por: Roseli Schünemann
RESUMO: Resultado de minuciosa investigação na área de canto, aliada à observação acurada junto a cantores e a alunos de canto, o presente artigo sistematiza as características qualitativas que identificam as diferentes vozes nas mais variadas categorias com suas subdivisões, abrangendo, uma a uma, das mais agudas às mais graves, a fim de facilitar o complexo processo de classificação vocal. Os objetivos deste trabalho foram preencher a lacuna existente na literatura específica em português sobre este tema, bem como divulgar informações úteis a professores, cantores, estudantes de canto e demais interessados na tipologia vocal atualmente em vigor.
O presente artigo baseia-se nas obras de Sonky,1 Labarraque,2 Wicart,3 Canuyt,4 Kloiber,5 Bastos6 e Teixeira,7 de onde foram extraídas as características de cada tipo vocal.
A época em que estes autores desenvolveram suas pesquisas pode sugerir que estes estejam ultrapassados. No entanto, na literatura pertinente atual de que se tem conhecimento, não há pesquisa alguma que conteste os achados e as afirmações dos autores em questão.
Por exemplo: Lauri-Volpi,8 o tenor da voz eterna, analisa com objetividade cantores dos séculos XIX e XX, realçando suas qualidades canoras e interpretativas num paralelismo traçado entre dois expoentes de cada categoria vocal. Celletti,9 por sua vez, fornece “exemplos em disco” dos diversos tipos vocais. Estes autores não entram nos detalhes da distinção das vozes dos cantores por eles citados.
Desse modo, o meticuloso estudo feito até agora permite que se estabeleçam diretrizes didático-pedagógicas de diferenciação vocal.
Menciona-se, abaixo, uma listagem, por ordem, das vozes mais agudas às mais graves, de utilidade a professores, cantores, estudantes de canto, quer como fonte de indagação a novas buscas, quer como guia para uma melhor caracterização da tipologia vocal em vigor atualmente.
Soprano ligeiro: voz produzida em órgão vocal de pequenas dimensões, por cordas vocais curtas, estreitas e delgadas. É a voz feminina mais aguda, que enfrenta, com segurança, as notas agudas e superagudas. Tem timbre cristalino e um tanto juvenil, e é dotada de leveza, agilidade e facilidade para vocalizar e executar os ornamentos canoros tradicionais – destacados, trinados, apogiaturas, grupetos, cadências e cromatismos. Própria de cantores de temperamento alegre e jovial, cuja mente tenha, no dizer de Teixeira, “o senso da leveza, da rapidez, da agilidade”.10
Soprano lírico: voz produzida em órgão vocal pequeno, por cordas vocais curtas, porém mais espessas: aguda, clara e brilhante, de timbre doce e quente, capaz de inúmeros matizes expressivos, mais intensa e potente que a precedente, com bela sonoridade nas notas médias e semi-agudas. É considerada a mais comum das vozes femininas e, conforme Bastos é, também, a “mais feminina das vozes”. Exige temperamento romântico, próprio para as linhas suaves.11
Soprano dramático: voz própria de mulheres com ressoadores bem desenvolvidos, produzida por cordas vocais musculosas. É voz intensa, volumosa e ampla, pouco flexível, própria para inflexões enérgicas e poderosas. Sua beleza máxima é obtida nos registros médio e alto. A verdadeira voz de soprano dramático, não ampliada artificialmente, é rara; daí a razão de ocorrerem freqüentes erros de classificação. É também chamada de soprano forte. Alia amplitude, riqueza de timbre e extensão vocal. Voz própria para ópera, menos flexível que a do soprano lírico, de timbre quente e encantador.
Soprano Spinto ou de meio-caráter: voz produzida por órgão vocal mediano, por cordas vocais musculosas, ressoadores desenvolvidos. É redonda, de timbre brilhante, menos potente que a do soprano dramático, porém bela nos agudos e cheia nos médios e graves. Segundo Canuyt,12 o soprano demi-caractère é encontrado com grande freqüência. Exige temperamento apaixonado e grande força expressiva.
Meio-soprano: voz produzida em laringe de proporções medianas e cordas vocais mais longas e mais espessas que as do soprano. Caracteriza-se pela sonoridade mais volumosa, brilhante especialmente nas notas médias. Os agudos são mais opacos, porém os graves são mais ricos e cheios que os do soprano. Seu timbre pastoso e quente por natureza é muito agradável ao ouvido. Essa voz aproxima-se, às vezes, à do soprano dramático ou à do contralto. Não tem, porém, a tessitura do soprano dramático nem a força expressiva do registro grave do contralto. Erros de classificação são muito freqüentes nesta categoria vocal, devido ao engrossamento artificial das notas graves dos sopranos pela dificuldade de obter agudos brilhantes e volumosos.
Contralto: voz ampla, vibrante, vigorosa, expressiva e enérgica, caracterizada pela amplitude dos graves, sonoros, volumosos e brilhantes. É produzida por cordas vocais resistentes e de grandes dimensões. Presta-se ao gênero dramático por seu timbre aveludado que seduz, encanta e comove. É a voz feminina mais grave e mais rara.
Tenor ligeiro: voz de timbre suave, não muito volumosa, com agudos claros e fáceis e dotada de grande aptidão para os vocalizes e ornamentações acrobáticas, produzida por cordas curtas, estreitas e delgadas e órgão delicado e de pequenas proporções. Essa voz suave, cheia de encantos tem poder para acentuar as nuanças de estilo, graças à leveza, agilidade e flexibilidade de que é dotada. Na opinião de Teixeira, “o tenor ligeiro ideal é aquele que tem a tendência psicológica de acordo com a voz que possui”.13
Tenor lírico ou de ópera: voz de timbre redondo e de notável ressonância nos agudos, mais potente que a do tenor ligeiro, porém menos ágil e leve, produzida por cordas vocais mais robustas e mais espessas que as do tenor ligeiro, alojadas num órgão vocal mais resistente e ressoadores mais amplos. Presta-se, também, para executar passagens ornamentadas.
Tenor dramático: também chamado tenor forte: voz vigorosa, que se caracterizada pela potência, volume e amplitude. É produzida por cordas vocais musculosas e resistentes, um pouco mais espessas que as do meio-caráter, porém um pouco mais curtas que as deste, alojadas em laringe de porte arredondado. Apresenta o máximo vigor e beleza vocal nos tons médios. Embora Labarraque mencione a falta de “flexibilidade e leveza na articulação”,14 o tenor dramático impressiona, no dizer de Teixeira, pela “potência de suas modulações”.15
Tenor spinto ou meio-caráter: como o próprio nome indica, é voz com características lírico-dramáticas; seus agudos são menos brilhantes e fáceis que os do lírico e sua voz menos volumosa que a do dramático, porém mais flexível. Encanta por seu timbre redondo e envolvente. Possui cordas vocais mais espessas, porém de comprimento e largura semelhantes às do tenor dramático.
Barítono agudo: também chamado brilhante, de ópera cômica, tipo Verdi ou Martin: voz que se caracteriza pela facilidade, clareza, agilidade e potência. Apresenta o máximo de sonoridade nas notas centrais e de brilho nos agudos. O tipo Verdi abrange o repertório verdiano com facilidade, atingindo o Sol ou o Lá 3. Suas cordas vocais são do mesmo comprimento que as do tipo Martin, porém mais espessas e mais largas. Sua laringe, maior que o do tenor dramático, é igualmente arredondado. O tipo Martin apresenta grande extensão para o agudo, podendo atingir o Dó 4. Às vezes, é confundido com o tenor dramático, pela tendência tenorizante no setor agudo da voz, mas pode-se identificá-lo pelo timbre baritonal que conserva sempre nas notas médias. Possui cordas vocais um pouco mais longas, porém mais estreitas e mais delgadas que as do tenor spinto e uma laringe mais oval.
Barítono de ópera cômica: voz que se caracteriza pela clareza, agilidade, versatilidade e presença. Seus agudos são bem timbrados, porém os graves são pouco vigorosos. Tipo difícil de definir e do qual a arte consiste mais na ação cômica que no canto.
Barítono grave: também chamado dramático, de Grande Ópera, ou, ainda, barítonobaixo: aproxima-se do baixo-cantante nos sons graves, porém seu timbre é mais vibrante e claro. Dotado de potência nos graves, possui volume considerável em toda a extensão. Possui cordas vocais musculosas e laringe mais alongado que o barítono verdiano.
Baixo-cantante: voz forte, vibrante e sonora, cujo máximo esplendor está na região média-alta, de onde obtém os mais belos efeitos, com leveza e flexibilidade. Suas cordas vocais são largas e espessas, porém não mais longas que as do barítono grave e sua laringe é menos arredondado.
Baixo-profundo ou nobre: voz volumosa, ampla, profunda, austera, pesada e pouco maleável, que se caracteriza pela sonoridade e amplitude das notas graves. O baixoprofundo possui um órgão vocal igualmente raro, alongado em elipse; suas cordas vocais são longas, mas não espessas.
Baixo cômico ou bufo: voz com facilidade para a agilidade, aproximando-se do baixo cantante. Muito em voga nas óperas cômicas italianas (Pergolesi, Rossini, Donizetti etc.), que exigem do intérprete, além da voz, o talento de comediante, transformando-o em “atorcantor”. Outros tipos de vozes, com intérpretes cada vez menos freqüentes, são considerados criações de alguns países:
Tenor wagneriano: também chamado de tenor heróico ou Heldentenor: voz muito especial, que alia potência, sonoridade e grande resistência vocal a um timbre imponente, capaz de matizes de suavidade extrema. Voz pesada, volumosa, trágica nos médios e baritonal nos graves. É, no dizer de Kloiber, um tenor-barítono.16 Possui cordas vocais longas, mas não espessas e largas; sua glote é de aspecto alongado.
A voz de meio-soprano pode, dependendo do caráter, receber duas subdivisões:
Meio-soprano Dugazon: voz de meio-soprano capaz de vocalizar com leveza e agilidade, produzida por cordas vocais mais longas que as do soprano dramático, porém mais delgadas e um pouco mais largas, numa laringe mais alongada. A denominação foi dada em homenagem à cantora Rose Léfèvre Dugazon, que se tornou notável por sua graça, sensibilidade e agilidade vocal.
Meio-soprano Falcon: voz muito extensa, potente e homogênea, proveniente de cordas vocais mais largas, longas e espessas, e laringe mais arredondado. Marie Cornelle Falcon, cantora dotada de raro talento musical, lhe deu o nome.
Alguns autores, como, por exemplo, Silva, citam o meio-soprano Galli-Marié e o baixo Lablache que, como outras denominações, reverenciam e perpetuam o nome das celebridades de que provieram.17
Labarraque distingue o soprano de opereta, de ópera cômica, o meio-contralto e a fort chanteuse:18
Soprano de opereta: voz de timbre cristalino e claro, com alguns agudos brilhantes, cujos médios são um pouco destimbrados e sem graves, dotada de grande leveza, excelente alcance vocal e boa articulação.
Soprano de ópera cômica: soprano que possui muita facilidade no agudo, que é redondo e bem timbrado. Voz muito potente na tessitura média, onde consegue melhor articulação. Essa voz, como disse Labarraque,19 “deve brilhar mais pelo seu charme que por sua expressão”, apesar de que estas duas qualidades podem muito bem coexistir.
Meio-contralto: segundo o autor supracitado, essa voz é mais freqüente que a de contralto, menos extensa no limite inferior, porém de tessitura média ampla e redonda, caracterizada pela facilidade, beleza e leveza de emissão.
Fort chanteuse: instalada entre mezzos e sopranos, é assim caracterizada: voz bem timbrada no grave, cujos médios são amplos e redondos, de agudos poderosos e amplos, às vezes muito metálicos, um pouco desagradáveis nos sons fortes; voz pesada, de articulação mais difícil principalmente no registro agudo, imprópria para as pequenas salas.
Kloiber, no seu Handbuch der Oper,20 registra, ainda, alguns tipos vocais atualmente usados na Alemanha para a divisão dos “papéis”:
Soubrette (soprano cômico): voz delicada, porém metálica, própria para canções ligeiras. Extensão: Dó 3 – Dó 5.
Spieltenor (tenor cômico): voz elegante, aguda, ágil e metálica, de muito sucesso nas pessoas de âmago agradável, extrovertidas. Voz que se caracteriza pelo charme. Extensão: Dó 2 – Si 3.
Kavalierbariton (barítono cavalheiro): voz metálica, potente, de cor nobre e muita presença, própria para peças líricas e dramáticas. Extensão: Lá 1 – Sol 3.
Seriöser Bass (baixo sério grave): voz pastosa, de timbre escuro, graves profundos e possantes. Também chamada de baixo negro. Extensão: Ré 1 – Fá 3.
Em que pese haver superposições ocasionais entre algumas das categorias vocais mencionadas, preferiu-se manter a relação apresentada na forma pela qual foi proposta pelos seus autores, de modo a reforçar as sutilezas das diferenças entre as várias categorias encontradas, para se poder enquadrar cada cantor na classificação mais adequada possível.
Referências
BASTOS, Maria Amélia Balbi de. Los buenos preceptos del Canto. Lima: Medica Peruana, s. d.
CANUYT, Georges. La voz. 7. ed. Buenos Aires: Libreria Hachette, 1958.
CELLETTI, Rodolfo. Il Canto. Storia e tecnica, stile e interpretazione dal “recitar cantando” a oggi.
Itália: Garzanti, 1989.
KLOIBER, Rudolf. Handbuch der Oper. 2. ed. München: dtv Bärinreiter-Kassel, 1978. v. 2.
LABARRAQUE, Lineo. Technique vocal et hygiene de la voix. Paris: Vigot, 1926.
LAURI-VOLPI, Giacomo. Voces paralelas. Madrid: Labor, 1974.
SONKY, S. Theorie de la pose de voix. 6. ed. Paris: Fleischbacher, 1911.
TEIXEIRA, Sylvio Bueno. Estudos sobre a voz cantada. São Paulo: A. P. Ed., 1970.
WICART, Alexis. Le chanteur. Paris: Desfossées, 1931. t. 1.
Roseli Schünemann é Mestre em Canto. Professora da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, das disciplinas: Canto, Dicção Lírica, Música de Câmara, Técnicas do Ensino. Atua, ainda, como Supervisora de Estágio dos Cantores e como Orientadora de Monografias nos Cursos de Especialização na Área de Música na EMBAP.
Bibliografia:
1 – SONKY, S. Theorie de la pose de voix. 6. ed. Paris: Fleischbacher, 1911. p. 72-73.
2 – LABARRAQUE, Lineo. Technique vocal et hygiene de la voix. Paris: Vigot, 1926. p. 80-83.
3 – WICART, Alexis. Le chanteur. Paris: Desfossées, 1931. t. 1. p. 319-327.
4 – CANUYT, Georges. La voz. 7. ed. Buenos Aires: Libreria Hachette, 1958. p. 132-138.
5 – KLOIBER, Rudolf. Handbuch der Oper. 2. ed. München: dtv Bärinreiter-Kassel, 1978. v. 2. p. 25-43.
6 – BASTOS, Maria Amélia Balbi de. Los buenos preceptos del Canto. Lima: Medica Peruana, s. d. p. 31-43.
7 – TEIXEIRA, Sylvio Bueno. Estudos sobre a voz cantada. São Paulo: A. P. Ed., 1970. p. 25-43.
8 – LAURI-VOLPI, Giacomo. Voces paralelas. Madrid: Labor, 1974.
9 – CELLETTI, Rodolfo. Il Canto. Storia e tecnica, stile e interpretazione dal “recitar cantando” a oggi. Itália: Garzanti, 1989.
10 – TEIXEIRA. Op. cit., p. 26.
11 – BASTOS. Op. cit., p. 42.
12 – CANUYT. Op. cit., p. 136.
13 – TEIXEIRA. Op. cit., p. 33.
14 – LABARRAQUE. Op. cit., p. 81.
15 – TEIXEIRA. Op. cit., p. 37.
16 – KLOIBER. Op. cit., p. 759.
17 – SILVA. Op. cit., p.113.
18 – LABARRAQUE. Op. cit., p. 82-83.
19 – LABARRAQUE. Op. cit.,
20 – KLOIBER. Op. cit., p. 758-760.
Fonte: Anais do III Fórum de Pesquisa Científica em Arte – Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005
Endereço: Embap (Escola de Música e Belas Artes do Paraná.) – Curitiba