por: Ericsson, Krampe & Tesch-Römer
Vestibulares e outras provas de seleção tentam identificar as pessoas mais aptas a ter sucesso em sua área, mas ser aprovado não é uma garantia de sucesso. Assim como nem todos os calouros conseguem concluir a faculdade, nem todos os estudantes que conseguem entrar para o renomado Conservatório de Música de Berlin têm uma vaga garantida nas melhores orquestras. O que faz a diferença? Alguns atribuem o desempenho excepcional a um “talento inato”; outros preferem acreditar que é uma questão de “prática e dedicação”. Como resolver a questão?
Partidários da teoria de que “talento é 100% suor”, três cientistas alemães do Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano, em Berlin, resolveram investigar a importância da prática no desempenho de musicistas – ou mais exatamente de estudantes de violino, a especialidade do Conservatório de Berlin. Contando com a ajuda dos professores do Conservatório, a equipe identificou os melhores alunos (aqueles que têm tudo para se tornarem solistas), os bons violinistas (que provavelmente tocarão em boas orquestras), e violinistas da escola preparatória de professores, outro departamento do Conservatório, onde nem o ensino nem as exigências são tão puxados. Uma análise do grau de sucesso dos alunos em competições abertas confirmou a classificação feita pelos professores: segundo o júri, os “melhores alunos” de fato tinham melhor desempenho.
O estudo contou unicamente com informações fornecidas pelos alunos. Em entrevistas, eles fizeram uma estimativa do número de horas de prática por semana em idades diferentes, desde que haviam começado a tocar violino, e comentaram sua história com o instrumento. Se por um lado essas informações permitem analisar dados do passado dos estudantes, contar somente com elas poderia ser um problema se os estudantes fossem, digamos, “otimistas” demais em suas estimativas de dados como o tempo dedicado diariamente ao instrumento. Para determinar se essas estimativas eram boas, os pesquisadores pediram mais tarde que os alunos anotassem em diários, ao longo de uma semana inteira, suas atividades durante o dia, incluindo o número de horas de prática com o instrumento, e seus hábitos de sono e lazer. A comparação com os dados dos diários mostrou que as estimativas dos alunos pareciam bastante boas.
Os estudantes, independentemente do grau de excelência, tinham várias coisas em comum. Todos tinham passados semelhantes, por exemplo: começaram a tocar e a ter aulas regulares aproximadamente aos oito anos de idade, e aos quinze decidiram tornar-se violinistas. Na época do estudo, todos já acumulavam mais de dez anos de prática com o instrumento – tempo que alguns especialistas consideram o mínimo de experiência necessária para se atingir um nível excepcional de performance em áreas tão diferentes quanto o xadrez, a execução musical, a composição, e a literatura. Todos davam igual valor à prática, e apreciavam tocar informalmente, sozinhos ou em grupos, para sua própria diversão.
As diferenças começam no regime de prática. Enquanto os futuros professores de violino treinavam apenas nove horas por semana, bons e excelentes estudantes treinavam muito mais – uma média de 24 horas por semana, ou três horas e meia por dia. Todos praticavam em sessões de não mais de uma hora e meia, mas enquanto os futuros professores não mostravam preferência de horário para a prática, os outros estudantes concentravam os estudos entre dez da manhã e duas da tarde.
Além de praticarem mais, bons e excelentes estudantes também dormiam mais durante a semana – umas seis horas a mais do que as 54 horas semanais dos futuros professores. Parte dessas horas extras de sono aconteciam durante uma sesta no começo da tarde, logo depois do almoço, após a prática matinal. Em comparação, futuros professores não dormiam quase nada fora do sono noturno.
Se isso fosse tudo, o menor desempenho dos futuros professores poderia de fato ser explicado pelo menor tempo de prática e talvez de sono – mas bons e excelentes estudantes deveriam ter exatamente o mesmo nível de desempenho. E isso não é o caso, como mostram os resultados das competições abertas onde eles se inscrevem.
O fator mais determinante do desempenho de todos os estudantes parece ser o número de horas de prática acumuladas ao longo dos anos. Na estimativa de cada aluno, o tempo de prática sobe gradualmente de menos de cinco horas semanais aos oito anos até as nove ou mais de vinte horas aos vinte anos de idade, já no Conservatório, sendo que em torno dos doze anos de idade, o número de horas de prática passa a aumentar mais rapidamente, o que possivelmente já corresponde a um compromisso de maior dedicação por parte das crianças. Somando o número de horas acumuladas ao longo dos anos, aos poucos os futuros melhores estudantes vão se destacando dos bons e dos futuros futuros professores. Aos quatorze anos, um ano antes da decisão de se tornarem violinistas profissionais, as diferenças nas horas de prática acumuladas entre os três grupos já são evidentes.
Tudo indica portanto que é durante a adolescência, anos antes dos estudantes entrarem para o Conservatório de Música, que ocorre a separação entre futuros bons, regulares e ótimos violinistas. Aos 18 anos, quando ingressaram no Conservatório, as diferenças já eram mais do que óbvias. Os alunos mais tarde identificados como os melhores já haviam acumulado mais de 7.000 horas de prática – número semelhante à estimativa feita por violinistas profissionais da Orquestra Sinfônia da Rádio de Berlin para quando tinham a mesma idade. Em comparação, bons alunos acumulavam pouco mais de 5.000 horas de prática, e os futuros professores de violino acumulavam apenas umas 3.000 horas de prática. Os anos de estudo e prática no Conservatório, assim, não fariam mais do que exacerbar uma tendência que já fora estabelecida.
Na opinião dos autores do estudo, a prática explica perfeitamente bem o desempenho até mesmo nos casos dos virtuosos, sendo desnecessário invocar um “talento” inato para o que essas pessoas alcançam. E no entanto parece tão evidente que algumas pessoas têm mais talento do que outras! O que é o talento, afinal? Se de fato é a prática que define o desempenho, o talento poderia ser… a motivação para perseverar na prática. Uns preferem futebol, e serão capazes de passar horas correndo atrás de uma bola; outros preferem escrever, desenhar, ou dedilhar um violino. O que parece uma definição bastante simpática de talento na verdade só empurra a questão mais para adiante: o que faz com que uns prefiram a bola e outros a música?
Os pais, talvez, ou pelo que eles fazem e encorajam em seus filhos, ou também pelos seus genes. Mozart tinha pai músico, por exemplo. Mas talvez os bons genes, também: por isso, segundo o “Argumento de Mozart”, “não dá para você virar um Mozart só com trabalho duro”.
Agora, se você discorda e acha que tem motivação suficiente para se tornar um Mozart, vamos aos números. Para quem começa cedo, lá para os cinco anos de idade, dá para começar com umas duas horas por semana e ir aumentando aos poucos, chegando a uma hora por dia aos 12 anos, duas horas por dia aos quinze… o que dá para levar junto com a escola, as brincadeiras, o sono e a televisão.
Mas para quem começa tarde e decide somente aos 15 anos se tornar um virtuoso, o futuro é um pouco mais sombrio. Só para alcançar a marca das sete mil horas de prática aos 18 anos, quando você precisaria optar por uma carreira, seria preciso treinar… seis horas e meia por dia, quase duas vezes mais do que treinam os melhores alunos do Conservatório. Treinando em sessões de não mais de 90 minutos, com intervalos de uma hora, seria preciso ficar de 8 da manhã às 6 da tarde por conta do violino. Ou seja: não fazer mais nada, nem ir à escola. Colocando a coisa desse jeito dá para entender porque todos os concertistas têm em comum terem começado a treinar desde criança. Ou é assim ou não dá…
E para quem começa aos 30 e pode treinar uma hora por dia, o que parece mais viável: quanto tempo levaria para virar um Paganini? Somando sete horas por semana, seriam necessárias mil semanas de treino para se tornar tão promissor quanto os melhores estudantes do Conservatório de Berlin. Se parece razoável, eis uma má notícia: mil semanas correspondem ao módico período de… vinte anos. Mas se até lá você não tiver desistido, irei a seus concertos com grande prazer!
Fonte: Ericsson KA, Krampe RTh & Tesch-Römer C (1993). The role of deliberate practice in the acquisition of expert performance. Psychol Rev 100, 363-406.
Publicado em: Cérebro Nosso