As surdinas: Dominando a Paleta de Timbres de seu Instrumento

por: Angelino Bozzini

Considerada por muitos como um simples acessório, as surdinas têm um papel chave na caracterização de certos estilos musicais, como o Jazz, e podem ser um fator de enriquecimento da linguagem musical e da performance de um instrumentista. Vamos analisar sua origem, tipos e características.

A procura de um nome: Segundo a definição do Dicionário Houaiss, surdina é o “dispositivo móvel ou fixo que, em determinados instrumentos, serve para abafar-lhes a sonoridade e alterarlhes o timbre”. A função original das surdinas foi, sem dúvida, a de abafar o som dos instrumentos. Hoje ela é muito mais do que isso, sendo a sua principal função a mudança do timbre. E, embora não seja bonito, o termo “timbrador” seria muito mais adequado para descrever o que hoje chamamos de surdina.

O princípio: Nos instrumentos de metal as surdinas são colocadas na saída da campana ou dentro dela; elas interceptam o som do instrumento reduzindo seu volume e alterando seu timbre. Partindo-se dessa definição, podemos considerar uma flanela amarrada na campana do instrumento como uma forma simples de surdina. Desse modelo básico até as sofisticadas surdinas eletrônicas, todas estão sujeitas a alguns princípios acústicos comuns presentes em maior ou menor grau conforme o modelo em questão. Basicamente podemos falar de três características:

1. Abafa o som ­ Ao interceptar as vibrações da coluna de ar que saem pela campana do instrumento, ela absorve parte da energia sonora, fazendo com que o volume do som diminua.

2. Filtra o timbre ­ Conforme a forma que possui e o material de que é feita, ela absorve alguns dos sons harmônicos que compõem o timbre do instrumento, alterando suas características.

3. Acrescenta sons harmônicos ao timbre do instrumento ­ Ao interceptar as vibrações sonoras produzidas pelo instrumento, ela mesma entra em vibração, acrescentando seu próprio som ao som do instrumento.

O instrumentista como ator do som: A relação entre um instrumentista e o som de seu instrumento é muito parecida com aquela entre um ator e sua voz. No seu processo de formação, o ator, num primeiro momento, trabalha sua voz para que ela desenvolva qualidades como resistência, sonoridade, volume, projeção e expressividade. Assim que seu controle vocal tenha atingido um nível satisfatório, o ator continua seu aprendizado trabalhando na caracterização vocal de personagens que difiram dele próprio na idade, sexo, condição física, grupo social, estado de ânimo, etc.

Com os instrumentos o processo é similar: uma vez que tenhamos conseguido obter uma sonoridade uniforme, um belo timbre, boa afinação, projeção sonora, resistência e expressividade, devemos trabalhar com as nuances de caracterização timbrística exigidas pelos diferentes estilos musicais. Nesse momento, um estudo cuidadoso com os diferentes tipos de surdina trará uma melhora geral no seu desempenho artístico.

Cada surdina, por suas características individuais, requer uma pressão específica da coluna de ar, um tipo de correção de afinação, uma técnica de fixação e manipulação. Muitos músicos compram suas surdinas, colocam no instrumento quando aparece escrito SURDINA na partitura e a retiram quando lêem SEM SURDINA, ignorando que, para serem bem empregadas, é requerida uma prática à parte.

É importante lembrar que, de forma similar a outras atividades, depois de praticarmos com uma surdina, ao voltarmos para a maneira normal de tocar teremos muito mais controle sobre a mesma. Sair da rotina é enriquecedor!

A paleta de cores do compositor: Analisando as surdinas do ponto de vista dos compositores, podemos dizer que seu uso equivale à combinação feita pelos pintores com as cores básicas para produzir as diversas nuances de tom.

Para quem quer entender como isso funciona na prática, vale a pena ouvir o poema sinfônico “La Mer” (O Mar), do compositor francês Claude Debussy. Elas são muito empregadas, também, nas trilhas sonoras de filmes e desenhos animados.

Compositores e arranjadores têm, nas surdinas, uma fonte riquíssima de material sonoro à disposição de sua criatividade.

Os diversos tipos de surdina: O músico de orquestra usa basicamente um tipo de surdina, que tem a finalidade de abafar o som do instrumento. Ela tem a forma de um tronco de cone feito de papelão, madeira, metal ou fibra de vidro, fechada na base e aberta na ponta, e se fixa à campana do instrumento com auxílio de pequenas tiras de cortiça coladas em sua lateral.

Nas partituras, indica-se normalmente seu uso escrevendose SURDINA no início do trecho e SEM SURDINA no final. Em outras línguas escreve-se desta forma:

Essas indicações podem variar. O Importante é que fique claro para o músico quando ele deve colocar e retirar a surdina.

O grande desenvolvimento e diversificação dos tipos de surdina ocorreram dentro do Jazz, onde seu emprego nos instrumentos de metal tornou-se uma das características da linguagem.

Por terem sido desenvolvidas nos Estados Unidos, seus nomes são em inglês. Os tipos mais conhecidos são:

STRAIGHT – Equivalente à surdina tradicional para abafar o som do instrumento.

CUP – Similar à anterior acrescida de uma espécie de concha na base do cone.

WA-WA – Muito empregada para efeito de risadas nas trilhas dos desenhos animados. Ao abrirmos e fecharmos um orifício que fica em sua base produz-se uma espécie de pequeno glissando no som. Daí seu nome.

HARMON – Produz um timbre velado e metálico. É uma das mais empregadas por diversos trompetistas de Jazz.

PLUNGER – Pode ser feita com a borracha do desentupidor de pia. Ao variarmos o ângulo de abertura em relação à campana produz-se um efeito de glissando.

VELVET – Veludo. Abafa muito o som, produzindo um som distante e aveludado.

Um outro tipo importante de surdina é a Surdina de Estudo. São feitas para que o instrumentista possa estudar em qualquer lugar sem atrapalhar ninguém. As mais modernas têm um microfone embutido e podem ser ligadas a um fone de ouvido ou aparelhagem de som. É importante lembrar-se que esse tipo de surdina, por vedar quase completamente a campana, aumenta muito a resistência da coluna de ar, criando uma condição muito diferente da normal. Portanto, seu uso só é indicado para situações especiais, não para a rotina de estudo.

Finalmente, no caso específico da trompa, existe uma surdina para o efeito de BOUCHÉ (quando o trompista fecha completamente a campana com a mão e sopra com mais força, fazendo com que a própria campana vibre). Esse tipo de surdina sobe em meio tom a afinação do instrumento, portanto, ao empregá-la, devemos tocar sempre meio tom abaixo do que está escrito.

Afinação: Uma outra questão importante no uso das surdinas é a afinação. Teoricamente, uma surdina deveria manter a afinação do instrumento inalterada. Na prática, como as medidas dos instrumentos variam de fabricante para fabricante e mesmo entre modelos diferentes de um mesmo fabricante, é impossível fabricar-se uma surdina que afine em todos instrumentos. Cabe ao músico, portanto, fazer as devidas correções. Por esse motivo, é fundamental um estudo minucioso com cada surdina para que você saiba onde deve corrigir a afinação do instrumento durante a execução.

Algumas surdinas possuem um cilindro interno ajustável a partir do qual pode-se regular a afinação da mesma.

A surdina e o espaço: Ao filtrar o som do instrumento as surdinas alteram profundamente suas características, principalmente no que diz respeito à projeção do som. É importante checar com seus colegas se, quando você está utilizando uma surdina, seu som consegue se projetar no espaço do teatro ou local de apresentação como você imagina. É possível que ele simplesmente desapareça para o público, embora você tenha a impressão de estar tocando muito forte.

No caso de gravações em estúdios, em algumas situações, trechos com surdinas devem ser captados de forma distinta da utilizada para gravar o som normal de seu instrumento.

Experiências: Agora que você já sabe como as surdinas funcionam, que tal dar asas à sua imaginação e criar suas próprias surdinas? Existem várias possibilidades. A mais simples é usar garrafas plásticas. Existem alguns modelos que têm forma cônica e podem produzir surdinas interessantes. Você vai precisar também de algumas tiras de cortiça para que a sua surdina possa ser fixada ao instrumento.

Outra possibilidade interessante é utilizar papel machê, que é muito fácil de ser preparado e muito versátil na moldagem. Ele pode ser pintado com tinta a óleo para o acabamento. Existe uma explicação simples e bem humorada sobre a preparação do papel machê em http://www.monica.com.br/ comics/papel/

Para aumentar o leque de experiências pode-se utilizar ainda: chapa, cartão ou fibra de vidro.

Era uma vez… Se você é professor e trabalha com educação infantil, encontrará nas surdinas uma fonte de recursos sonoros inusitados que convidam à imaginação. Partindo de uma surdina básica adaptada (que funcione como uma espécie de rolha com um orifício, colocada na campana do instrumento) você pode conectar apitos, língua-de-sogra, kazoo, fitas de papel e tudo que sua imaginação encontrar.

Os recursos estão agora em suas mãos. Que tal colorir esse mundo com a riqueza timbres que as surdinas proporcionam?


Angelino Bozzini é professor e trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo


Fonte: Publicado na Revista Weril n.º 143