Os Superagudos nos Instrumentos de Metal – I O caminho para as Alturas

por: Angelino Bozzini

Estamos iniciando um novo milênio levando na bagagem um imenso legado cultural e no espírito uma profunda esperança de um mundo melhor. No universo da música, as últimas décadas foram marcadas pela técnica: de um lado, o esforço conjunto de professores e cientistas conseguiu desvendar vários “mistérios” da técnica instrumental. O que antes parecia ser um dom divino com o qual poucos tinham o privilégio de serem agraciados pôde ser ampla e democraticamente difundido, tornando a prática da música acessível a todos. De um outro lado, a digitalização do som, dentro da “revolução digital”, permitiu que a música pudesse ser registrada e difundida com uma qualidade e facilidade nunca antes imaginadas.

Aos que trabalham com música, creio que existem duas grandes tarefas a serem cumpridas nesta nova etapa: 1) acabar de resolver os “mistérios” da prática musical, concluindo o processo de democratização do saber técnico-artístico; 2) resgatar a essência da música como linguagem de expressão humana e não como uma simples atividade.

Dentre os “mistérios” que ainda persistem, um dos mais instigantes é o do registro superagudo nos instrumentos de metal. Essa questão já instigou e frustrou gerações de instrumentistas que se aventuraram na fascinante aventura de dominar um instrumento musical.

Vamos analisar várias facetas dessa questão e, no próximo artigo, fornecer exercícios práticos para se conquistar o registro superagudo.

A tessitura como desafio

Um aluno de piano, por mais jovem e inexperiente que seja, pode, nos primeiros minutos do seu primeiro dia de aula, tocar a nota mais grave e a mais aguda de seu instrumento sem nenhuma dificuldade. Já um aluno de um instrumento de metal, se conseguir tocar uma única nota da região média em sua primeira aula terá realizado uma conquista.

Nos instrumentos de metal, mais do que em qualquer outra família de instrumentos, o domínio da tessitura se coloca como uma séria questão de técnica; a qual muitos profissionais não dominam totalmente.

O principal motivo disso é o fato de que o domínio da tessitura depende de uma técnica refinada e de uma ótima forma física (ao menos dos músculos envolvidos na execução musical). Podemos fazer uma comparação com o andar de bicicleta: qualquer pessoa, mesmo com algumas limitações físicas, pode aprender a andar de bicicleta, mas só poucas poderão participar com sucesso de uma corrida pelas montanhas.

Se pensarmos um pouco, poderemos observar que várias atividades ligadas ao corpo seguem essa mesma regra: a técnica básica pode ser realizada por qualquer pessoa mas, quanto mais aumentarmos as exigências de performance, elas só poderão ser correspondidas por pessoas muito bem treinadas para isso.

Alpinistas e pássaros

Os pássaros já trazem inscrito em seu código genético a capacidade de aprender a voar como nós a de andar. Nossa concepção de movimento e deslocamento no espaço está toda baseada num plano bidimensional. Um pássaro, por outro lado, concebe o espaço como um plano tridimensional. Os seres humanos que decidem conquistar a terceira dimensão do espaço, os alpinistas, sabem que esse conquista requer um trabalho muscular longo, preciso e dedicado, sob o risco da própria vida.

Se “despencar das alturas”, um instrumentista de metal não corre risco de vida, mas pode ter o seu emprego em jogo. Não podemos voar por conta própria, mas podemos escalar as alturas. Quanto mais treinados estivermos no escalar, mais próximos estaremos de nos sentir como um pássaro em relação às alturas.

Voar e mergulhar: os graves, o outro lado da balança

Os superagudos são, na verdade, apenas um aspecto de uma questão maior: a da tessitura. Nos instrumentos de metal, o domínio do extremo agudo está intimamente ligado ao domínio da região grave. Assim, para aprendermos a voar temos de aprender também a mergulhar. O trabalho de conquista da tessitura deve partir da região média e caminhar paulatinamente nas duas direções. Além disso, todo o trabalho realizado na região grave do instrumento serve de relaxamento para o árduo trabalho muscular da região aguda. A palavra chave é flexibilidade.

A verdadeira busca é a do domínio da tessitura como um todo dentro de uma técnica flexível de execução. Ao contrário do que muitos possam pensar, um trabalho equilibrado entre graves,agudos e flexibilidade pode levar o instrumentista muito mais rapidamente ao domínio do registro superagudo do que um trabalho exclusivo na região aguda.

Mitos e tragédias – A imagem dos que conseguem

Existem várias formas de se aprender: por repetição, por imitação, por reflexão. Cada qual com suas vantagens e desvantagens. Quando aprendemos por imitação temos a vantagem da riqueza do exemplo vivo, mas há duas desvantagens graves: 1) a forma como nosso “modelo” realiza algo pode não ser adequada para nós; 2) estaremos restritos à nossa visão do modelo que é limitada pelo nosso conhecimento.

No caso específico dos superagudos temos o fato de que grandes artistas, principalmente do jazz, que ainda estão em destaque, utilizam-se de uma técnica que funciona para eles mas que não deve ser necessariamente copiada, pois contrariam certos princípios ergonômicos que deveriam ser respeitados. Sob outro aspecto, o que vemos é a imagem exterior do músico; como ele está utilizando seu diafragma, sua língua e seus lábios só podemos imaginar. Para a região aguda, o que realmente importa é o que acontece dentro do corpo e, portanto, não pode ser visto de fora.

Por esses motivos, devemos ser muito cuidadosos ao procurar imitar nossos ídolos.

Um programa

Para se conquistar o registro agudo, precisamos estabelecer um programa sério de trabalho e perseverarmos nele.

A primeira etapa consiste em se fazer uma avaliação realista do estado em que estamos. A partir daí poderemos determinar as etapas pelas quais teremos que passar para atingir nosso objetivo.

Como essa condição inicial varia muito de pessoa para pessoa, daremos aqui somente os requisitos básicos para se iniciar nossa jornada:

Postura – para irmos para um estágio mais avançado, a postura deve ser equilibrada. A coluna deve estar ereta; o peso do corpo distribuído igualmente entre as duas pernas; os braços livres.

Relaxamento – é importantíssimo que se esteja com a musculatura relaxada ao se tocar, principalmente os músculos do ombro, do pescoço e da face.Pense no seguinte: para o registro superagudo seus músculos terão de trabalhar muito; se além do trabalho natural, eles ainda tiverem que lidar com a contração desnecessária de seus “companheiros”, tudo vai ficar muito difícil.

Respiração – esteja seguro de estar usando muito ar. Tocar um instrumento de metal é uma atividade aeróbica. Além do ar necessário para a execução do instrumento, você precisa de ar para alimentar todos os músculos que estão em jogo, bem como o raciocínio de seu cérebro.

Consciência – Durante seu processo de aprendizado, é muito importante ter sempre consciência do que se está fazendo. Se esse hábito for cultivado com constância, o processo de introjeção da técnica ocorrerá de maneira muito mais rápida. Se o aluno trabalha conscientemente, o profissional poderá dispor intuitivamente de uma técnica correta.Uma vez consciente de seu estado atual, deve-se começar a fazer exercícios para desenvolver a musculatura envolvida na mudança de tessitura: o diafragma, a musculatura de apoio abdominal, inguinal e intercostal, a língua, os lábios.

O ideal é se trabalhar com pequenas metas. Se, por exemplo, atinge-se até um Mi com facilidade, programe seus exercícios para conseguir o Sol. Conforme o Sol começar a sair, toque diversas músicas onde o Mi e o Fá apareçam com freqüência. Quando você tiver certeza que consegue tocar o Sol a qualquer momento, estabeleça o Si como sua próxima meta e toque várias músicas onde o Fá e o Sol apareçam com freqüência.

A nota de referência

Um conceito muito importante, empregado por vários músicos, é da nota de referência para a embocadura. Essa nota varia de pessoa para pessoa e de momento em momento do aprendizado.

Imagine que a nota mais aguda que você consiga tocar agora seja um Sol. Vamos usar, como nota de referência, o Dó, uma quinta abaixo desse Sol. Ao colocar o instrumento nos lábios, mantenha a postura e contração que você utiliza para tocar o Dó. Se tudo estiver em ordem, bastará você assoprar levemente e deverá soar um Dó. Tudo que estiver abaixo desse Dó estará no seu registro grave; tudo que estiver acima, no registro agudo. O importante é que você se sinta confortável com sua nota de referência; você não deverá fazer um esforço para tocá-la.

A cada nota que você conquiste no agudo, suba sua nota de referência proporcionalmente. Pouco a pouco, você estará transformando a sensação do alpinista que escala para a do pássaro que voa.

O foco preciso

Outro conceito importante para se chegar ao agudo é de focalização sonora. Pode-se fazer um paralelo entre a visão e audição que empregamos para cantar ou tocar um instrumento. Você poderá entender muito bem isso se utilizar uma câmera fotográfica do tipo reflex e tentar focalizar objetos próximos. Você irá observar que, quanto mais próximo estiver um objeto, mais delicado será sua focalização.

O mesmo vale para o registro agudo nos instrumentos de bocal. Um mínimo desvio e você estará em outra nota ou em nota alguma. É comum os estudantes encararem o agudo como região que “não se pode visualizar” sonoramente com clareza. Tenta-se tocar as notas como se estivesse atirando, tentando acertar, sem muita certeza do resultado que irá se obter.

Como no início do trabalho com a região aguda ainda não se tem uma experiência concreta com as notas desse registro, precisa-se trabalhar mentalmente essas notas fora do instrumento. Para tanto, pode-se empregar um bom professor de percepção, ou programas como Earmaster ou Earpower.

O espírito da coisa…

Você conhece estes versos da canção “Samba Erudito” do compositor Paulo Vanzolini?

Andei sobre as águas
Como São Pedro
Como Santos Dumont
Fui aos ares sem medo
Fui ao fundo do mar
Como o velho Picard
Só pra me exibir
Só pra te impressionar

Ele revela uma característica da natureza humana diretamente ligada à questão do registro superagudo: a vaidade. Embora nossa matéria seja a música, e tudo que fizermos em relação à técnica do nosso instrumento deveria ser, em última instância, com a finalidade de aprimorar nossa expressão musical, muitas pessoas lutam por dominar o registro superagudo muito mais como uma forma de exibição pessoal do que por qualquer outra finalidade ligada diretamente à música.

Embora você seja livre para o que quiser (ou puder), acreditamos que o esforço de se conquistar o registro super agudo terá muito mais sentido se tiver como finalidade uma melhor expressão musical.

No próximo artigo, traremos exercícios práticos para se desenvolver as habilidades necessárias para se alcançar o registro superagudo, bem como citaremos alguns métodos existentes no mercado.

Não percam!


Angelino Bozzini é professor e trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.


Fonte: Publicado na Revista Weril n.º 133