 604 d.C., não foi o criador da schola cantorum, mas foi aquele que mais a influenciou, ajudando na sua difusão. Dedicou-se, como homem público e rico, à criação de mosteiros, convertendo o seu próprio palácio num deles. Foi o primeiro dos grandes reformadores da liturgia e, por causa desse serviço, recebeu o título de Magister Caeremoniarium. Fundou duas casas, denominadas orphanotrophia, responsáveis pelo treinamento de órfãos que comporiam a schola cantorum. Os historiadores vêem nele um gênio:
The formative period ensuing upon the liberation of Christianity had gradually blended traditional Jewish methods of sacred songs, Greek musical science, and latin rhythmical idioms into a musical medium that needed only the unifying touch of genius and of trained skill to produce master-works.
Durante o papado de Gregório Magno, a música entoada pela congregação durante a liturgia consistia apenas no Kyrie eleison, Gloria in excelsis e Sanctus. Esse canto congregacional era simples, contrastando enormemente com o canto sofisticado que os solistas e o coro apresentavam. O Kyrie bem como o Gloria eram entoados em forma antifonária entre o celebrante e a congregação. O Sanctus, entoado na liturgia judaica desde tempos remotos, passou ao cristianismo para ser cantado durante a Eucaristia. Tanto S. Clemente quanto as “Constituições Apostólicas” referem-se à sua forma de apresentação como sendo congregacional. Destaque-se o fato de que o povo tinha uma participação mínima na música no culto.
No Antiphonale Missarum, Gregório quis unificar tanto a liturgia como a música, difundindo-as para outros países. As características da música dessa coletânea foram assim descritas:
The new type of music was exclusively vocal; instrumental aids were rejected. It was severe, solemn, entirely distinct in style and tone from secular music, and it remains to this day exclusively associated with divine worship. It had no measure of time, no bars, no fixed rhythm, no sharps or flats, no harmonies. Anything more different from the melodious and flowing Ambrosian music it would be difficult to conceive. And it was not congregational. Quite definitely it withdrew the musical part of the service from the congregation, and reserved it for clergy and choir alone.
Gregório tanto usou composições da tradição mais remota, como o Kyrie, o Gloria e o Sanctus, quanto organizou os elementos mais atuais, usados na liturgia, ordenando-os em um sistema mais tarde conhecido como canto gregoriano. Providenciou notação musical para esse canto e o incluiu no seu antifonário. Adicionou quatro novas escalas às existentes, completando o sistema modal da igreja. O canto gregoriano radicou-se em Roma e foi levado a outras cidades e países, fazendo com que em cada novo lugar onde era introduzido fossem criadas novas melodias ou adaptações das melodias antigas, principalmente em razão das festas locais. A idade áurea do canto gregoriano estende-se entre os séculos V e VIII, mas os manuscritos preservados que contêm notação musical datam do período entre os séculos IX e XII. Essa é a música que iria predominar no seio da Igreja até o século X, quando começaram a ser infiltrados os cantos influenciados pela música secular das novas festas que foram associadas ao calendário eclesiástico. O canto gregoriano representou, durante longo tempo, o que havia de tradicional. Cantado em uníssono pelos profissionais da religião, foi a forma de canto predominante até o aparecimento da polifonia. A notação do canto gregoriano processava-se, no seu início, através de neumas, colocados no próprio texto. Tinham o propósito de fornecer as inflexões da voz para a melodia, sendo mais usados como recurso mnemônico, e eram herança das cantilenas da sinagoga. Mais tarde o canto gregoriano apareceu em notação de uma pauta com quatro linhas. As características do canto gregoriano dão a ele uma feição distinta da música que hoje se aceita como sacra: é completamente sujeito ao ritmo do texto; o estilo é estrófico e a música apresenta flexibilidade para acomodar as diversas sílabas do texto. O canto gregoriano não era um canto congregacional, tanto que necessitava dos profissionais para a sua execução. Uma das técnicas composicionais na confecção de um canto gregoriano era o reaproveitamento de melodias já existentes: “The early Gregorian composers, like their fellows in the Near East, were interested not so much in composing new melodies as in adapting old and traditional phrases to new liturgical purposes”.
A escolha de como usar o canto gregoriano estava intimamente ligada a quando utilizá-lo. O tipo de liturgia era o que comandava o estilo a ser adotado. Para a seleção do tipo de canto gregoriano a ser empregado, levava-se em conta se o culto era um Ofício ou uma Missa. Considerava-se ainda se era um dia festivo ou simplesmente um dia comum. Para os dias de festa, os cantos eram mais ornados. Para as Laudes e Vesperas a música seria também mais rebuscada do que a usada para as outras Horas Canônicas. Outro elemento delimitador do estilo era determinado pela habilidade musical do executante: os cantos destinados a serem cantados pelo bispo e pelo povo eram silábicos, os mais simples; os apresentados pela schola cantorum e por solistas eram os mais elaborados.
O monasticismo foi responsável por efetuar uma grande mudança em relação à concepção de culto cristão, modificando o seu caráter. Uma forte transformação foi a ênfase na dimensão individual sobreposta ao caráter comunitário que o culto possuía anteriormente. A piedade monástica enfatizou a participação individualizada na liturgia, destacando prioritariamente a contemplação em detrimento da proclamação da Palavra, um ato comunitário. Os monges dedicavam o seu tempo à oração e meditação. Além dessas práticas, liam em voz alta os Salmos e trechos diversos do Antigo Testamento e do Novo Testamento. Os responsos e antífonas usados durante a liturgia foram-se transformando em textos independentes, muitos dos quais geraram hinos e poemas não-escriturísticos. Os monges eram os “profissionais” da religião. A distinção entre laicalismo e clericalismo ficou mais evidenciada a partir dessa época: “(…) the boundary between the sacred and the secular was the monastery wall”. Os músicos que sabiam escrever eram monges, o que os distinguia dos músicos seculares, que apenas podiam tocar e cantar de ouvido. A música sacra da Idade Média permaneceu por muito tempo estável, cabendo aos músicos monges cantar durante a liturgia. A música sacra nessa época tinha as seguintes características: era a única música escrita, liderada e executada por um corpo de homens profissionais, com traços marcantes que a tornavam distinta da secular. Os monges começaram a introduzir, nos diversos ofícios religiosos que eram celebrados diariamente, o modelo de oração particular adotado nos conventos:
The influence of the monks is to be noticed in the increase of psalmody, the introduction of the Old and New Testament canticles, the organized reading of the scripture, lives of the saints, and writings of the Fathers, and, above all, in the practice of matins, the night office before lauds (…) this monastic practice of prayer became known widely in the west and had great consequences for Christian liturgy, for the daily office eventually became so clericalized that it lost its popular character. The monks prayed in the name of the community, which began to participate less and less.
A vida nos mosteiros era organizada de forma a haver cultos específicos para cada horário, as chamadas Horas Canônicas. Cada um desses cultos tinha a sua própria liturgia e os seus hinos. Além desses, havia ainda os hinos destinados aos dias santos.
A participação popular pôde ser mais sentida nos “dramas litúrgicos”, que eram representações sagradas, influenciadas pelos recitativos e narrações (bíblicas ou de histórias de santos e de mártires). Os dramas litúrgicos nasceram dentro de ambiente eclesiástico, principalmente nos mosteiros, onde eram entoados como hinos litúrgicos, mas logo tiveram de passar para fora desse ambiente, em razão do número grande de participantes e de cenários. Sofreram influência do teatro clássico greco-romano, que ainda florescia no século IX. Tanto os heróis como os personagens secundários gregos eram substituídos pelos santos, mártires e apóstolos. Os cristãos, necessitando de novos representantes visuais para a sua piedade, mais compatíveis com o contexto da época, deram aos objetos de veneração convencionais um “novo visual”, os quais ganharam detalhes que os identificavam popularmente: uma cruz, uma túnica vermelha para Cristo, uma chave para S. Pedro, barbas para S. Judas, um vaso florido para S. José. As principais histórias desses dramas foram escritas entre os séculos XI e XIV e as preferidas eram as do Natal e da Ressurreição de Cristo. A música para os dramas litúrgicos era uma mistura da música dos trovadores, popular, com a “séria”, dos artistas renomados e a sacra, misturando os diversos estilos: canto gregoriano, chansons emotetos. Os instrumentos também eram empregados, muitas vezes em interlúdios.
Por volta do século XIII a Europa entrou num período de declínio social e moral acentuado, com invasões de povos famintos e disseminação de pestes. Os monges formavam uma classe social privilegiada, abrigados em seus mosteiros e reprovados pelo povo. Sua simplicidade e piedade haviam desaparecido. Estavam mais preocupados com as suas posses e distanciados das necessidades que o povo a sua volta passava. Por volta do ano de 1370, Gerd Groote abandonou a clausura e a erudição para se tornar um pregador itinerante e viver no meio do povo. Era uma reação contra a vida segregada e privilegiada que os monges levavam em seus mosteiros. Entendeu que todo o clero deveria ser muito bem instruído e que o povo deveria ter acesso ao saber para que tivesse condições de ler e decidir por si mesmo. Por essa razão, traduziu trechos da Bíblia e alguns hinos para o vernáculo. Logo surgiram os “Irmãos e irmãs da Vida Comum”, um grupo de homens e mulheres vivendo segregados e valorizando a pobreza, a humildade, a obediência e a autonegação. Seu maior propósito era reformar a igreja oficial através da educação da juventude, da instrução religiosa transmitida ao povo e da caridade ao próximo. Foram essas atitudes que deram início ao que se denominou de Devotio Moderna, que rapidamente se espalhou por toda a Europa cristã. Logo surgiu um pequeno livro, a Imitatio Christi, cuja mensagem espelhava o espírito da Devotio Moderna. O livrinho destinava-se a todos, sem exceção, mas principalmente àqueles desejosos de transformar e santificar o seu cotidiano: “Com a Imitatio Christi, a casa se torna lugar de santificação, ao lado do convento. Os oratórios domésticos se erigem em espaços de oração e espiritualidade, ao lado da ‘igreja’ conventual”. Com a Devotio Moderna, surgiu um modelo de vida eclesiástica que colocou leigo e sacerdote no mesmo nível, sem as distinções hierárquicas, fato que aborrecia enormemente a igreja de Roma. Em relação à vida de devoção, todos se tornavam iguais.
3.2.2 – Fatores que modificaram a tradição do canto gregoriano
A partir do século X começou uma série de experimentos que iriam desestabilizar a homofonia do canto gregoriano, que por seis séculos esteve padronizado como sendo a única forma tradicional de veiculação da música sacra. Na Idade Média a novidade para a música sacra apareceu com a polifonia. Uma das primeiras experiências ocorreu com a adição de uma outra voz cantando a um intervalo de quarta ou quinta abaixo, a qual reproduzia exatamente o tenor, que era a voz principal. Esse procedimento recebeu a denominação de organum. Chamava-se descanto livre a prática de se acrescentarem melodias improvisadas sobre o tenor, preferencialmente em intervalo de segunda, o que, para os ouvidos da época, soava bem. Mais tarde introduziu-se outra voz sobre a melodia principal, em intervalo de terça, processo que recebeu o nome de gymel. Logo a seguir outras práticas foram acrescentadas. Uma forma típica de se trabalhar a composição musical na Idade Média pode ser constatada no reaproveitamento de uma mesma melodia para diversos propósitos. A melodia servia de “matéria-prima” a ser aproveitada nas novas composições. Essa era uma forma de a tradição ser revestida de elementos da atualidade. O tropos, por exemplo, apareceu sob a forma de uma melodia bastante ornada, que era acrescida a essa melodia antiga. Para preencher esses novos espaços melódicos criados, formulavam-se textos que tanto podiam constar de poucas palavras entre o Kyrie e o eleison, quanto podiam ser frases inteiras e até mesmo poemas colocados entre duas palavras de um texto. Um dos tropos mais empregado era a seqüência, que consistia em adornar o último a da palavra Aleluia com canto melismático: “(…) almost all parts of the liturgy were ‘troped’ in one way or another; and though liturgists may disapprove of these outcrops, they bear witness to the inevitable desire to break new ground”. Foi em S. Gall que dois monges vindos de Roma introduziram uma escola de canto que seguia os moldes fixados por Gregório Magno. Atribui-se a Notker Balbulus, dessa escola, a introdução da seqüência que ornamentava o Aleluia.
Pode-se destacar uma nova tendência surgida nessa época, em torno do século XII: o ritmo mensurado, a ser expresso numa notação mensurada. O canto gregoriano usava notas de valores muito longos, que serviam como base dos ornamentos que eram inseridos. O modelo que vinha da música secular já utilizava o recurso de imitação, como o cânone. Os músicos sacros começaram a usar as mesmas melodias assim arranjadas e colocar nelas letras de cunho religioso. Esse intercâmbio veio, portanto, através da influência do tipo de música que era produzido fora da igreja.
O século XIV viu iniciar um período que ficou conhecido como o da Ars Nova. As inovações se fizeram sentir principalmente na música secular, através das baladas e rondós. Na Ars Nova, os compositores abandonaram a antiga forma de apresentação do cantus firmus, optando pela melodia acompanhada. A harmonia admitiu a presença dos intervalos de terça e sexta, embora os pontos de consonância continuassem a ser as quartas, quintas e oitavas. O ritmo avançou na direção do uso de síncopes, com o deslocamento do acento métrico do tempo forte, o que acarretou grande complexidade da estrutura rítmica:
Ars Nova is the logical development of music which can be traced back to the organum. Music is now for the first time an independent and responsible vehicle of expression. (…) This is indeed a clean break with the tradition whose highest development is in Palestrina, and it is in a special way a new ‘humanism’ in music. But if it be regarded as a ‘Renaissance’ in the sense of being the incursion of humanism, it is by no means a reaction against a played-out system.
O papa João XXII, na sua bula Docta sanctorum patrum, datada de 1324, repreendeu essa prática, que já utilizava o ritmo medido, mas não empregava os modos eclesiásticos tradicionais. Segundo esse papa,
(…) they substituted for the traditional melodies their own tunes, or mixed profane parts with the liturgical chant, that in the imitations, or “chases” as they were called, part pursues part, running on and never finding repose, and that such an art, however satisfying to curiosity, cannot give peace to souls, nor incite them to devotion.
O fato de colocar ritmos de valores menores, que eram executados mais rapidamente, preocupou o papa João XXII, que viu a música sacra ameaçada pelas influências seculares:
He seems to be chiefly concerned that the due sanctity of the office and the tranquil movement of the plainsong should be maintained. In fact the new pieces are agitated by short notes and disturbed by hockets and the plainsong is made unrecognizable by the rhythmic treatment to which it is subjected.
Ao mesmo tempo em que essas inovações tomavam conta do canto gregoriano, uma mudança radical também estava se fazendo sentir quanto à liturgia. Para compreender o papel da igreja durante a Idade Média, deve-se levar em consideração o sistema eclesiástico de hierarquia, que excluía de seu interior a figura do leigo. O latim foi deixando de ser popular. Em conseqüência, porque só os clérigos podiam entendê-lo, a missa foi-se transformando em algo que só eles eram capazes de fazer. O povo foi colocado na categoria de espectador, sendo a ação principal desempenhada pelos profissionais: padres e músicos eram os habilitados, que falavam com Deus em nome do povo. Segundo Bard Thompson, essa ideia “(…) was reinforced by the increased emphasis upon the juridical conception of the church as a divine institution governed by the hierarchy, rather than as a community of the redeemed”.
A participação da congregação ficava restrita aos diálogos que aconteciam entre o oficiante e ela e/ou o coro. Esses cantos eram, na sua grande maioria, os salmos, que podiam ser cantados de três formas. No salmo responsorial, o solista cantava os seus versos e a Schola Cantorum respondia com um tipo de refrão, quase sempre tirado de uma frase que o solista tivesse acabado de cantar. Nos salmos diretos não havia interpolação de refrão e nos antifonários o refrão era distribuído para dois grupos diferentes, que atuavam numa espécie de eco. Note-se, entretanto, que a participação efetiva da congregação aconteceu no Ordinário da missa praticamente só até o século IX: os Kyries e Glorias eram melodias simples, que não ultrapassavam o intervalo de sexta. Quando a Schola Cantorum começou a trabalhar os cantos dessa parte da missa, a complexidade aumentou, ficando eles inacessíveis ao povo. Os hinos só foram introduzidos na missa romana a partir do século IX e eram mais cantados pelo povo nas procissões.
No século IX, cada vez mais a Missa era entendida como “the sacred drama of the life and passion of the Lord”. Tudo o que era usado para a liturgia recebia uma conotação alegórica: as vestimentas, os utensílios e até a movimentação dentro do santuário ganhavam significado alegórico. As mãos estendidas do oficiante depois da Consagração, por exemplo, queriam evocar os braços estendidos de Cristo crucificado. Confirmava-se a concepção teológica de Gregório Magno acerca do sacrifício sempre renovado na missa. Por causa da proliferação de missas públicas e privadas, o padre tinha, para o seu uso, os livros apropriados para as diversas partes da liturgia, podendo até celebrá-las sozinho. As missas privadas consistiam na celebração da Eucaristia pelo padre, tendo apenas um ou dois assistentes, sem a presença dos fiéis. Essa prática iniciou-se por causa dos numerosos monges que se tornavam padres e também pela necessidade de atender às inúmeras requisições de missas pelas mais variadas intenções. A missa foi substituída pelas missas privadas. Já no final da Idade Média as missas privadas foram reconhecidas como a forma regular da celebração pública da missa.
A arquitetura refletiu essa nova concepção de liturgia. Os templos foram-se alongando para abrigarem o coro, que se interpôs entre o altar e a congregação, gerando um verdadeiro obstáculo entre os dois. Ao chegar o século XVI, a igreja era lugar para o povo orar silenciosamente:
Não deveria nos causar surpresa que essas igrejas altamente especializadas tenham tido um efeito desproporcional nas igrejas paroquiais, onde a maioria das pessoas celebravam culto no seu vilarejo. (…) Esses prédios também acabaram abrigando grandes coros dotados de anteparos, espaços usados somente pelo clero local e pela família senhorial. Porém a congregação não era formada por monges ou clérigos, e sim por leigos, relegados à nave, donde podiam vislumbrar a missa sendo rezada na mesa do altar na outra extremidade do coro.
A missa, como combinação das partes Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei, apareceu com essa formação só no século XIV. Em virtude da multiplicação de missas e de liturgias, o papa Pio IV nomeou uma comissão para tratar da unificação do rito e reformulação da liturgia, de cujo trabalho resultou a obra conhecida como Missale Romanum (1570), concluída durante o papado de seu sucessor.
Nos séculos XV e XVI a música tornou-se elemento indispensável a ser considerado pelas pessoas que se diziam educadas. Em conseqüência, os nobres começaram não somente a patrocinar a música, como ainda desejavam ser conhecidos como músicos amadores. Os diretores das capelas reais e músicos da igreja fizeram desses locais os centros que propagaram o estilo “secularizado” da música sacra. A própria Missa começou a ser realizada com grande cerimonial e a música acompanhou essa tendência, com a introdução da polifonia baseada nos cantos gregorianos ornamentados. William Dufay foi o primeiro a usar a música secular dos menestréis na música sacra: as letras não-sacras eram colocadas nos cantus firmi, enquanto as outras vozes permaneciam com letra religiosa.
3.3 – A tensão entre tradição e contemporaneidade na perspectiva de Martinho Lutero (1483- 1546)
3.3.1 – Características musicais do período
Podem-se apontar as seguintes características da nova música do século XVI: textura formada por contraponto, produzida pela manutenção da imitação de pequenos motivos; harmonias organizadas como sonoridades cordais; abandono gradativo das antigas fórmulas fixas, como o cantus firmus da Missa, e o desenvolvimento de formas de composição mais livres, com repetições variadas. A missa-paráfrase, baseada no material do modelo monofônico, mas livremente desenvolvida através de técnicas imitativas, começou a ser empregada à medida que o cantus firmus ia saindo de moda. Além da missa-paráfrase, existiam a missa-paródia, construída num modelo polifônico, e ainda a missa-livre, construída com material novo. Cada vez mais foram se fazendo sentir as influências da música secular sobre a sacra. Os compositores passaram a dar maior atenção às letras. Tanto os humanistas como os reformistas estavam preocupados com o sentido das palavras. Essa preocupação deu origem ao que se denominou de “a doutrina dos afetos”:
The medieval polyphonic music, although the most complete example in art of the perfect adaptation of means to a particular end, could not long maintain its exclusive prestige. It must be supplanted by a new style as soon as the transformed secular music was strong enough to react upon the Church. (…) The new-born art strove to give more apt and detailed expression to the words, and why should not this permission be granted to church music?
Um século depois, a arte do solo iria-se expandir tanto que suplantaria o coro, os modos eclesiásticos seriam substituídos pelos modos maiores e menores do sistema tonal, e o canto a capela pela música acompanhada. A música secular dramática predominaria sobre a religiosa e a arte da música instrumental transformar-se-ia numa arte independente, principalmente por causa do patrocínio da aristocracia.
3.3.2 – Razões e fundamentos teológicos da Reforma luterana
A situação caótica em que a igreja e alguns setores da sociedade do século XVI encontravam-se foi a razão pela qual Lutero se tornou porta-voz de um movimento que desde o século anterior clamava por transformação radical. Havia muito o que reformar. A igreja vivia um sistema em que os poderes políticos e religiosos se amalgamavam muito intimamente (sacerdotium et imperium). Os papas preferiram ceder aos caprichos do poder, negligenciando seus postulados pastorais, fato que foi denunciado com veemência por Lutero. O humanismo, oriundo das camadas ricas e burguesas do século XV, propagava-se de modo rápido e induzia muitos ao abandono da fé. Os humanistas viam a Idade Média como um período de barbarismos e a igreja como um escândalo causado pelo próprio clero. Abominavam a piedade popular da época, com sua veneração dos santos, milagres, imagens, peregrinações e indulgências.
No prefácio ao hinário de Babst de 1545, por exemplo, ao defender o culto apregoado pelo Novo Testamento, Lutero convoca os tipógrafos para que ajudem o povo nessa pregação através da impressão de bons hinos, os quais, assim elaborados, causariam derrota ao papa:
Therefore, the printers do well if they publish a lot of good hymns and make them attractive to the people with all sorts of ornamentation, so that they may move them to joy in faith and to gladly sing. (…) God grant it may cause great loss and harm to the Roman pope, who through his damned, intolerable, and abominable laws has caused nothing but howling, mourning and grief in all the world. Amen.
A igreja era quase que exclusivamente propriedade do clero, que, além disso, também detinha o monopólio cultural. Para ser clérigo, não existia a chamada vocação ministerial e sim um alto interesse econômico-social. Embora os ensinamentos da igreja a apresentassem como uma organização infalível e detentora absoluta do saber, ela não conseguia satisfazer a necessidade que as pessoas tinham de certeza de salvação. A igreja ensinava que o cristão poderia esperar uma aceitação da parte de Deus desde que recebesse com regularidade os seus sacramentos e não cometesse nenhum pecado mortal. Além disso, permitia que sua doutrina se mesclasse com elementos místicos da veneração popular, o que causava uma grande inquietude teológica:
Em toda parte, a gente buscava padroeiros contra todos os males possíveis, queria provas palpáveis em cousas sacras (relíquias) das igrejas, que então eram postas em veneração e solene exposição. Da piedade, orientada pela teologia, fugiu o povo para elementos da sensação; nos santuários de romagem, queria ver o milagre, queria quase apalpá-lo com as mãos, e para esse fim não recuava diante de nenhum sacrifício.
Desde o século XI a igreja cobrava uma taxa, conhecida como indulgência, que ela dizia destinada a pagar pelo perdão que concedia às penas temporais dos pecados. Ensinava ainda que essas indulgências eram eficazes e aceitas por Deus. Nos seus sermões sobre os salmos e sobre a carta aos Romanos, Lutero criticara essas indulgências, afirmando que assim o povo tinha-se acostumado a evitar as penas do pecado, mas não o próprio pecado. Segundo Lutero, a verdadeira penitência consistia na conversão pessoal, interior, e no afastamento de qualquer ação pecaminosa. Considerou as promessas dos pregadores que defendiam as indulgências como “embusteiras”. Já na sua primeira tese das 95 pregadas em 31 de outubro de 1517 na igreja do Castelo de Wittenberg, Lutero chamava a atenção para que os fiéis demonstrassem uma vida inteira de arrependimento, baseando-se em Mt 4.17: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino de Deus”.
A centralidade da Bíblia como a Palavra de Deus, não por ser um “manual de verdades”, mas principalmente em razão de revelar Jesus Cristo à humanidade, vinha combater a ideia que os católicos romanos defendiam de que a igreja tinha autoridade sobre as Escrituras. Para Lutero, a Bíblia era válida mesmo quando a tradição não se coadunava com ela. Sua teologia estava fundamentada na Palavra, conforme atestava Rm 10.17: “E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo”. A fé é vista por uma óptica diferente da tradição escolástica, que entendia que ela poderia ser concebida pela instrução (fides acquisita). Na opinião de Lutero, a fé é mais que aderir a uma verdade racional e intelectual: é ter comunhão com Deus e aceitar o ato salvífico de Cristo na cruz como “dom de Deus” – esse o conceito de sola fide. O ser humano é declarado justo por Deus, não por seus próprios méritos (segundo o ensinamento da Igreja Católica, a fé não é suficiente para a salvação; a fé só pode ser aceita por Deus se associada às obras), mas por causa de Cristo. Fé e obras estão relacionadas, mas são coisas distintas: a fé refere-se à humanidade e sua comunhão com Deus; as obras dizem respeito ao relacionamento das pessoas com o seu próximo. A “experiência da torre”, assim denominada por causa do local onde havia acontecido, veio iluminar o sentido da expressão “justiça de Deus” (iustitia dei) que tanto perturbava Lutero. A partir dessa data, ao estudar Rm 1.17: “Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá da fé”, ficou clarificado na sua mente que a justiça de Deus é revelada na salvação de todo o que crê, e isso não se dá por merecimento do crente, mas sim pela misericórdia de Deus.
A secularização da igreja, a influência dos humanistas, os privilégios escandalosamente administrados pela nobreza, os abusos do clero, a falta de esclarecimento em questões de fé, paralelamente à cobrança das indulgências, suscitaram o clima adequado para o que veio a ser conhecido como “a Reforma protestante” protagonizada por Lutero.
3.3.3 – Conseqüências para a liturgia
As mudanças mais drásticas na missa empreendidas por Lutero giraram em torno das novas ênfases de sua teologia. Ele também deu uma nova significação ao culto, abolindo as missas privadas e a adoração aos sacramentos. Seu desejo era que o culto reproduzisse o espírito da Ceia instituída por Cristo. É por essa razão que Lutero disse:
Quanto mais próximas, pois, nossas missas estiverem da primeira missa de Cristo, tanto melhores sem dúvida serão, e quanto mais distantes dela, tanto mais perigosas. (…) Caso quisermos celebrar e compreender a missa, temos que deixar de lado tudo o que os olhos e todos os sentidos mostrem e evidenciem nesse negócio – seja veste, retintim, cantoria, ornato, oração, carregar, elevar, deitar, e o que mais possa suceder na missa -, até que compreendamos e consideremos bem as palavras de Cristo, com as quais ele realizou e instituiu a missa e nos ordenou realizá-la (…).
O culto foi visto como a ocasião em que os crentes se encontram com Cristo e com os demais cristãos. A igreja, no sentido de ekklesia, é principalmente “a comunhão dos santos”, ou seja, a comunhão de todos os que possuem a mesma fé em Cristo, uma comunhão invisível, ou cristandade interna. Ao lado disso, existe a igreja visível, que se reúne num local com normas específicas de funcionamento, denominada cristandade externa. Lutero entendia a missa como a reunião do corpo espiritual de Cristo, os crentes, sem os quais o rito era inconcebível. Nesse sentido, são relevantes os ensinamentos deixados por Lutero quando escreveu sobre o quinto mandamento no seu Catecismo Maior, exortando os crentes a não somente não fazer mal a ninguém “nem com gestos, nem sequer com palavras”, mas sobretudo a promover o bem, demonstrando para com o próximo e o inimigo humildade, paciência, bondade, amor e misericórdia, que constituem “as obras verdadeiras, nobres e elevadas”.
Para Lutero três elementos caracterizam uma igreja verdadeira: o Batismo, a Ceia do Senhor e a proclamação da Palavra. O Batismo e a Eucaristia foram os únicos retidos dos sete sacramentos da Igreja Católica.
Lutero rejeitou a ideia medieval de que havia um poder místico na água do Batismo, embora a água e a Palavra fossem fundamentais. A simbologia do Batismo significava que o crente deve morrer para o pecado para que o novo homem possa renascer. O Batismo é mais que um sinal: é através dele que alguém passa a pertencer ao Corpo de Cristo. Porque a salvação é iniciativa de Deus, pode-se, assim, conceber o Batismo de crianças, que é válido por toda a vida. Lutero cria que no Batismo estava a força que lhe ajudava a combater as investidas de Satanás.
A Ceia do Senhor foi concebida por Lutero com base no relato da Bíblia sobre sua instituição. Aliás, no rito que Lutero propôs para a Ceia do Senhor, a ênfase deveria ser dada às palavras da instituição, abolindo as partes do cânone que “cheiravam a sacrifício” e preservando a saudação mútua, o prefácio, as palavras da instituição, o Sanctus e a elevação. Não aceitava a interpretação católica de que, na Ceia, o sacrifício de Cristo é repetido. Opôs-se também à doutrina da transubstanciação, que se baseava no conceito de merecimento e que afirmava a transformação do pão em corpo e do vinho em sangue de Cristo, mas defendeu o conceito da presença real, ideia que lhe valeu acirrada contenda com André Bodenstein de Karlstadt e Zwínglio. O sacramento não é meramente simbólico, como defendiam esse dois teólogos, mas a presença de Cristo podia ser vista ao redor e por trás do pão e do vinho.
Com a concepção do sacerdócio geral de todos os crentes, Lutero não mais aceitou que os fiéis permanecessem passivos e buscou alternativas para que esse quadro fosse alterado. Ele não via a missa na óptica medieval, como um sacrificium, ou seja, um sacrifício oferecido a Deus pelos seres humanos; antes via na missa um beneficium, presente de Deus a eles:
Já na primeira preleção sobre os Salmos, entre 1513 e 1515, destaca-se claramente a compreensão de Lutero sobre a estrutura básica da relação entre Deus e o ser humano. Um Deus que fala, age através de sua palavra junto a uma pessoa, restando a ela apenas ouvir e obedecer. Nessa relação Deus é o interlocutor ativo e o ser humano o passivo. (…) O culto – para Lutero em primeira instância [é] a reunião da comunidade na qual Deus serve às pessoas que se reúnem.
Lutero não quis reformular a missa totalmente, mas transformar aquilo que julgava ser incoerente com a sua teologia:
In the Formula Missae, Luther’s conservative and evangelical views coalesced. He proposed merely to revise the Missal, retaining the Latin language, but purging the Mass of those things that could not support an evangelical interpretation.
Com a concepção do culto como beneficium, Lutero quis modificar a visão de que a liturgia era para ser “ouvida” por leigos e “executada” por profissionais. Ele compreendeu que no culto era a graça de Deus que se manifestava ao ser humano, razão pela qual só admitia a celebração de culto se a Palavra de Deus fosse pregada. Em virtude da concepção de que as Sagradas Escrituras são o único fundamento da teologia luterana (sola scriptura), porque revelam Deus, o sermão ganha relevância no culto:
The Word is God, not only the eternal, uncreated, pre-existing Word (John 1:1), but also the incarnated, created, and revealed Word. In all its earthly lowliness, the Word brings God to man. In this sense, Luther’s entire theology is a theology of the Word.
(…) Christ never wrote anything, and his apostles were not scribes but messengers. So today the Bible must be preached if the gospel is to assume its proper form and fulfil its proper task.
Tanto as missas como as horas canônicas deveriam incluir a pregação da Palavra. Embora existisse o costume de se ler trechos inteiros da Bíblia, Lutero achava que a simples leitura não era suficiente para que as pessoas entendessem o que ouviam. O sermão não era algo inovador, mas obteve um grande desenvolvimento com a Reforma, pois agora ele possuía sentido dentro do culto e não era mais opcional.
A primeira vez que usou o vernáculo foi no Natal de 1521, quando também introduziu a nova maneira de celebrar a Eucaristia, proferindo as palavras de consagração dos elementos em alemão, em voz alta e com a supressão dos demais gestos cerimoniais. Essa a missa que se tornou conhecida como “missa alemã”, mas que realmente só foi colocada em prática a partir de 1526. Logo em seguida ao Natal de 1521, as imagens e os altares seriam retirados do santuário. Em alguns lugares da Alemanha e Suíça as missas começaram a ser celebradas em alemão, mas na cidade de Wittenberg, por prudência e em respeito à política de cautela de Frederico, o Sábio, Lutero conservou a missa em latim, mesmo tendo sido considerado por Karlstadt como neopapista. A Missa em latim também foi conservada para não ofender os “fracos na fé”, aqueles que não estavam prontos para acolher transformações drásticas.
A liturgia latina adotada pela Igreja Católica não foi totalmente alterada por Lutero. Ele só aboliu as práticas que não se coadunavam com a doutrina da justificação pela fé: reduziu o Próprio, suprimiu algumas festas em honra a Maria, aos santos e mártires e as missas diárias. Lutero reteve da tradição católica a missa, as matinas e as vésperas e por isso a música que ele usava nas missas em latim ainda era a tradicional, do rito católico, ou seja, o canto gregoriano e arranjos polifônicos para o coro. Além desses cantos litúrgicos provenientes da Igreja Católica, foram incluídos os cantos sacros de Lieder alemães usados no período anterior à Reforma e ainda canções de cunho popular, as quais revestiu à maneira cristã.
No prefácio da sua “missa alemã”, Lutero defendeu o uso de três tipos de culto. O primeiro era a missa em latim, ou Formula Missae, para as igrejas maiores e catedrais, onde os jovens pudessem ser treinados no latim, e até em outras línguas, além da alemã. Mediante o estudo do latim, esses jovens estariam aptos a disseminarem o evangelho em diversos lugares:
Lutero direciona a forma de culto não só às experiências espirituais dos participantes do culto, mas toma em consideração também sua capacidade intelectual de assimilação. Iso também não poderia ser diferente, uma vez que se trata de transmitir o conteúdo do Evangelho. Mesmo que Lutero tenha introduzido uma missa alemã em 1525 em Wittenberg, ele não quer eliminar por completo a latina, uma vez que em Wittenberg há uma escola latina e um grande número de estudantes. Latim é a língua de quase todas as universidades na Europa. Quem está afeiçoado ao culto latino pode falar com pessoas em outros países, trazendo assim proveito a Cristo.
O latim também seria usado nas festividades da igreja, como Natal, Páscoa, Pentecostes, Purificação, S. Miguel, o padroeiro do povo alemão, até que houvesse um número expressivo de cantos em alemão que pudessem substituir a língua latina.
No segundo tipo de culto, usaria a “missa alemã”, para favorecer o povo analfabeto, incluindo os não-cristãos, que se reuniam em igrejas de pequenos centros, em cujas escolas professores e alunos apenas dominavam a língua alemã.
Um terceiro tipo de culto seria adequado para local não-público:
Mas aqueles que desejam ser cristãos com seriedade e que confessam o evangelho com mãos e boca deveriam assinar o seu nome e reunir-se entre si, em alguma casa, para orar, ler, batizar, receber o sacramento e fazer outras obras cristãs.
Nesse recinto, as pessoas não teriam necessidade de um canto “elaborado”. Iriam centralizar tudo na Palavra de Deus e teriam a oportunidade de colocar em prática os ensinamentos de Jesus, segundo o registro de Mateus 18.15-17:
Se teu irmão pecar [contra ti], vai argüí-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano.
Não satisfeito com os três tipos de culto, Lutero ainda previu reuniões litúrgicas em horários distintos durante a semana e no próprio domingo, como a que era realizada às 5 ou 6 da manhã, para que os empregados pudessem participar.
3.3.4 – Conseqüências para a música sacra
Por causa da sua percepção teológica do sacerdócio geral de todos os crentes, Lutero introduziu o canto congregacional no vernáculo. Ele entendia que a participação popular no culto através do canto era uma forma de o povo expressar sua nova condição de elemento ativo da ação litúrgica. Na concepção de Lutero, a música adequada para a liturgia seria a que contivesse os seguintes princípios: em primeiro plano, que fosse um meio de louvor e adoração a Deus; a seguir, instrumento auxiliar à devoção e piedade do cristão e ainda elemento eficaz na educação cristã e na propagação do evangelho. Em razão desse ponto de vista didático, Lutero rearranjou o canto, com texto inserido em melodias antigas e populares, a fim de que a participação fosse mais íntima e pessoal:
Luther knew well that only hymns sung by the worshippers in a familiar tongue come from the heart, and that therefore only this kind of song had pedagogical value. To be sure, before Luther’s time German hymns had been known, but the great majority of religious songs were in Latin.
O apreço de Lutero pela música tinha raízes na sua infância, pois fora educado para se tornar um cantor da Kurrende. Ao ingressar na vida monástica, teve a oportunidade de conhecer a música dos mestres contemporâneos e de aprender o canto gregoriano. Embora tenha aprendido a tocar o alaúde e a compor (por conta própria durante uma enfermidade), sua instrução musical iniciada na infância teve seguimento na Universidade de Erfurt. Já maduro, Lutero expressaria, em carta de outubro de 1530 a Ludwig Senfl, a convicção de que somente a música poderia, ao lado da teologia, fornecer paz e alegria à alma humana:
Pois sabemos que os demônios odeiam e não suportam a música. Dou minha opinião bem franca e não hesito em afirmar que, depois da teologia, é a música que consegue uma coisa que no mais só a teologia proporciona: um coração tranqüilo e alegre. Uma prova muito clara disto é que o diabo, o causador de tristes preocupações e de tumultos perturbadores, foge do som da música quase tanto como da palavra da teologia. É por isso que os profetas de nenhuma arte se serviram como da música. Sua teologia eles não a expressaram pela geometria, nem pela aritmética ou astronomia, mas pela música, ligando, portanto, estreitamente teologia e música e dizendo a verdade em salmos e hinos.
Lutero propagava as novas propostas doutrinárias nos seus hinos. Observe-se o “Alegra-te, cara comunidade”:
1 – Cristãos, alegres jubilai,/ felizes exultando;
com fé e com fervor cantai,/ a Deus glorificando.
O que por nós fez o Senhor,/ por seu divino excelso amor,
custou-lhe a própria vida.
2 – Fui prisioneiro de Satã,/ a noite me envolvia.
A minha vida, triste e vã,/ nas trevas se esvaía.
Abismo horrível me tragou,/ o mal em mim se apoderou;
perdi-me no pecado.
3 – As obras nunca poderão/ livrar-me do pecado.
O livre arbítrio tenta em vão/ guiar o condenado.
Horrível medo me assaltou,/ ao desespero me levou,
lançando-me no inferno.
4 – O eterno Deus se apiedou/ de mim, o infortunado.
De sua graça se lembrou,/ voltou-se ao condenado.
O seu paterno coração/ deu, para minha salvação,
o que há de mais precioso
8 – Derramarei o sangue meu,/ serei à cruz pregado,
somente em benefício teu;/ aceita-o, confiado!
Em inocência hei de sofrer,/ que possas vida eterna obter
a bem-aventurança.
Como Lutero se preocupava com o ensino, usou seus hinos até para combater as ideias contrárias, o que se constata no hino a seguir:
2 – Ensinam-se doutrinas vãs,
por homens inventadas.
Deturpam as palavras sãs,
na Bíblia bem lavradas.
Discordam entre si também,
confundem-nos com vil desdém,
brilhando na aparência.
3 – Senhor, ó vem fazer calar a tais ensinadores!
que nos ensinam falsas aparências!
Ousados são em seu falar
e dizem quais doutores:
Nós temos a revelação,
decretos, leis e tradição;
da Bíblia somos mestres.
4 – Por isso diz o Santo Deus:
dos crentes afligidos
os brados sobem já aos céus,
ouvi os seus gemidos.
Meu Verbo mando com vigor
aniquilar a sua dor
e as hostes inimigas.
5 – Provada a prata é no calor,
no fogo acrisolada.
A sã palavra do Senhor
na angústia é confirmada.
Provado o Verbo pela cruz,
revela então poder e luz,
iluminando a terra.
Com a finalidade de colocar em prática a ideia de um culto em que houvesse uma participação mais ativa dos crentes e necessitando de hinos com texto em alemão, Lutero empenhou-se em requisitar que os compositores de língua alemã o ajudassem nessa tarefa, colaborando com novas composições. A prática anterior do canto ficava delegada aos que presidiam a missa. O canto de hinos pela congregação era algo muito inovador e os hinários ainda não eram acessíveis ao povo. Os hinos eram escritos com a melodia no tenor, com arranjo para quatro vozes, concebidas como instrumentos acompanhadores. Não existia ainda a harmonia funcional com sua sucessão de acordes encadeados tonalmente. A polifonia consistia aqui no arranjo das vozes em torno do cantus firmus. Essa melodia principal era quase sempre retirada de outra fonte conhecida, processo denominado contrafactum. Lutero prezava a simplicidade do tema que vinha no cantus firmus, porque queria que o texto fosse compreendido claramente:
The simplicity of the theme which makes the text more comprehensible to the listener, since its meaning has not been submerged in the flood of poliphony, was particularly suited to express the idea of Protestantism. Luther desired that the believer approach his God personally, and this could only be accomplished by simplicity of speech and tone.
Na sua missa em língua vernácula, que passou a usar regularmente a partir do Natal de 1525, Lutero reteve parte da estrutura da missa tradicional, acrescentando-lhe elementos para uma participação ativa da congregação. Novas formas musicais foram empregadas: as melodias antigas do Kyrie foram adaptadas e os hinos em alemão foram inseridos no Credo, Sanctus, Graduale e Agnus Dei. A recitação usada para a leitura das Escrituras foi também adaptada em função da língua alemã, como também o canto gregoriano. Outro aspecto a ser ressaltado quanto às adaptações feitas tanto na missa latina quanto na alemã é que ambas incorporaram as adaptações determinadas ou pelos costumes locais ou pela exigência da própria Reforma. No exemplo a seguir, pode-se observar a maneira como Lutero trabalhou uma antífona medieval, cantada anteriormente em favor dos mortos, cuja tônica era o medo, transformando-a em um hino em que quis acentuar o arrependimento pelo pecado. Comparando a letra original com a de Lutero, percebe-se essa transformação:
Em meio à vida na morte estamos/ a quem inquiriremos ajudador/ a não ser a ti, Senhor?/ que pelos pecados/ com justiça te encolerizaste,/ Santo Deus/ santo forte, santo e misericordioso salvador/ não nos tragas o amargor da morte.
Em meio à vida estamos/ envoltos pela morte./ A quem buscaremos que nos possa ajudar/ a alcançar a graça?/ És tu, Senhor, somente./ Santo Senhor Deus,/ Santo Deus forte,/ Santo Salvador misericordioso/ Ó Deus Eterno,/ não permitas que afundemos na aflição da morte amarga./ Kyrie eleison.
Lutero preocupou-se com as traduções e adaptações que outros haviam feito do latim, as quais, muitas vezes, segundo ele, soavam ridículas. Em dois de seus escritos podem-se detectar algumas razões por que ele fez as adaptações necessárias para que a língua alemã fosse introduzida nos cultos. Além do aspecto pedagógico, esse canto contemporaneizado serviria como instrumento para afastar os jovens do canto considerado inapto à sua educação e edificação espiritual. Lutero demonstrou nesses escritos que estava preocupado em tornar a tradição, aqui representada pelos Salmos e por aquilo que os pais da igreja haviam instituído, acessível ao povo. Para atingir essa finalidade, desejou transformar os salmos em hinos, com palavras simples, a fim de que os ensinamentos da Bíblia fossem ministrados através do canto:
[Our] plan is to follow the example of the prophets and the ancient fathers of the church, and to compose psalms for the people [in the] vernacular, that is, spiritual songs, so that the Word of God may be among the people also in the form of music. Therefore we are searching everywhere for poets. Since you are endowed with a wealth [of knowledge] and elegance [in handling] the German language, and since you have polished [your German] through much use, I ask you to work with us on this project; try to adapt any one of the psalms for use as hymn (…). But I would like you to avoid any new words or the language used at court. In order to be understood by the people, only the simplest and the most common words should be used for singing; at the same time, however, they should be pure and apt; and further, the sense should be clear and as close as possible to the psalm.
Além disso, os hinos ainda foram arranjados em quatro vozes, por nenhuma outra razão senão esta: Eu gostaria de que a juventude, que de qualquer forma deve e precisa ser educada na música e em outras boas artes, tivesse algo que lhe permitisse libertar-se das canções de amor e outros cantos profanos, aprendendo algo de sadio em seu lugar, assimilando o que é bom com muito prazer, como convém aos jovens.
Lutero designava como cantica nova os cantos de caráter religioso, denominados no Livro de Salmos de cânticos novos, os quais ele opunha aos alte Lieder, profanos, que considerava corruptos e carnais. Ele entendia a música como dom de Deus a ser usada como veículo para tornar o texto bíblico mais compreensível. Na época da Paixão durante a Idade Média, por exemplo, costumava-se pregar sobre os Dez Mandamentos, tradição que Lutero reteve. Para que o ensino fosse facilitado, escreveu hinos, como o que vem a seguir:
1 – Dez mandamentos prescreveu
o Deus Senhor do trono seu.
Moisés, o servo seu – lembrai!
os recebeu no Sinai.
Kyrioleis.
2 – Eu sou teu Deus, e ninguém mais,
em outros não confies jamais.
Somente em mim hás de confiar,
de coração me hás de amar.
Kyrioleis.
3 – O nome de teu Deus Senhor
jamais desonres, por favor!
Não deves reto e bom chamar
exceto o que Deus mandar.
Kyrioleis.
A flexibilidade de liturgia admitida por Lutero, em língua latina e alemã, equivalia a uma igual flexibilidade na música. A missa podia ser toda em latim ou toda em alemão. Podia-se usar um Lied alemão no lugar de um texto latino ou da prosa alemã, que podia vir antes ou depois do sermão. Fosse numa ou em outra língua, o que Lutero estava priorizando era o ensino da Bíblia. Se retinha o latim, era para ensinar. Se propunha novos cantos em alemão, também era para ensinar os menos doutos:
Isto é o que fazemos para treinar os meninos e alunos na Bíblia. Cada dia da semana, antes da leitura acima tratada, eles cantam alguns salmos em latim, como é costume até agora nas matinas. Pois, como dissemos, queremos manter e treinar a juventude na Bíblia e latim. Depois dos salmos, dois ou três meninos lêem, um após o outro, um capítulo em latim do Novo Testamento, dependendo da sua extensão. Outro menino lê então o mesmo capítulo em alemão, para acostumá-los e para o benefício de um leigo que possa estar presente e ouvindo. (…) Após a leitura toda a congregação canta um hino em alemão e se ora um pai-nosso em silêncio.
As novas melodias trabalhadas por Lutero iriam evoluir para o que passou a ser denominado de coral protestante. Em princípio, as técnicas composicionais desse coral diferiam bastante daquelas que, na segunda metade do século XVI, caracterizariam este estilo. Usava-se uma notação não-rítmica, com melodias emprestadas dos Lieder seculares ou com melodias compostas com os mais variados exemplos rítmicos e não-rítmicos, com fermatas nos fins de frases. O tenor era diferenciado das outras vozes, muitas vezes retirado de composições polifônicas da época. Só bem mais tarde o coral protestante tomaria a forma com a qual hoje ele é conhecido, com seu ritmo isométrico e vozes combinadas verticalmente, a melodia identificada de maneira clara com frases separadas por pausas e finais concluídos com cadências harmônicas.
A razão pela qual Lutero incentivou a mescla de tradicional com contemporâneo foi assim analisada por Schalk:
Luther’s orders were offered as suggestions as to how worship might best be carried out. His words were intended as description, not prescription. In these orders two ideas predominate: the desire to retain, as much as possible, the historic practices of the church in order that worship might truly retain its catholic character and thus avoid a sectarian spirit; and the desire to enlarge the involvement of the people as much as possible and appropriate.
Trinta e seis hinos são atribuídos a Lutero. Desses, 12 foram adaptações de material antigo, ou seja, canções rearranjadas em função das exigências da Reforma. Os hinos compostos ou arranjados por Lutero obtiveram sucesso e popularidade porque, entre outras qualidades, vinham ao encontro das necessidades humanas do momento:
He knew what the dumb, blindly yearning German people had been groping for during so many years, and the power of his sermons and poems lay in the fact that they offered a welcome spiritual gift in phrases that went straight to the popular heart. His speech was that of the people – idiomatic, nervous, and penetrating.
Essa aceitação popular também deveu-se ao uso de uma linguagem comum e contemporaneizada, como fez no primeiro hino composto por ele mesmo. Trata-se de um hino que narra o martírio de dois monges agostinianos, acontecido em Bruxelas no ano de 1523. Segundo Martin Dreher, essa composição significou para Lutero a descoberta de sua capacidade poética.
1 – Entoamos uma nova canção/ em nome de Deus nosso Senhor
para cantar o que Deus fez/ para seu louvor e glória
Em Bruxelas, na Neerlândia,/ por meio de dois rapazes,
ele fez conhecido seu poder prodigioso,/os quais com os seus dons
ornou tão ricamente.
2 – O primeiro chama-se significativamente João,/
por ser tão rico das graças de Deus.
Seu irmão Henrique, pelo espírito,/ autênticos cristãos sem faltas.
Partiram deste mundo,/ granjearam a coroa,
como os bravos filhos de Deus/ morreram por sua palavra,
tornaram-se seus mártires.
3 – O velho inimigo mandou prendê-los,/
atemorizou-os longamente com ameaças,
mandou-os arrenegar a palavra de Deus,/
com astúcia também quis neutralizá-los.
Muitos sofistas de Lovaina,/ com sua arte vã.
ele reuniu para esta jogada;
o Espírito os fez imbecis,/ nada puderam conseguir.
4 – Cantaram suave, cantaram azedo,/ tentaram vários ardis.
Os jovens resistiram feito muralhas,/ desprezando os sofistas.
Isto muito irritou o velho inimigo,/ por ter sido vencido
a tal ponto por tais jovens,/ doravante foi tomado pela ira,
e procurou levá-los à fogueira.
5- Roubaram-lhes as vestes conventuais/
tiraram-lhes também a ordenação,/ os jovens estavam prontos para tal,/
e disseram alegremente amém./ Agradeceram a seu Deus e Pai,/
pela perspectiva de se livrarem / da hipocrisia e blasfêmia do diabo,
com os quais, por meio de um jogo falso,/
ele enganava totalmente o mundo.
6 – Isso Deus estabeleceu assim por sua graça,
para que se tornassem verdadeiros sacerdotes,
sacrificando-se a ele ali,
ingressando na ordem cristã.
Morreram totalmente para o mundo,
se despiram da hipocrisia,
entraram no céu livres e puros,
varreram a monjaria
e deixaram aqui a futilidade humana.
7 – Forjaram-lhes um pequeno documento,
mandando que o lessem [publicamente].
Ali assinalaram todos os artigos
de sua fé.
Sua maior heresia teria sido:
deve-se crer apenas em Deus,
o ser humano mente e engana o tempo todo,
nele não se deve confiar.
Por isso tiveram que morrer na fogueira.
8 – Acenderam duas grandes fogueiras,
trouxeram os dois jovens.
Todos se admiraram muito
por desprezarem semelhante tortura.
Com alegria se conformaram,
louvando e cantando a Deus;
o ânimo dos sofistas se encolheu
ante tais novidades
em que Deus assim se manifestou.
8a – Arrependeram-se da brincadeira,
queriam salvar as aparências,
não ousam ufanar-se do ato,
abafam totalmente o caso.
A vergonha lhes rói o coração
e o confessam a seus companheiros,
pois o espírito não pode calar aqui,
o sangue derramado de Abel
tem que denunciar a Caim.
8b – A cinza não pára
de se espalhar por todas as terras,
nada a impede, nenhum arroio, poço, valo nem sepultura.
Ela arrasa com o inimigo.
Aos que em vida
forçou a calar pelo assassinato
ele tem que, depois de mortos,
deixar cantar
muito alegre a plena voz.
9 – Mesmo assim não deixam de suas mentiras
para disfarçar o grande assassinato.
Alegam um pretexto falso,
sua consciência os está incomodando;
mesmo após a morte, os santos de Deus
são por eles caluniados.
Dizem que, na extrema necessidade,
ainda neste mundo, os jovens
teriam voltado atrás.
10 – Deixem-nos continuar mentindo,
isso pouco lhes adianta.
Devemos agradecer a Deus
por sua palavra ter retornado.
O verão está à porta,
o inverno se foi,
as delicadas flores estão brotando,
aquele que o iniciou
certamente o consumará.
Somando-se ao emprego de uma linguagem comum, os hinos da Reforma primaram por enfatizar a mensagem central do movimento, que era a salvação pela graça de Deus, através da fé no ato salvífico de Jesus Cristo, em contraposição à pregação da salvação por esforço próprio:
These hymns are a powerful witness to the great truths which were the corner-stone of the doctrines of the reformed church. They constantly emphasize the principle that salvation comes not through works or sacraments or any human mediation, but only through the merits of Christ and faith in his atoning blood.
Sabe-se que foi através dos cantos que as doutrinas defendidas pelos reformadores foram mais rapidamente disseminadas. Tornou-se conhecida a declaração de um jesuíta, na sua perspectiva católica romana, de que os hinos de Lutero foram mais danosos às almas do que todos os seus livros e sermões.
Ao estudar a conservação e a inovação admitidas por Lutero, conclui-se que as resoluções desse reformador foram tomadas sempre em função daquilo que fosse em benefício da fé e que estivesse centrado na Palavra de Deus:
For Luther, a break with the past could be justified only by the highest of authorities, the word of God. Luther is a strange combination of both faithful continuity and radical discontinuity with the past, a tension that has characterized much of Protestant worship ever since.
Lutero optou por tornar a tradição “evangélica”, sem imposição, antes protestou contra a tendência de regulamentos rígidos para o culto. No seu entender, as transformações sempre deveriam acontecer a partir do interior das pessoas e nunca ditadas por decretos externos. A Palavra de Deus deveria primeiro trabalhar no coração das pessoas para então a fé ser expressa no culto. Nas suas escolhas, Lutero usou adequadamente o conselho do apóstolo Paulo: “Examinai tudo. Retende o bem”.
3.4 – A tensão entre tradição e contemporaneidade na perspectiva de outros reformadores e da Contra-Reforma
3.4.1 – João Calvino (1509-1564)
Com As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, Calvino desejou contribuir com uma obra que pudesse resumir o ponto de vista protestante sobre algumas doutrinas cristãs. Em vista do sucesso obtido com a publicação do primeiro livro, editado em latim e por isso acessível a várias nacionalidades, outras edições foram impressas ora em latim, ora em francês. Além das Institutas, Calvino escreveu sermões, cartas e comentários sobre muitos dos livros da Bíblia. A doutrina central do calvinismo foi a predestinação, explicada por ele da seguinte forma:
Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve em si [por] determinado quê acerca de cada homem quisesse acontecer. Pois, não são criados todos em igual condição; pelo contrário, a uns é preordenada a vida eterna, a outros a danação. Portanto, como criado foi cada qual para um ou outro [desses dois] fins, assim [o] dizemos predestinado ou para a vida, ou para a morte.
Outra ênfase de sua teologia diz respeito à “glória de Deus”, que, para ele, é o objetivo final do plano divino para a salvação da humanidade e ainda de toda atividade humana. A doutrina da providência de Deus também está associada à da “glória de Deus”. A santificação deve acontecer na vida do crente com o intuito de também fazer resplandecer a “glória de Deus”. Isso acontece quando o cristão busca viver estritamente dentro dos padrões divinos revelados na Bíblia e submisso à vontade de Deus. O cristão também deve anelar pela vida futura e viver no mundo como um peregrino (um tipo de “ascetismo mundano”). A doutrina da Ceia do Senhor era explicada em termos de participação no corpo e sangue de Cristo, mas sem a presença física de Cristo, porque o Espírito dele une os fiéis, aqui reunidos, a Cristo no céu. A presença de Cristo, portanto, era admitida na esfera espiritual e não na física, posição que foi expressa na fórmula Finitum non est capax infiniti (“O finito não pode conter o infinito”).
A posição teológica de Calvino influenciou seu ponto de vista em relação a que tipo de música adotar na liturgia. A liturgia, no seu entender, era um meio pelo qual o povo de Deus poderia receber a Sua Palavra. Além disso, por causa da doutrina da eleição, essa “congregação de predestinados” deveria comemorar semanalmente a Eucaristia. Seu modelo espelhava-se na igreja antiga, anterior aos papas, a qual chamava de L’église ancienne des Apostres, des Martis et des saintz. Sua pregação pela “purificação” do rito, que não aceitava os poderes miraculosos da missa e extinguia todas as “abominações papistas”, resultou na rejeição de todo o cerimonial da missa, incluindo aí a música tocada pelo órgão, o latim, os altares, as pinturas e os candelabros:
Julgamos não ser defenso representar-se a Deus por forma visível, porquanto [Ele] próprio o proibiu [Êx 20.4; Dt 5.8] e [aliás,] não se pode fazer sem alguma degradação de Sua glória. E para que não pensem que nesta opinião estamos sós, verificarão quantos hajam de ser-lhes versados nos escritos que todos os escritores sóbrios o hão sempre reprovado. Se, na realidade, nem é defenso representar a Deus por efígie material, muito menos defenso será cultuá-la em lugar de Deus ou a Deus nela.
Na sua opinião, os Salmos representavam o que havia de mais autêntico a ser cantado pelos cristãos:
The psalter was conceived, and always would be considered by him, as an indispensable instrument in his life-long attempt to restore to Christianity the authentic and unaltered worship of the ancient church.
A história de sua vida justifica a maneira como Calvino acabou por permitir que os Salmos fossem aceitos como a única possibilidade de canto na liturgia de sua igreja. Seu ponto de vista seguiu seu pendor teológico e não o gosto estético. Em maio de 1536, em meio a muita confusão em relação ao movimento da Reforma, Calvino decidiu, juntamente com Farel, empreender esforços no sentido de colocar ordem para que a igreja em Genebra pudesse viver um evangelho eficaz. Para atingir esse resultado, Calvino resolveu trabalhar em quatro frentes: na disciplina da excomunhão, principalmente para preservar a integridade da Ceia do Senhor; no ensino para crianças das doutrinas evangélicas, a fim de manter sua pureza; no esboço das ordens para o casamento e na permissão do canto dos Salmos na liturgia.
Sua primeira referência à música se encontra nas Institutas de 1536, mas, até esse ponto, sua preocupação se detinha mais na questão do estado interior da pessoa. Para ele, o verdadeiro culto a Deus seria aquele que brotasse da sinceridade do coração:
Eis o em que consiste a religião pura e real, nisto: fé aliada a sério temor de Deus, assim que o temor não só em si contenha espontânea reverência, mas ainda consigo traga a legítima adoração, qual na Lei se prescreve. E isto se deve mais diligentemente observar: que todos venerem a Deus de maneira vaga e geral, pouquíssimos [O] reverenciam [de verdade], enquanto, por toda parte, grande é a ostentação em cerimônias, rara, porém, a sinceridade de coração.
Nesse documento, Calvino apenas expressou o seu desejo de que a Ceia do Senhor fosse concluída com louvor a Deus. A partir de 1537, sua posição modificou-se. Esse fato foi conseqüência de uma nova visão, visto que a partir de 1536 Calvino assumiu pela primeira vez funções pastorais. Contudo, por causa de fatores sócio-políticos e também teológicos, ele não pôde introduzir as inovações pretendidas, antes teve de buscar refúgio em Estrasburgo. Foi nesse local que viu funcionar a música que sonhava para Genebra. Bucer havia introduzido aí o canto congregacional dos Salmos. Por influência de Bucer, Calvino iniciou a coleta e a escrita de um saltério, com salmos em francês, editado em 1539. Nas Institutas de 1539, Calvino expressou-se de forma diferente daquela de 1536, pois aqui ele recomendava enfaticamente o uso desse canto, fato que iria ser repetido nas edições subseqüentes das Institutas. Tendo regressado a Genebra, encontrou a igreja em más condições, por isso mesmo concluiu que deveria colocar ordem nela através do que ditavam as Escrituras e as práticas da igreja antiga. Para justificar que a música sacra não deveria ser frívola, antes “sóbria e majestosa”, Calvino citava S. Agostinho, que teria usado a mesma expressão em suas obras.
Sua concepção para a música a ser usada na igreja diferia da de Lutero. Este último utilizou recursos antigos do âmbito popular para trazer novidades ao canto da igreja protestante. Já Calvino insistiu num estilo completamente diferente. Ignorando o que havia a sua volta em termos de recursos musicais, optou por criar um estilo livre de todas as influências profanas, que simbolizasse a verdadeira música sacra, concebida unicamente para o louvor a Deus. Para o canto dos Salmos, Calvino mais uma vez enfatizou: que brotasse sinceramente do coração, mas que fosse executado com entendimento e ainda que fosse cantado de memória, para que não ocorresse nenhuma distração por parte daquele que canta. O seu saltério Aulcuns pseaulmes et cantiques mys en chant incorporou aquilo que ele julgou ser o verdadeiro canto sacro: são salmos monofônicos, acrescidos do Decálogo, do Credo e da tradução do Nunc dimittis vertida para o francês pelo próprio Calvino. Foram incluídas também composições de Clement Marot e de autores desconhecidos. Em 1543 ele publicou o Cinquante pseaulmes, e em 1551 surgiu o Pseaumes octantetrois, cujo principal colaborador foi Loys Bourgeois. Em 1562 foi publicado o saltério chamado Saltério Genovês ou Saltério Huguenote, que teve a participação de vários compositores. A música usada pelos calvinistas caracterizava-se por ter melodias expressas ritmicamente por mínimas e semínimas, cada nota com a sua sílaba e linhas melódicas simples. A preocupação de Calvino com a soberania de Deus tornou-o cauteloso com aquilo que podia ser oferecido a Deus no culto. Na sua concepção, somente os Salmos podiam expressar o que de melhor havia para ser oferecido a Deus. No seu entender, a música sacra devia ser simples, porque é expressão de um povo, e modesta, já que é oferecida a Deus. Tais qualidades só poderiam ser atingidas através da música vocal sem acompanhamento instrumental:
Calvin ruled that there should be no music whatever in public worship except what could be sung by all present, and this must be sung in unison without any kind of instrumental accompaniment. He was not the first to talk in this way, but he was the first to do it influentially. Moreover, nothing must be sung which was not literally based on the bible, and this means no hymns – only metrical psalms.
Por entender que a polifonia perturbava a participação do povo na liturgia, Calvino só permitia que ela fosse usada em ambientes domésticos. Em razão do seu radicalismo, nada novo, em termos de música, ocorreu em sua comunidade. Nesse seu zelo para que a música atingisse diretamente as camadas mais simples da sociedade, acabou por produzir apenas um número pequeno de obras, bem escritas, as quais, paradoxalmente, só eram compreendidas pelos mais letrados. Com Calvino, portanto, a música, pensada para ser adotada pelo povo, terminou por se tornar elitizada, de domínio não-popular.
3.4.2 – Ulrico Zwínglio (1484-1531)
Suíço de nascimento, Zwínglio recebeu as primeiras letras de seu tio Bartolomeu Zwínglio, tendo-se matriculado posteriormente como aluno da escola de latim (1494-1496). Dois anos mais no mosteiro de Berna seguidos da Universidade de Viena, onde foi aluno de Conrad Celtis Protucius, prepararam-no como humanista, teólogo e músico muito bem qualificado. No final do ano de 1506, tornou-se padre em Glarus, posição que manteve até 1516. Nessa cidade, abriu uma escola onde lecionava latim e música. Em 1518, tornou-se Leutpriest (padre do povo) em Zurique. No início de seu ministério, mesmo ciente e partidário dos escritos de Lutero, manteve-se cauteloso em relação às mudanças a serem implantadas na igreja em Zurique. Na sua obra De canone missae epicheiresis, de 1522, Zwínglio revisou a missa latina e sugeriu o seu uso numa forma transicional, para não escandalizar os irmãos mais fracos na fé. Nessa revisão, Zwínglio manteve a primeira parte da missa, simplificou as leituras bíblicas e retirou os Próprios para os dias santificados. Embora a missa continuasse a ser em latim, insistiu que as leituras bíblicas e o sermão fossem em língua vernácula. Nesse mesmo ano os diáconos da catedral proibiram qualquer tipo de leitura de missa, proibição só autenticada pelo Conselho da Cidade de Zurique em abril de 1525.
A Reforma em Zurique, porém, havia se iniciado em 1522, com uma violação das leis católicas sobre o comer carne na Quaresma. Zwínglio escreveu um documento onde defendeu a liberdade de escolha de alimentação. O incidente levou-o a esposar o princípio da autoridade escriturística. Assim surgiram seus 36 Artigos. Sua Exposição e Justificação dos Artigos constitui-se no primeiro documento dogmático protestante em língua alemã. Em 1525, as autoridades aboliram o rito romano e concordaram que se introduzisse o novo culto, mas com uma condição: que não houvesse mais a recitação antifonal entre homens e mulheres, hábito inserido por Zwínglio para substituir o canto congregacional. As congregações e mesmo os músicos não eram mais capazes de reproduzir a complexidade das peças polifônicas no nível a que Zwínglio se acostumara em Viena. O seu notável preparo como músico foi atestado por Bernhard Wyss, numa crônica em que narrou a virtuosidade musical desse reformador, que sabia tocar vários instrumentos musicais. A música que Zwínglio encontrou em Zurique girava em torno da igreja e não de uma universidade, fato que, na sua perspectiva, acentuava a decadência do canto sacro. Tudo isso, entretanto, não afetou tanto Zwínglio quanto a terrível praga que assolou a cidade em 1519 e que lhe debilitou a saúde:
That he had come so close to death and yet had been saved by God was the most devastating psychological and religious experience that Zwingli had thus far undergone. He regarded both the illness and his recovery from it wholly in terms of the new religious feelings which had been deepening within him since his days at Einsiedeln. (…). From his illness he emerged triumphant, absolutely dedicated to the task of proclaiming and establishing the cause of the sovereign God, who, through Christ, had delivered him out of death to be His instrument.
Foi muito difundido o poema que Zwínglio compôs para narrar a experiência de sofrimento pela qual havia passado. Esse poema foi musicado para quatro vozes. Três anos mais tarde, paradoxalmente, Zwínglio proibiria todo e qualquer canto na igreja. Para entender a posição “paradoxal” e “retrógada” por parte daquele que foi considerado um músico tão talentoso, faz-se necessário compreender sua posição teológica.
Foi Karlstadt quem levantou, na óptica dos reformadores, a relação entre culto e música. Sua concepção era a de que, a partir da era constantiniana, a igreja havia decaído. O canto gregoriano era uma marca inquestionável dessa decadência. Dada a complexidade técnica para executar o canto gregoriano, a mente humana fazia grande esforço para se concentrar e isso a desviava do genuíno culto a Deus. Para o lugar desse canto decadente, Karlstadt sugeria que os Salmos, em língua vernácula, fossem introduzidos. Zwínglio abordou a mesma questão no documento Interpretação e Substanciação das Conclusões: sua análise levou-o a uma declaração acerca da relação entre culto, música e oração. A visão humanísticas de Erasmo fê-lo crer que a solução para a restauração da igreja medieval encontrava-se na associação do humanismo dos clássicos antigos com o cristianismo moldado pelos ensinos do NT e dos pais da igreja. A teologia da Reforma centrava-se na graça de Deus e na reconciliação da humanidade com Deus através do ato salvífico de Cristo. Excluía, portanto, os esforços humanos empreendidos para a salvação e recusava aceitar o culto na perspectiva de ação sacramental e litúrgica, em que o padre falava em nome de todos a Deus. Zwínglio queria achar uma forma de relacionar a música ao culto sem ir de encontro à sua concepção evangélica. Para tal propósito, absorveu a concepção humanística de Erasmo e atacou o mesmo problema que Karlstadt anteviu, tentando coadunar teologia e música:
(…) Zwingli’s fundamental intellectual and psychological separation from the ecclesiastical environment not only enabled him to criticize it more readily and as a whole, but made it virtually impossible for him to disengage questions of substance from those of form. As a result of his conditioning by the humanist idea of a total program for Christianismus renascens, Zwingli could not entertain thoughts of a spiritual reformation without an institutional and liturgical reformation at the same time.
Na concepção evangélica, a exposição da Palavra tomava o lugar central do culto:
The central theme of the Reformation was the renewal of preaching. For the reformers a sermon meant the interpretation of the word of God that had been publicly read. Faithfulness to the word was the maxim; only the word had value for the congregation. In comparison, all the rest was not only adiaphora, i.e., things that do not matter, but for some of the reformers, even objectionable. The life of the church was to be judged and assessed according to scripture, the only source of faith, the only support for the congregation.
A pregação da Palavra, contudo, estava atrelada à ação do Espírito Santo. A liturgia consistia na pregação da Palavra. Zwínglio a denominava culto de Deus em oposição ao culto do ser humano. Essa era uma dicotomia tipicamente humanística: as leis cerimoniais da igreja versus “a lei de Cristo”:
So the alternative is this: either the Word of God, spoken into our heart by the Spirit of God himself – or the word of man, whether this word of man comes in the form of divine service, official activity, ceremony, sacrament or preaching.
Para entender a razão pela qual Zwínglio excluiu toda sorte de execução musical do culto, precisa-se ter em mente sua concepção teológica de que o culto deveria ser uma expressão do indivíduo para com Deus e não uma expressão da coletividade. O canto congregacional distraía a pessoa de sua comunhão com Deus. A música, para ele, era uma atividade secular e devia ser colocada em plano secundário ao conhecimento da Palavra. As participações musicais de monges e freiras eram tidas como ostentações e hipocrisias. Zwínglio entendia que não existe nenhuma recomendação bíblica para o canto na igreja, a não ser os modelos do Antigo Testamento de Moisés e Ana, que oraram em silêncio, em seus corações. Além disso, a instrução de Cristo era: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, orarás a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”. Quanto à recomendação de Paulo em Ef 5.19 e Cl 3.16, Zwínglio destacava a expressão “…louvando de coração ao Senhor…”, entendendo que o louvor não devia ser com os lábios, como o canto dos cantores judeus, e sim sem qualquer interpretação audível, portanto de coração. Seu entendimento humanístico e a compreensão de que a igreja estava decaída faziam-no recomeçar a história a partir de Cristo e da Palavra.
Zwínglio implantou algo realmente inovador ao abolir a música do culto. Essa atitude foi motivada por sua compreensão teológica de que a música é secular, não havendo base bíblica que sustente a sua aparição audível no culto. Por ser o mais musicalmente preparado dos reformadores, Zwínglio concluiu que a música destinava-se a um público diferente daquele que afluía aos cultos, cujos objetivos certamente também diferiam dos que se reuniam para a adoração a Deus. Para ele, a música contribuía para o prazer pessoal, tanto que era seu costume executá-la em casa. A complexidade do canto gregoriano ajudou-o também a chegar a essa conclusão, pois o empenho dos músicos para executá-lo desviava a sua atenção do foco principal, que era ouvir e entender a Palavra.
A atitude de Zwínglio foi radical, mas foi aceita sem revolta, pois ele havia preparado o povo para isso. Embora drástica, sua posição foi coerente com seu ponto de vista de piedade individual, silenciosa, baseada na interpretação que dava ao texto de Mateus e aos dois versos paulinos. Outrossim, as experiências com o canto coletivo de participação popular em vernáculo, que Lutero estava introduzindo na Alemanha, mal acabavam de ser implantadas. Lutero e Calvino criam que a música era um veículo pelo qual o Espírito Santo de Deus podia se manifestar, como o fez ao usar a harpa de Davi para afastar “o espírito maligno” de Saul. Na concepção de Zwínglio, a música era um elemento secular, para deleite pessoal, e não próprio para a adoração a Deus.
A influência de Zwínglio alastrou-se entre outras pessoas de denominações que acabavam de se estabelecer. No caso dos batistas, por exemplo, o líder John Smith (1570-1612), teólogo que, tendo-se desligado da Igreja Anglicana acabou por fundar a primeira Igreja Batista na Holanda, em 1609, considerava que o verdadeiro culto provinha “do coração”. Em razão disso, a leitura de qualquer documento escrito durante o culto era considerada um ato da invenção humana pecaminosa. Proibiu todo e qualquer uso de livro durante o culto (com esse gesto ele estava reagindo contra o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana). Todas as participações deveriam ser espontâneas, tanto as orações como o canto dos Salmos, o que significava deixar o Espírito Santo agir livremente. Seu zelo foi tão acirrado que até a leitura bíblica durante o culto não era permitida, visto que, segundo Smith, a tradução para o inglês não era propriamente a revelação de Deus. Só no final do século XVII, em 1693, os hinos congregacionais seriam pela primeira vez introduzidos numa igreja protestante livre (além dos Salmos) por um batista, Benjamin Keach, cuja “ousadia” desagradou a 20 irmãos, os quais deixaram a sua congregação.
A origem dos anabatistas é difícil de ser apontada e não está vinculada a nenhum fator político. O mais certo é que se tenham originado dos movimentos espiritualistas da Idade Média, de humanistas evangélicos ou de franciscanos. Muitos saíram das fileiras do movimento de Zwínglio em Zurique e formaram um grupo ultrazeloso que tomava o evangelho como norma de vida não só espiritual, como também social e econômica. Foram dispersos pela Suíça em razão da perseguição das autoridades, por não aceitarem o Batismo de crianças, só o de adultos. Outros vieram como dissidentes de outros grupos protestantes. Dois líderes tomaram o comando da discussão com Zwínglio e Jud a respeito do Batismo de crianças: Jorge Blaurot e Baltasar Hubmaier. O nome anabatista, que significa que rebatiza, decorre da oposição que faziam ao Batismo de crianças. O Batismo dos crentes adultos era o assunto de maior importância para os anabatistas. Criam que esse Batismo estava respaldado pelo testemunho da Bíblia e pela razão. Da mesma maneira como cuidavam atentamente da admissão dos crentes no rol da igreja, zelavam para que só permanecessem nela os que podiam andar segundo as regras das suas principais doutrinas e num alto patamar moral. A Confissão de Fé de Schleitheim foi o documento surgido após a reunião de um grupo de anabatistas, onde expressaram as suas principais doutrinas. A discussão girou em torno de sete assuntos: o Batismo, a excomunhão, a Eucaristia, a separação dos “abomináveis”, a postura dos pastores, a espada e o juramento. O penúltimo parágrafo do documento tratava de alertar os irmãos para serem zelosos a fim de mostrarem uma conduta cristã irrepreensível:
Keep watch on all who do not walk according to the simplicity of the divine truth which is stated in this letter from [the decisions of] our meeting, so that everyone among us will be governed by the rule of the ban and henceforth the entry of false brethren and sisters among us may be prevented.
Por serem muito perseguidos pelas autoridades eclesiásticas locais, viveram à margem da sociedade. Buscaram, então, abrigo na comunhão fraterna:
Wherever these radicals made bold to profess their faith they were met by severe and cruel persecution from the hands of governmental authorities to whom the theologians gave religious rationales. The story of the radical reformation is, therefore, above all one of suffering and martyrdom.
Quiseram estabelecer em Münster, à força de armas, um modelo de vida pobre e religiosa, o chamado “Novo Reino de Sião” ou “Nova Jerusalém”. Nessa cidade, o número de anabatistas cresceu tanto que o grupo se apoderou da cidade, expulsou os católicos, comprou briga com os protestantes moderados, os quais julgava ímpios, e destruiu as esculturas, imagens e todos os demais objetos do culto tradicional. Seus líderes João Matthys e João de Leiden acabaram vencidos pelo bispo e seus soldados, que entraram no reduto, arrasando a comunidade. Com essa vitória, pôs-se fim ao anaBatismo revolucionário.
Quanto à Eucaristia, os anabatistas seguiram em parte o enfoque humanístico de Zwínglio, que criticava a prática eucarística da Igreja Católica Romana. Foram além dele, contudo, pois espiritualizaram tanto o sacramento que julgaram não serem mais necessários o pão e o vinho. A Eucaristia era para os anabatistas apenas “O Memorial do Senhor”, uma celebração da comunidade reunida em nome de Cristo para relembrar o seu sofrimento e a sua morte.
O tipo de programa de culto desenvolvido pelos anabatistas é exemplo das primeiras manifestações litúrgicas das igrejas mais tarde denominadas “livres”. Esse culto estava baseado na liberdade para introduzir qualquer elemento, desde que esse elemento estivesse de acordo com as Escrituras Sagradas. Além disso, a ordem do culto era determinada pela comunidade local. A intervenção do estado nos assuntos eclesiásticos era condenada. Cresceu muito, dentro do movimento anabatista, a função do leigo e especialmente da mulher, que podia liderar tanto quanto qualquer homem. Como fosse difícil determinar claramente quanto da tradição humana estava de acordo com o que as Escrituras falavam acerca do culto a Deus, não houve consenso, entre os anabatistas, sobre o que se podia tolerar na liturgia. De qualquer maneira, o culto das igrejas livres pretendia basear-se tão-somente na autoridade da Bíblia. Como conseqüência dessa liberdade, existiram poucas liturgias publicadas. O culto dos anabatistas, segundo um documento de 1608 proveniente da Holanda, possuía a seguinte ordem: oração, leitura das Escrituras (um ou dois capítulos, seguidos de um breve comentário), oração, sermão (que levava cerca de uma hora para ser exposto), participações faladas dos presentes, oração feita pelo presidente do culto e oferta. A Eucaristia era ocasional. Um culto assim podia levar cerca de quatro horas. A ausência de canto de hinos na maioria dos cultos pode ser justificada em razão da perseguição que o grupo sofria. O canto congregacional era um elemento que facilmente denunciaria o grupo às autoridades governamentais. O documento de Schleitheim, no artigo em que tratava dos deveres dos pastores, explicitou que cabia ao pastor liderar a reunião, lendo e expondo a Bíblia, orando e presidindo a celebração da Ceia do Senhor.
A piedade popular da Idade Média foi revivida no movimento anabatista pela forma como entendia o martírio e como negava a validade das expressões sacramentais visíveis da igreja, as quais substituiu pela adoração interior, espiritualizada. A perspectiva da vinda próxima de Cristo também ajudava os anabatistas a suportar a perseguição e o martírio:
The mystical-spiritual line is also clear. Beside the Scriptures, mystical contemplation is a source of revelation, and this ‘inner light’ clarifies and goes even deeper than the Scriptures. The apocalyptic character was not found everywhere, but it experienced a renewed strengthening in the face of persecutions.
O canto congregacional foi estimulado desde o início, sempre que possível, embora um dos primeiros líderes, Conrad Grebel, defendesse o mesmo pensamento de Zwínglio acerca da música sacra. Ao contrário de Zwínglio, que acabou por proibir o canto nas igrejas, muitos líderes do próprio movimento escreveram hinos para o povo anabatista. Esses hinos, de caráter altamente piedoso, foram coletados em vários hinários, dos quais O Livro de Foxe para os Mártires, de John Foxe, veio a moldar o protestantismo inglês. Entre os líderes do início do movimento, Felix Manz e George Blaurock deixaram um legado na área hinológica, registrado no hinário do século XVI dos anabatistas alemães, o Ausbund. O primeiro contribuiu com apenas um hino que tem 18 estrofes. Blaurock deixou dois hinos, um com 33 estrofes, o outro com 13. Os hinos dos anabatistas eram muitas vezes cantados com músicas populares. Os textos admoestavam os fiéis a perseverarem na fé e a mostrarem essa fé através do amor. A santificação e sua demonstração tanto na vida como na morte também eram temas explorados. Uma das estrofes do hino de Blaurock exemplifica o tema do conforto divino e da vitória na luta:
Forget me not, O Father,
Be near me evermore;
Thy spirit shield and teach me,
That in afflictions great
Thy comfort I may ever prove,
And valiantly may attain
The victory in this fight.
O martírio foi um tema da hinodia adotada pelos anabatistas, sendo muitos hinos compostos na prisão. Esses hinos teriam sido editados clandestinamente em folhetos avulsos e postos em circulação logo após o martírio de algum fiel. Do Ausbund de 1564, de autoria de Jorge Wagner, retirou-se o hino para o Hinário Menonita de língua inglesa. O conteúdo desse hino expõe as doutrinas e preocupações em torno das quais girava a vida do grupo:
He would follow Christ in life
Must scorn the world’s insult and strife
And bear his cross each day,
For this alone leads to the throne;
Christ is the only way.
Christ’s servants follow Him to death
And give their body, life, and breath
On cross and rack and pyre.
As gold is tried and purified,
They stand the test of fire.
Renouncing all, they choose the cross,
And claiming it, count all loss,
E’en home and child and wife.
Forsaking gain, forgetting pain,
They enter into life.
O hino convida o povo a “levar a sua cruz”, a passar pelo sofrimento, e até a entregar a vida à morte, se for preciso, como fez Cristo. O martírio seria uma forma de testar e refinar a fé. O hino quer auxiliar o crente a ser destemido, a enfrentar as vicissitudes e assim caminhar para a eternidade.
Os menonitas da Holanda tinham o hábito de cantar apenas dois hinos nos seus cultos: um na abertura e outro no final, sempre em uníssono, pois, como convinha à sua teologia, a ênfase maior era dada à Palavra. Alguns grupos de anabatistas não cantavam de fato dadas as circunstâncias melindrosas em que viviam, sempre perseguidos. Os primeiros hinários não possuíam notação musical, mas indicavam a melodia na qual o hino seria cantado, de cor, tradição que haveria de passar por inúmeras gerações.
O movimento dos anabatistas logo estendeu-se por toda parte. Uma ala moderada expandiu o movimento pela Europa Central e Oriental, particularmente para a Rússia. Já na primeira metade do século XVII, o anaBatismo foi transplantado para a América do Norte, sob a promessa de paz. Nos séculos XIX e XX alguns emigraram para a América do Sul, onde podiam viver relativamente bem, isolados do resto da sociedade. Os anabatistas deram origem às igrejas batistas independentes, aos huterianos e menonitas, estes últimos conhecidos pelo pacifismo e por sua dedicação ao serviço social.
A Contra-Reforma brotou principalmente na Itália e Espanha, lugares em que os esforços de renovação litúrgica não haviam sido interrompidos pelo cisma da Reforma Protestante e onde já havia sido germinada, antes de o protestantismo irromper, a ideia de uma reforma na Igreja Católica Romana:
Tratava-se de um intento de reformar a vida e os costumes eclesiásticos, de empregar a melhor erudição disponível para purificar a fé e de fomentar a piedade pessoal. Porém tudo isso sem afastar-se nada da ortodoxia, muito pelo contrário. Os santos e sábios da reforma católica, como Isabel, foram puros, devotos e intolerantes.
O início da empreitada deveu-se a Paulo III, que removeu os obstáculos postos pela cúria romana, à convocação do Concílio de Trento, formado justamente para a renovação da igreja, e ao apoio encontrado nas inúmeras Irmandades, entre as quais destacou-se a Sociedade de Jesus. Atendendo ao pedido que Lutero havia feito em seu livro “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão” e após muitas manobras políticas, a igreja em Roma instalou o concílio em 13 de dezembro de 1545. Discutiram sobre questões de fé, questões eclesiásticas internas e problemas da Reforma. Embora não obtivesse a unidade religiosa confessional que buscava, o Concílio conseguiu firmar muitas doutrinas católicas e fortaleceu a constituição eclesiástica. Na sua quarta sessão, ficou prescrito que a base da doutrina cristã estaria firmada não somente nas Sagradas Escrituras, mas sobretudo na tradição oral, entendida como sendo a tradição apostólica. Além disso, repudiou a doutrina da graça, a sola gratia da Reforma para a salvação pessoal, entendendo que o esforço humano é um fator necessário que coopera no processo: a graça de Deus precisa do consentimento por parte do homem e da mulher. Contrariamente às doutrinas protestantes, declarou ainda que a tradução latina da Bíblia, a “Vulgata”, era suficiente em questões dogmáticas, que a tradição tinha a mesma autoridade das Escrituras, que os sacramentos eram sete, que a missa era um sacrifício que podia ser oferecido em favor dos que já haviam morrido e ainda que não havia necessidade de todas as pessoas receberem os elementos da Eucaristia durante a missa.
O Concílio elaborou ainda um programa para a renovação religiosa e moral do clero, uma vez que havia atingido um nível degradante. Também quis abolir as superstições populares. Preocupou-se em preservar a tradição eclesiástica, colocando um ponto final na questão da subjetivização da liturgia. Esse é o motivo pelo qual optou por preservar o latim, língua que fazia parte da tradição. O Concílio de Trento trouxe uniformidade e estabilidade à liturgia. A tarefa foi concluída em 26 de janeiro de 1564, no papado de Pio IV, após inúmeras interrupções.
As declarações conciliares acerca da música sacra foram promulgadas em forma sinóptica em 17 de setembro de 1562. Nesse documento, ficou clarificado que a Igreja Católica Romana haveria de dar continuidade à tradição musical. Essa preservação seria efetuada da seguinte maneira: nas missas em que houvesse canto e acompanhamento, nenhuma música profana poderia ser admitida; só seriam aceitos hinos e “louvores divinos”; o canto não deveria ser inserido para o deleite, antes as palavras deveriam ser claras para serem facilmente entendidas por todos, ideia fundamentada nos humanistas; o canto deveria falar ao coração dos presentes de forma que essas pessoas ansiassem pela “harmonia celestial”. Com essa normatização acerca da música sacra, o Concílio deixou bem claro que iria vigiar ao máximo os acontecimentos vindouros, de maneira que nenhuma música secular fosse admitida no canto da igreja. O Concílio ainda determinou com exatidão quais os cantos litúrgicos que deveriam permanecer. Foram eles: Victimae paschali laudes, para a Páscoa; Sancte Spiritus, para o sétimo domingo depois da Páscoa; Lauda Sion, para o dia de Corpus Christi e Dias irae, um réquiem. Os cardeais sugeriram que a polifonia fosse proibida, razão pela qual o Concílio designou uma comissão para estudar as missas que eram compostas no novo estilo polifônico, uma vez que o significado do texto ficava praticamente incompreensível, o que vinha de encontro às normas decididas. Na iminência da proibição da polifonia, surgiram muitos protestos e pressões de toda parte, os quais conseguiram conter a decisão. O que mais desejava o Concílio, com a promulgação das leis sobre a música sacra, era favorecer sua adequação ao culto. O uso da língua vernácula não foi estimulado. Posto que também não houvesse sido expressamente condenado, o Concílio temia que a liturgia da igreja ocidental tendesse ao vernáculo, como aconteceu à liturgia das igrejas orientais. Mesmo assim, especialmente na Alemanha, Áustria, Suíça, Bélgica e Polônia, proliferaram coleções de cantos em língua vernácula.
A música de Giovanni Perluigi da Palestrina (1525-1594) tornou-se símbolo da música a capela do século XVI. Foi diretor de música em Roma a maior parte da sua vida, a serviço de papas, sendo cantor na capela papal. Junto com Vittoria, Marenzio, os Anérios e os Naninis formou a chamada “Escola de Roma” ou “Escola Palestrina”. Nomearam-no “salvador da música sacra”, porque, com a sua “Missa do Papa Marcelo” teria resguardado a música sacra de retornar ao estágio de canto gregoriano em uníssono. Essa obra não foi inovadora no seu estilo, mas tornou-se modelo por ter sido bem estruturada contrapontisticamente. Conservador, Palestrina evitou o uso de elementos seculares. Seu estilo harmônico cordal serviu de modelo para a música polifônica aceita pelo Concílio de Trento para ser usada na igreja. Porque foi escrita dentro dos padrões ditados pelo Concílio, na música de Palestrina não se observa o texto sendo ofuscado pela linguagem musical. Além do contraponto, que lhe era muito familiar, usou a técnica da imitação e polifonia modal, embora já se pudesse ter uma pálida imagem da técnica do que viria a ser a harmonia tradicional, em virtude da maneira como resolvia as dissonâncias. Com essas características, pode-se afirmar que a música de Palestrina foi tradicional e seguiu os parâmetros convencionais que haviam sido fixados pelas autoridades eclesiásticas. A sua obra sacra consistiu de 104 missas, mais de 375 motetos, 68 ofertórios, 65 hinos, 45 Magnificats e cinco séries de Lamentações. Referindo-se ao tipo de música que Palestrina usava, assim se expressou Routley:
It is simply polyphony written under a voluntary discipline, and emerging with a power which none of his contemporaries ever came to achieving. There is power and passion in Palestrina; there is experience and expressiveness. (…) It is the musical expression of the truth expressed in the phrase “Whose service is perfect freedom”. As maestro compositore Palestrina was set aside by the Church to do this. The Church said in effect, “We will not waste time directing what musicians shall not do. This we regard as great musicians and as religious music. Let Palestrina speak for himself and for us”.
O fundador da “Escola de Veneza” foi o holandês Adrian Willaert (1490-1562), que foi mestre-de-capela da igreja de S. Marcos. Introduziu o hábito do canto antifonal utilizando dois coros. Sua ideia teria vingado a partir da arquitetura da igreja, que possui duas galerias em lados opostos, cada qual com o seu órgão. Renomados músicos foram atraídos para Veneza em razão de o cargo de mestre-de-capela de S. Marcos possuir alto prestígio. Os alunos de Willaert fizeram com que a liderança musical retornasse aos italianos. Andrea Gabrieli (1510-1586) e Giovani Gabrieli (1553-1612), este sobrinho de Andrea, acrescentaram um terceiro coro aos dois de Willaert, aperfeiçoando a técnica. Mas a grande inovação do momento aconteceu graças a Giovani Gabrieli, tido como “the foremost of the founders of modern instrumental art”. Em muitas de suas obras para vários coros, Gabrieli empregou vozes solistas sobre acompanhamentos instrumentais e/ou vocais, aplicando a técnica de coloratura. Em Veneza, o órgão começou a receber uma atenção esmerada e por essa razão deixou-se de atribuir a ele a mera função de acompanhador do canto. A relevância dada ao órgão, como instrumento solista, fez surgir inúmeras composições nos mais variados gêneros da época: canzonas, tocatas, ricercares e fantasias. Gabrieli conseguiu utilizar duas tendências opostas: a tradição da música coral inspirada no estilo de Palestrina e a nova linguagem de composição destinada às apresentações organísticas.
A escola de compositores holandeses floresceu usando o estilo homofônico de Palestrina, em que as vozes moviam-se em blocos de acordes, todos com a mesma duração, sem haver uma voz principal. O estilo era aplicado em hinos e pequenas frases de teor melancólico. Orlando di Lasso (1532-1594), nome italianizado do flamengo Roland de Lattre, foi um dos principais representantes dessa escola e mestre no contraponto. Escreveu obras sacras e seculares. Tendeu a usar um estilo mais popular do que Palestrina, tanto que, em suas missas, observa-se forte influência do estilo secular, principalmente das chansons e dos madrigais. Dentro de suas obras sacras estão incluídos os Lieder alemães. Seu réquiemfoi considerado obra-prima do século XVI, e entre os 516 motetos que escreveu encontram-se alguns salmos polifônicos, escritos já na linguagem musical contemporânea. Lassus e Monte, este mestre-de-capela da capela imperial desde 1568, foram considerados, por seus pares contemporâneos, os mestres por excelência da chamada musica reservata, que era a música escrita para expressar as emoções aludidas pelo texto e que, no barroco, iria-se difundir muitíssimo.
Em face do exposto, ficou evidenciado que a Igreja Católica Romana, através das normas do Concílio de Trento, optou por permanecer fiel à tradição da música litúrgica, tratando de estabelecer as normas que doravante teriam de ser respeitadas em suas diversas paróquias. Das proibições, duas ressaltam: não se pode mais usar técnica musical que venha a obscurecer o entendimento do texto e a música secular deve ser omitida nos círculos eclesiais. A norma foi parcialmente quebrada nos países da Europa central, onde a fiscalização não podia ser mais rigorosa. A inovação mais explícita esteve a cargo de Giovani Gabrieli com a superposição de coros e a escrita organística, que tomou o rumo da arte solística.
Ao terminar o estudo do presente capítulo, constata-se a importância dos líderes para que ou a tradição seja mantida ou novos elementos sejam incorporados. Os líderes são responsáveis diretamente pelos cantos que estão sendo cantados nas igrejas, seja porque são os que os compõem ou porque os escolhem. Também se tornam responsáveis, mesmo que indiretamente, os que ditam as normas para o uso da música na igreja, pois tais normas poderão favorecer uma tendência em detrimento de outra. Quando é que os líderes mantêm uma tradição musical ou quando é que adotam inovações? Para elucidar essa questão, vêm abaixo relacionados os fatores, levantados no presente capítulo, que mostraram ser causadores da manutenção ou da quebra de uma tradição.
Quando optam por manter uma tradição de canto, os líderes estão tentando manter a identidade confessional de sua comunidade. Apegam-se àquilo que vem sendo feito há tempos porque esse elemento é consistente e, na falta dele, sua comunidade perderia características vitais de identificação confessional. O exemplo eloqüente deste capítulo é o movimento da Contra-Reforma. Era importante manter o canto gregoriano e não admitir práticas que o fragilizassem, como, por exemplo, o canto em vernáculo, mesmo porque a Igreja Católica tinha que conservar traços que a distinguissem dos reformadores protestantes.
Os líderes apegam-se à tradição porque desejam instruir o povo com um acervo que julgam eficaz na instrução e educação da juventude. Lutero quis instruir os jovens em diversas línguas, por isso reteve a missa em latim, pois queria treiná-los para atuarem como missionários em regiões estrangeiras.
Os líderes mantiveram a tradição musical, porque temiam a secularização do canto. Quando João XXII promulgou a bula contrária às novas tendências rítmicas que surgiam, o fez preocupado com a possibilidade de que esse modismo fosse “sepultar” de vez os modos eclesiásticos já em voga há bastante tempo. O papa via, nessa nova prática, a profanação do canto sacro, pois a técnica vinha sendo empregada na música secular. Pela mesma razão Calvino determinou que só os Salmos fossem cantados no seu culto: achava que outro tipo de canto era profano e contrário às determinações bíblicas. A Contra-Reforma, que fixou a música de Palestrina como modelo a ser imitado, também cuidou para que o canto se mantivesse livre das interpolações seculares.
A tradição é mantida quando há respaldo teológico para ela. Dentro dos aspectos teológicos, destaque-se a interpretação que Calvino dava à liturgia: era um meio de se aprender a Palavra. Queria que a música viesse do coração, pois, dessa forma, o crente ofereceria a Deus o que de melhor havia. Segundo ele, a melhor forma de cultuar seria com o canto dos Salmos, mas sempre dentro da simplicidade e modéstia apregoadas.
Zwínglio entendeu a questão de modo diferente. Fundamentando-se mais na filosofia humanística, quis conciliar a teologia com a música unindo o humanismo dos clássicos antigos com os ensinamentos do NT e dos pais da igreja. Interpretou existirem duas possibilidades de culto: o culto a Deus e o culto ao ser humano. Era de opinião que toda música era secular, portanto imprópria para o culto a Deus. Julgava que os esforços empreendidos para a execução perfeita da música viriam atrapalhar o verdadeiro sentido do culto, que era a adoração pessoal, feita no coração, sem expressão audível. Por essa razão, num gesto de radicalização, baniu a música de seus cultos.
A grande maioria das inovações que afloram no canto sacro têm fortes ligações com os apelos e as necessidades populares ou com a intervenção direta do próprio povo. Lutero, por exemplo, aproveitou os cantos populares para introduzir a mensagem que desejava transmitir, fixando-se no conselho paulino de examinar todas as coisas e reter o que fosse proveitoso para o enriquecimento da fé cristã. Além disso, porque pregava a tolerância e o amor ao próximo, introduziu as novas práticas cautelosamente. Ele foi sensível às necessidades do momento, retendo da tradição o que julgava próprio para a sua teologia e, ao mesmo tempo, introduzindo as novidades que vinham preencher lacunas, principalmente ênfases reformistas, como a concepção de culto como beneficium e não sacrificium, o que requeria uma participação ativa do povo no culto.
Se foi verificado que a tradição se respalda, muitas vezes, na teologia, pode parecer paradoxal que grande parte das inovações no canto também foram introduzidas justamente pelo fato de os líderes encontrarem aí a fundamentação teológica para as mudanças. O melhor e mais claro exemplo disso vem do próprio Lutero, que baseou todo o canto em duas importantes premissas da Reforma: a primazia dada à Palavra de Deus e o sacerdócio geral de todos os crentes. Tendo a mensagem evangélica em vista, Lutero pôde equilibrar tradição e contemporaneidade de maneira sábia. Reteve a missa em latim para não escandalizar os mais fracos e para dar oportunidade aos jovens de terem contato com a riqueza de outras línguas. Colocou em prática a missa em alemão para que os menos favorecidos pudessem participar mais efetivamente do culto e para que houvesse uma melhor compreensão do evangelho. As inovações tiveram acolhida porque vinham enfatizar novos enfoques teológicos. As letras dos cantos foram muito bem selecionadas e trabalhadas. Dessas observações, depreende-se que praticamente todas as inovações surgem quando líderes sensíveis aos apelos populares e às necessidades contextuais sabem adaptar os fatos às circunstâncias. Em última análise, os cantos contemporâneos têm vínculos profundos com os clamores do povo.
Sensibilidade à convocação popular ou sensibilidade à necessidade de contextualização da mensagem são dois critérios fortes para a introdução de novos cantos ou de nova maneira de se cantar o canto tradicional. Os cantos podem tornar-se bandeiras de um movimento, se estão contextualizados. Isso aconteceu com a Reforma de Lutero e com seus hinos, veículos das novas percepções teológicas. O mesmo ocorreu com os hinos compostos pelos anabatistas. Vieram dar força ao movimento e o fizeram através das mensagens de ânimo e coragem para enfrentarem a perseguição, a prisão e o martírio.
Em resumo, a tradição é mantida quando se quer preservar a identidade confessional, quando se pensa na instrução, quando se quer evitar a profanação e quando se acha respaldo teológico para ela. A tradição tem ligação com uma liderança forte e atenta à preservação da história. As adaptações dos antigos cantos ou a introdução de novos surgem sempre que os líderes estão sensíveis às necessidades do povo e acham a maneira e a hora certas de contextualizarem os cantos. Por outro lado, os novos cantos devem ser acolhidos quando há fundamentação bíblica para tal, principalmente quando se deseja respaldar novos conceitos bíblicos que estão sendo ensinados à comunidade cristã.