A Música na Igreja Adventista – Parte 1.5

Parte1

Capítulo 5º: A Música dos Negros (Análise Teológica)

Que diria alguém que encarasse o “negro spiritual” do ponto de vista religioso ou teológico?

Em 1964, o Dr. Joseph R. Washington, Jr. , publicou uma obra intitulada “Black Religion” (editada pela Beacon Press), na qual dedica uma parte a um estudo profundamente teológico dos “negros spirituals“. Sendo ele Doutor em Teologia Sistemática, não lhe podemos negar a autoridade ao se expressar. Vejamos como escreve em alguns dos parágrafos de sua obra.

“Os ‘Negro Spirituals‘ representam o espírito do ‘invisível instituição’, um espírito nascido de aspiração mas não de fé”.

“Os ‘spirituals‘ jazem fora da fé cristã precisamente porque eram expressões de fervor, fervor religioso mesmo, relacionados a situações de luta que terminaram em 1890.”

“Tem sido argumentado que, dado o movimento independente do negro em religião, não há razão porque ele não pudesse ter desenvolvido uma teologia independente, num sentido profundo, os ‘spirituals‘ eram cânticos de fé, nem cânticos de um crescente corpo de teologia critica”.

“Como uma expressão de religião, em vez de fé, alguns ‘negro spirituals‘ eram cânticos de protesto, numa forma aceitável e tênuemente camuflada, contra as condições desta vida. Como tal, eram cânticos de desafio, revolta e desabafo. Por este prisma o ritmo e as mensagens destes cânticos ‘spirited‘ (excitantes, espirituosos) “ajudavam os escravos a ser religiosamente ou psicologicamente apoiados em suas proezas de coragem – a ser tenazes, resolutos e militantes. Na época atual quando campeiam protestos em massa, os negros têm retornado aos ‘spirituals‘, não como cânticos de fé mas como fontes de apoio excitante. … Os ‘negro spirituals‘ são usados como música para fins específicos nos retiros, são a fonte do ‘jazz‘ e são ocasionalmente usados na formação de um antema. A significação religiosa dos ‘spirituals‘ como cânticos de protesto ou sentimento, em vez de afirmações de credo, identificam estas obras como expressões de religião e não de fé”.

“Os primeiros ‘spirituals‘ seguiam as linhas mestras e efeitos das canções africanas moldadas num ambiente religioso (J.W. e J. R. Johnson, Books of American Negro Spirituals – N. Y. The Viking Press, 1940 – Vol. I, págs. 25-26).Assim como reuniões religiosas eram usadas pelos negros para propósitos que não eram de adoração, também os ‘spirituals‘ projetaram além os interesses de entretenimento do povo branco que apreciava ouvir ‘those darkies singing‘” (“aqueles pretinhos cantando” – extraído de canção popular sulista de Foster). “Nem todos os ‘spirituals‘ estavam preocupados com as coisas do ‘espírito’, embora estivessem preocupados com todas as coisas ‘spirites‘ (“espiritadas”, espirituosas, excitantes).”

“Além do ritmo africano como meio de expressão, há quatro elementos fundamentais sem os quais os ‘negro spirituals‘ não serão completamente compreendidos. Estes quatro elementos são o catalogo dos eventos históricos, as varias formas de protesto, nas reflexões individuais e pessoais, e as expressões de adoração”.

“A perspectiva histórica dá o melhor fundo para a interpretação dos ‘spirituals‘. A música africana era o fio de ligação da história deste povo. Com seu dom de cantar, os africanos foram arrancados de seus laços nativos e plantados nas colônias. A primeira coletânea considerada de cantos de escravos foi divulgada como um autêntico documento do povo negro (M. M. Fisher, Negro Slave Songs in the United States, N. Y. : Cornell University Press, 1953 – , pág. 25-26).”

“Os ‘negro spirituals‘ são a criação dos escravos camponeses, as massas que eram também a ‘invisível instituição’. Após as insurreições da década de 1820, que levou os senhores brancos a abandonarem a visão largamente mantida de que ‘verdadeira religião faz bons senhores e bons escravos’, o culto negro foi prescrito e vigiado. Enquanto os brancos empregavam o culto para doutrinar com moralidade, para mantê-lo ocupado, para espioná-lo e para malograr levantes, o negro estava usando a religião como uma ‘frente’ para atividades subversivas. No frescor da noitada, os ‘negro spirituals‘ serviam a propósito do homem branco tão bem como aos de seus escravos. Ouvindo as palavras religiosas envoltas em ritmos africanos invocadores, supervisores e senhores sabiam que os escravos estavam tanto ‘fiéis’ quanto ‘bobos-alegres’. Cientes da credulidade dos homens brancos no ponto da religião, os escravos os embalavam para dormir enquanto seus irmãos se batiam em demanda à liberdade; às vezes para a liberdade do mundo presente”.

“É largamente conhecido que reuniões campais e de reavivamento, anteriores as insurreições, deram ocasiões para os negros de ajuntarem em massa para ouvir a ‘palavra’, às vezes de Deus, mas geralmente de homem”.

O Dr. Washington, Jr. passa então a relacionar uma série de “spirituals” com experiências concretas e imediatas na vida dos escravos, tanto para fugas, como para convocação secretas; associa “Deep River” ao senso de repatriamento criado pelos porta vozes negros, como Frederic Douglass, Sojourner Truth, Harrist Tubman, e Richar Allen. Associa o Bispo Francis Asbury ao Moisés que os escravos tinham em mente quando cantavam “Go down, Moses” e relaciona a situação difícil dos escravos após a insurreição de Nat Turner com “Oh, What a Mornin When the Stars Begin to Fall“. Para os dias de reconstrução, em situação bem mudada, “Nobody knows the trouble I’ve had“. Os negros excluídos das igrejas de brancos do Norte e do sul, cantavam: “When I get to Heaven goin’ to sing and shout, Nobody there for to turn me out” (Quando eu chegar ao Céu vou cantar e clamar, Ninguém ali me expulsará); para escavar à crueldade dos capatazes os negros achavam vantajoso “Steal away, to Jesus” (Sair “de fininho” para Jesus); Canaã para eles era o Norte, a terra da promissão.

“Deste ponto de vista histórico, os ‘negro spirituals‘ são relatos de eventos significativos na vida dos escravos. Estes acontecimentos não eram vistos como atos formidáveis de Deus; eles eram crônicas de situações que resultaram das aflições e reações humanas – não o juízo de Deus sobre um povo infiel. Por isto, como história ‘secular’, estes acontecimentos representavam um passado ao qual os libertos tentavam sobreviver. Conquanto seja verdade que muitos destes ‘spirituals‘ podiam ser usados no culto, não o foram após 1890. No fim do séc. XIX e através de XX os ‘negro spirituals‘ permaneciam sem significação e relevância, tão pouco inspiraram fé aos negros protestantes independentes que eram os descendentes diretos e herdeiros dos trabalhadores camponeses que os produziram”.

“O protesto dos ‘spirituals‘ existia para prover escape de circunstancias desesperadoras. O Deus que os missionários revelaram não estava interessado em liberdade e igualdade, como era o Deus dos pregadores negros”.

Falando sobre as expressões profundamente particulares e freqüentemente individualistas dos ‘spirituals‘, ele declara:

“Os ‘spirituals‘ eram de real vitalidade somente para o individuo ou grupo que passavam pela prova de fogo da qual eles eram forjados”.

“Nós temos visto que o negro não procurou a religião dos cristãos. Ele foi acercado e quase coagido para a religião dos missionários protestantes brancos”… “que interpretavam o evangelho segundo a situação como eles o escolhiam compreender. Esta ‘comédia de erros’ foi tão repetida e impressionante que levou os negros à falsa conclusão de que a religião de sentimentos e compensações é a fé cristã. Os reavivamentistas lançaram mão do negro indefeso em seu impressionante estado de ignorância, prejudicando de forma permanente a oportunidade dos escravos e seus descendentes de participarem ou dos frutos da religião cristã ou da fé cristã. As moralidades dominantes do período eram disfarçadas em termos de ‘fé, esperança e amor'”.

“Os ‘spirituals‘, como vimos, não foram forjados fora da fé cristã mas foram formados pelos ‘ferros em brasa’ dos cristãos brancos que não eram capazes de escolher entre sua lealdade a Deus e a Mamom”.

“O que brota dos ‘spirituals‘ é principalmente um conto de como os escravos se revoltaram, responderam aos movimentos de colonização, tornaram-se pacíficos, e finalmente colocaram suas esperanças no mundo além como recurso final (Fisher, pág. 183)” afirma, quando chama a atenção aos temas do Velho Testamento nos “spirituals“.

“Os ‘spirituals‘ concernentes à Crucificação e à Ressurreição – centro da fé cristã – tendem a ser literalmente proposições de descrição, mais do que de afirmações dos fiéis, freqüentemente entremeados com temas de retraimento”.

“Raramente o tema da liberdade entra nos ‘spirituals‘, mas quando um ‘spiritual‘ fala da liberdade, esta está fora do contexto da fé cristã”.

“A distinção entre os ‘spirituals‘ serem forjados de materiais apresentados por cristãos e forjados da fé cristã só essencial a uma compreensão da mente do negro”.

“Entretanto, a pretensão da origem cristã para estes cânticos é mais uma acusação do que uma fonte de orgulho para os protestantes. O puro conteúdo destas expressões religiosas dissipa toda a dúvida sobre qualidade de proselitismo entre os escravos. Quando os oradores negros contra-atacavam com as Boas Novas de liberdade, os escravos fugiam das igrejas, e quando os lideres negros se apresentaram perante os seus com o convite ao orgulho próprio logo após a Guerra Civil, os negros deixaram em bandos a comunidade dos brancos”.

…”A ideia de que eles poderiam desenvolver um protestantismo independente cai por seu próprio peso – por duas razões: porque o protestantismo não é racial na sua intenção, mesmo que o possa ser na pratica, e porque os ‘negro spirituals‘ eram documentos históricos, expressões de protesto, bem como interpretações poéticas de uma época e lugar peculiares”.

“Finalmente, os ‘spirituals‘ religiosos ou orientados para o culto eram essencialmente individualísticos, a chave para a religião do negro e um sinal de que as organizações religiosas do negro têm ainda que aprender a participar e contribuir para uma abarcante comunidade de fé. Os assim chamados ‘spirituals‘ religiosos, então, eram criações de estetas religiosos e não de interpretes teológicos”.

“Os ‘negro spirituals‘ eram uma critica aos missionários, reavivamentistas, evangelistas, e de todo o bloco protestante que estava entusiasmado a expulsar o diabo do negro mas que se tornou para o negro, no sentido teológico ou bíblico mais profundo, o próprio diabo. Os ‘negro spirituals‘ também são úteis na compreensão do porque, quando o negro respondeu à exclusão pelas mesmas forças protestantes que o ‘salvariam’ através do desenvolvimento de um pseudo-protestantismo baseado na raça, não ter havido base para se nutrir na fé cristã. No séc. XX, quando o protestantismo começou seriamente a recuperar a fé cristã histórica, a religião do negro foi frustrada na busca de liberdade que seus ancestrais escravos julgaram ter alcançado em sua fuga para a liberdade”.

Todos estes conceitos foram divulgados pela “The Hymn Society of América, N. Y.”, editora do periódico “The Hymn” em outubro de 64 vol. 15, nº 4, de onde os transcrevemos.

Apesar de acharmos que o Dr. Washington, Jr. Possa ter exagerado um pouco numa ou outra expressão, temos que admitir que, com desassombro, grandes verdades foram enunciadas.

Ora, usamos estas autoridades históricas e teológicas para recompor a situação da música sacra contada à época em que nossa Igreja surgiu na América. Em que teriam estas correntes influenciado nossos primeiros hinos e cânticos, quando os primeiros adventistas os cantavam?


Capítulo 6º

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