História da Música

Música Antiga – História Completa

por: Anselmo Silveira da Costa

O que é Música Antiga?
Da Interpretação da Música Antiga
A Música Antiga no Brasil
Ambiente Medieval
Modos Gregorianos e Escalas Simples
Notação Musical
Os Trovadores
O Pentagrama – Guido d’Arezzo
A Escola de Paris – Criatividade
Música Vocal – Introdução
Os Mestres Inglêses e Franco-Flamengos do Século XV
Música Vocal no século XVI

O que é Música Antiga? (*)

Existem basicamente duas definições distintas, mas relacionadas entre si, de “Música Antiga”. A primeira é baseada em um período histórico, ou seja, é a música da Idade Média, Renascimento e Barroco. Mesmo sendo uma definição aparentemente simples, as coisas não são tão claras assim. Por exemplo, qualquer tentativa de fixar datas para o Barroco é essencialmente arbitrária. Muitas pessoas preferem “definir” seu fim em 1750, com a morte de J.S. Bach. É uma data muito conveniente, mas também rejeita as várias mudanças estilísticas que se efetuavam naquele tempo, por exemplo, a emergência dos estilos galante e pré-clássico em proximidade com o florescimento final do Barroco. Para acrescentar ainda mais a confusão, enquanto muitas peças podem ser relacionadas estilisticamente a um certo pensamento estético, isso também não é claramente definido. Como tudo o mais, a música barroca foi terminando gradualmente e esporadicamente, isso se dizemos que ela terminou como um todo. Talvez o fator significativo para definir estas eras como “Música Antiga” é que elas não tiveram uma tradição contínua de performance. Em outras palavras, tal música parou de ser executada depois de sua época e precisou ser revivida em nossa própria era – Até meados do século XIX, tanto público, como músicos, raramente se interessavam por outra música que não fosse aquela produzida naqueles dias. Assim, após alguns anos de execução, a maioria das obras normalmente caía no esquecimento. Em 1829, o compositor Mendelssohn resgatou, para surpresa do grande público, a “Paixão Segundo São Mateus”, de Bach. Após 100 anos, aquela era a segunda audição de uma obra prima que só fora executada em sua estréia. A partir de então, o repertório barroco passou a ser freqüentemente adaptado às grandes orquestras românticas.

Isso não é válido para a música “clássica” de Mozart, Beethoven, etc. que gozam de uma tradição contínua de execução. Significa que, até certo grau, é essa revivescência que domina a MA (Música Antiga como um movimento), pelo menos em espírito. É claro, como sempre, que as coisas ainda não estão esclarecidas. Por exemplo, compositores do Barroco tardio como Bach, Handel, Vivaldi, etc. foram retomados relativamente cedo e portanto têm uma considerável tradição de performance que independe do atual movimento de Música Antiga. E agora presenciamos um crescente número de performances de Mozart, Beethoven, etc. no contexto da Música Antiga; isso muda ainda mais a direção da corrente.

A segunda grande definição de “Música Antiga” é o aspecto da performance. Isto é um tanto espinhoso, mas o fato significativo é o desejo de recriar (executar) a música de uma era em particular com as sonoridades e os tratos estilísticos daquela era. Claro, uma vez que é um objetivo comum, realmente envolve muitas conjecturas e depende fundamentalmente da intuição do músico moderno no topo do trabalho de musicologista.

Essa abordagem, chamada Performance Instruída Historicamente (PIH) por muitos, freqüentemente reside no uso dos famosos instrumentos “autênticos” (instrumentos ou cópias dos instrumentos que foram supostamente usados naquela era e talvez “intencionado” pelo compositor), técnica vocal do período e novas questões de tempo e dinâmicas. Enquanto esta abordagem é talvez mais adequada ao caso da música barroca, torna-se mais polêmica à medida que retrocedemos no tempo. Uma fonte de controvérsia tem sido o papel dos instrumentos durante os períodos medieval e renascentista. Assim, a PIH pode ser aplicada a praticamente qualquer música. Quando a música tem uma tradição contínua de performance, as PIH representam divergências quanto a esta tradição, baseadas num novo olhar sobre o contexto original de uma composição (instrumentos da época, notas do compositor, etc.). Os executantes da PIH às vezes versam sobre captar as “intenções originais” de um compositor, embora sendo um assunto essencialmente psicológico, intenções que nunca foram totalmente concretas. A partir daí, as decisões residem largamente na intuição artística do músico moderno, e deveriam ser julgadas pelos seus próprios méritos musicais.

No caso da música pré-barroca, há poucas alternativas senão concentrar-se em recriar o mundo sonoro da época, em ordem para mesmo abordar as composições que nos restaram. Claro, é isso que vários músicos “históricos” estão fazendo, e conseqüentemente estão revivendo um vasto campo de soberbas músicas que estavam efetivamente perdidas para nós. Este é, provavelmente, o centro da “Música Antiga”. Tem-se comentado ainda que a PIH é realmente um fenômeno tipicamente moderno, e no sentido tautológico isso é inequivocamente verdade – nós somos a 1ª geração a se dedicar com tanta convicção a isso. De uma perspectiva mais larga, é também tipicamente moderna a ideia de que as “intenções do compositor” deveriam importar mais do que um executante decidisse fazer com a música diante de si. Na verdade, tem sido ironicamente sugerido que tal abordagem não é de modo algum a intenção do compositor! É óbvio que, pela discussão acima, é fácil ver que as decisões para o performer individual é ainda uma grande parte da PIH.

Concluindo, pode-se definir “Música Antiga” tanto como a música das eras medieval, renascentista e barroca (e talvez mais adiante); ou como uma performance musical voltada ao contexto histórico da composição em vista. Estas duas ideias naturalmente se correlacionam quando consideramos que boa parte da música medieval e renascentista deve ser abordada através de seu contexto histórico, se estamos a ter alguma ideia de como fazer isso em primeiro lugar. Esta ideia de contexto pode também ser estendida para várias direções. Alguns grupos da PIH usam trajes de época e vários efeitos de cenário. Isso poderia ser genericamente chamado de contexto extra-musical, e certamente tem algum sentido de entendimento da obra, mesmo se descartado com relação à formação de um concerto moderno. E, é claro, isso é parte daquilo que faz da “Música Antiga” um conceito sui generis… uma vez que a formação de um concerto em grande parte é devido a uma invenção moderna.

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Da Interpretação da Música Antiga (**)

No inicio deste século, surgiu, inicialmente na Europa, grande interesse pela performance musical histórica, onde as formas interpretativas foram repensadas e pesquisadas de acordo com a época e a origem das composições. A música do Renascimento e da Idade Média instigaram o intérprete a atuar como um verdadeiro arqueólogo, buscando através de outras fontes, como iconografia e relatórios fiscais de época, dados que permitissem reconstruir a forma como esta música era realizada.

Dentro deste movimento chamado “Música Antiga”, uma corrente denominada “Autêntica”, defende a execução musical em instrumentos, réplicas de época, tornando-se uma especialidade com cada vez mais adeptos. O fato dela nos revelar uma época distante, repleta de diferentes sonoridades, exerce grande fascínio, tanto sobre músicos como público, que cresce a cada dia.

Quanto mais regredimos na História da Música, mais traiçoeiro fica o terreno sobre o qual o intérprete deve caminhar. O século XVI e os séculos anteriores não nos deixaram nada semelhante aos tratados sobre gosto musical e estilo de interpretação dos séculos XVII e XVIII. Os livros do século XVI sobre Música tratam ou do ensino dos seus rudimentos, das complexidades da sua notação, das técnicas de improvisação e, às vezes, de algumas noções de composição, ou então dos aspectos técnicos de como tocar um instrumento: dedilhado, arcada, sopro. Na verdade, lidam mais com Teoria Musical do que com Prática Musical.

Mesmo os tratados teóricos vão-se tornando cada vez mais raros à medida que retrocedemos no tempo, e a distância entre as notas escritas e sua realização em termos sonoros se torna cada vez maior e menos definida. O estudante de interpretação tende a apoiar-se, cada vez mais, nas provas fornecidas por fontes não-musicais – pintura, escultura, poesia, crônicas, histórias – que, por sua própria natureza, não podem proporcionar um conjunto de dados coerente e contínuo de que ele realmente necessita. Por isso devemos contar com toda a nossa intuição e sensibilidade para nos aproximarmos, ao máximo possível, do que era feito na época, respeitando, assim, sonoridades (ambiente acústico x instrumentos), estilo, compositor e instrumentos. Quando nos acostumarmos à ideia de que a improvisação de todo o tipo era parte integrante da execução da Música Antiga, estaremos mais próximos de vê-la em sua perspectiva histórica correta e seremos mais críticos em relação a muitas opiniões aceitas.

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A Música Antiga no Brasil

No Brasil, a Música Antiga chegou em meados da década de 40, com o Conjunto da Rádio MEC, Roberto de Regina e o Quadro Cervantes, este ainda em plena atividade. Dentro deste movimento, Niterói pode ser considerada um grande centro de produção. A partir do trabalho do Música Antiga da UFF, que em mais de quinze anos de atividades tem representado a cidade por todo o país, surgiram vários outros grupos, assim como músicos que individualmente desenvolvem suas carreiras no Brasil e no exterior. Assim, entre os músicos brasileiros dedicados à esta arte, Niterói é sempre lembrada como a cidade que abriga uma imensa atividade nesse campo.

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Ambiente Medieval

A Idade Média, considerada desde o Romantismo a época mais importante na formação da civilização européia, caracteriza-se por valores culturais de inspiração clássica, mas subordinados a finalidades éticas e religiosas, isto é, cristianizados. Assim, embora os autores clássicos sejam lidos e estudados – filósofos, oradores e poetas, tais como Aristóteles, Cícero, Sêneca, Virgílio e Ovídio -, as suas obras são selecionadas e adaptadas à nova mentalidade, de inspiração cristã, a qual só assimila os valores culturais adequados aos princípios morais e religiosos por que se rege. E a estrutura hierárquica que domina a sociedade medieval abrange também a cultura, em que o estudo da Teologia ocupa o primeiro lugar, pois o ideal de vida do homem medieval é essencialmente teocêntrico.

Nesta época, o mundo divino constitui a verdadeira realidade: assim se explica a visão do universo em dois planos, expressa através do alegorismo, que interpreta o mundo terreno como símbolo de espírito e do sobrenatural. Os primeiros centros difusores da cultura medieval são os conventos, onde o latim, língua da Igreja e língua culta por excelência (adotada por todas as pessoas letradas, abrangidas pela designação de clercs ou clérigos), serve de veículo à cultura monástica ou médio-latinística, expressa por meio de obras religiosas, morais e filosóficas, e também por uma poesia de amor idealizado, que muito deve à retórica clássica.

Mas na Idade Média surge também uma cultura em língua vulgar que, refletindo a atmosfera cavaleiresca, aspira a um novo ideal e afirma um conceito de vida já inteiramente alheio aos valores religiosos: a escola poética provençal. Nesta época a cultura é essencialmente transmitida por via oral: pregação dos monges, leitura escutada da Bíblia e de livros religiosos e profanos, canto litúrgico, poesias cantadas por trovadores e jograis. Os santuários, onde convergiam os peregrinos, vindos dos mais diversos pontos do mundo cristão, e as capelas, centro de romarias locais, podem considerar-se o foco de irradiação dessa cultura oral, predominantemente em língua vulgar ou romanço. Assim, de acordo com o dualismo lingüístico que a caracteriza, a Idade Média define-se por dois tipos de cultura, que coexistem e por vezes se influenciam, mas que permanecem fundamentalmente alheios, como dois mundos opostos: a cultura laica ou profana, transmitida oralmente, em língua vulgar; a cultura monástica, escrita e erudita, inicialmente só expressa em latim, mas adotando depois a língua vulgar em traduções. A primeira, divulgada pelo canto nas romarias ou peregrinações e nas cortes dos reis e dos grandes senhores, é constituída por composições em verso, líricas e sátiricas, abrangidas sob a designação de poesia trovadoresca.

Uma Nova Religião, Nova Música

Foi a propagação da religião cristã, partindo de um culto local na Judéia e transformando-se na fé aceita em todo mundo ocidental, que provocou o desenvolvimento da música européia. O cristianismo surgiu como um ramo do judaísmo, tendo conseqüentemente sua música origem, em parte, no canto judaico (os cantores da sinagoga tinham um serviço extra aos domingos, além do sábado judeu), mas também na Grécia clássica via Roma imperial. Quando o imperador Constantino proclamou o cristianismo como religião oficial do Império Romano, no ano 325 d.C., a música litúrgica também foi influenciada pelos dialetos dos locais onde a nova fé lançava suas raízes, incorporando elementos de origem tradicional, sagrados e profanos. Não decorreu muito tempo até existirem inúmeras variantes da música de culto cristã. O Rito Ambrosiano (chamado depois de Santo Ambrósio, viveu no século IV), que ainda é praticado no Norte da Itália, deu a outros ritos o princípio das antífonas, que são um cantochão entoado sob a forma de responsos, a dois coros, ainda hoje chamados decani e contoris, nas catedrais e igrejas. Na França havia o Rito Gaulês; na Espanha, a música litúrgica era dominada desde os primórdios do século VIII pelos mouros-cristãos, e em Constantinopla florecia o Rito Bizantino.

Sofisticação e Complexidade

A música sacra tinha com freqüência feito uso de hinos com palavras sem grande significado (a Aleluia hebraica é um exemplo particularmente antigo). Se era fácil aprender e recordar melodias quando cada sílaba do texto tinha a nota correspondente, era muito mais difícil quando a cada sílaba eram atribuídas várias notas. Assim os textos de hinos foram ampliados com mais palavras ou frases no sentido de transformar um canto particularmente bom em outro realmente memorável (ao resultado assim obtido deu-se o nome de seqüência). Com o tempo, os hinos estabelecidos adquiriram novas seções intermediárias de texto e melodias: são conhecidos como tropos, e quanto mais diversificados se tornavam, maior era a necessidade de registrá-los para aprendê-los de cor.

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Modos Gregorianos e Escalas Simples

A notação musical foi desenvolvida quando se tornou essencial, mais uma vez mostrando-se a necessidade mãe da invenção. Perto do ano 600 d.C., o papa Gregório, o grande, determinou que fossem sistematizadas as variações da escala, ou modo musical, habitualmente usadas na música litúrgica cristã. Identificou-as utilizando as letras do alfabeto, como ainda hoje é feita com a notação moderna das pautas, e deu-lhes um nome a partir de designações gregas antigas já ligadas à diferentes escalas. Estas ficaram conhecidas como modos gregorianos e sobrevivem no cantochão sagrado católico romano. O serviço religioso católico, as completas e as missas solenes realizadas para celebrações da Igreja têm muito do cantochão gregoriano e são um prazer para o ouvido – música sacra na sua forma mais pura e simples. Com o decorrer do tempo, os compositores acharam os simples modos gregorianos muito pouco elaborados, desprezando-os por vezes em proveito das escalas diatônicas, formadas por tons e semitons. Agora os tons podiam ser registrados utilizando-se letras, embora nem sempre fosse óbvio se o intervalo de uma para outra era ascendente ou descendente, sem mencionar o fato de algumas notas deverem ser cantadas mais rapidamente que outras. Alguns músicos, tentando fornecer um máximo de informações acerca da escrita musical, utilizaram sinais de acentuação e letras para identificar a nota de maior duração.

Harmonias Paralelas

Atualmente, quando duas pessoas cantam em conjunto, a segunda voz cantará as segundas, repetindo a melodia a uma distância de três notas (uma terça), acima ou abaixo. No século IX surgiu um livro intitulado Música Enchiriadis descrevendo a música cantada e/ou tocada em três partes distintas, mas simultâneas: primeiro a melodia, depois uma duplicação da melodia em oitava (por exemplo, soprano com tenor) e, por fim, a terceira voz intermediária, fazendo a duplicação na quarta ou na quinta superior ou inferior. Essa forma de canto harmônico era designada organum, talvez devido ao fato de a voz ser então acompanhada por um órgão, cuja utilização tinha até esse momento sido abolida da música cristã, do mesmo modo que os outros instrumentos, por serem reminiscências da música romana pagã. Porém, essa duplicação trazia seus problemas, e muitas vezes os cantores tinham de encobrir tremendas justaposições com pequenas alterações.

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Notação Musical

A possibilidade de um cantor fazer uma modificação errada deve ter acelerado o aparecimento de uma notação musical mais sofisticada. Sabe-se que, por volta do ano 871, um monge que vivia perto de Tournai, no Norte da França, escreveu os textos gregos e latinos da Glória cantando na missa católica, e sobre o texto grego traçou vários sinais indicando a altura, a duração e o acento tônico. São chamados neumas (designação proveniente da palavra grega que significa inclinação ou sinal). Derivavam de vários protótipos bizantinos e durante o Século X começaram a ser vulgarmente utilizados na França, Alemanha e Inglaterra, tornando-se um material de notação capaz de fornecer diretivas amplas e precisas para a execução musical. Em 1504, o ramo bizantino do cristianismo desligou-se da influência romana. Tornou-se o Rito Ortodoxo Grego e associou-se a outras músicas orientais, preservando uma imutável adesão à melodia tradicional, que não viria a ser alterada nem substituída. Somente os rituais cristãos europeus, desenvolvendo sua identidade musical, necessitaram que sua música, cada vez mais complexa, fosse passada à escrita. Algum tempo depois, em Limoges, novecentos monges incluíram em seu serviço pascal um interlúdio chamado Quem Quaeritis, em que as três Marias visitam o túmulo de Cristo e conversam com o anjo que lhes diz que Cristo “não está aqui; Ele subiu aos céus”. Era cantado em Latim por um coro de quatro elementos que também atuavam na representação. Há um livro sobre a produção teatral da versão representada e cantada em Winchester, Inglaterra, c. 970. Outros dramas religiosos foram acrescentados aos serviços eclesiásticos em ocasiões próprias, formando um elo entre o drama grego clássico e as primeiras óperas italianas da Camerata florentina, em 1600.

Essas pequenas peças musicais sacras devem ter sido associadas à óperas profanas, que podem ter sua origem nelas. A igreja nunca apoiou a vanguarda artística, mesmo nos tempos áureos, mas estava sempre pronta a pedir emprestada uma boa melodia ao diabo, como afirmou séculos mais tarde Martinho Lutero. Infelizmente, nenhuma das óperas profanas até a Representação de Robin e Marion foi escrita. Robin e Marion é uma comédia pastoril francesa com canções de Adam de la Halle (c. 1237-1288), que se encontrava a serviço de Carlos de Anjou – quer dizer, trezentos anos depois do Quem Quaeritis.

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Os Trovadores

Grupos de poetas-músicos que floreceu no sul da França, em uma região chamada Provença, no começo do séc. XII. Acredita-se que os trovadores podem ter calcado seus versos líricos em obras de poetas árabes da Espanha e de clássicos romanos como Ovídio. Tanto a música secular, como os longos poemas épicos do século XI, as canções de gesta (canções sobre feitos de uma pessoa histórica ou lendária), as cantigas das Cruzadas (a partir 1096) e as cantigas dos trovadores parecem todas monofônicas – composições poéticas sem acompanhamento musical. Não se tem conhecimento de qualquer música para canções de gesta, mas documentos antigos levam a pensar que os versos eram todos cantados no mesmo tom e que alguns tons já poderiam ter existido nas melodias litúrgicas. Por vezes, devem ter sido acompanhadas por algum instrumento. A música, como as mercadorias e novas ideias de todos tipos, percorreu as principais rotas comerciais; mercadorias e maneiras vieram da Itália à França passando pela Alemanha; a música secular dos trovadores foi em direção oposta, aclimatando-se lentamente aos costumes alemães, assim como percorreu também a rota dos cruzados. A maioria desses poemas celebravam os feitos de Carlos Magno e outros heróis. Muitos estudiosos acreditam que os monges escreveram a maior parte das canções de gesta para glorificar os fundadores e/ou mantenedores de seus mosteiros. As canções de gesta constituíram um ciclo de poemas, dos quais A Canção de Rolando é o mais famoso. Um segundo grupo de poemas chamados romances corteses (romances da corte) desenvolveu-se junto com as canções de gesta. Tratavam de temas de amor, de magia e cavalaria. Chrétien de Troyes, que escreveu aproximadamente de 1160 a 1190, é o mais conhecido dos autores de romances corteses. Ele tentou combinar os ideais guerreiros das canções de gesta com uma nova atitude romântica em relação à mulher. Freqüentemente, baseou-se nas lendas do rei Artur. O poema narrativo mais importante da literatura francesa da Idade Média é o Romance da Rosa, uma alegoria em duas partes. Guillaume de Lorris, que viveu no início do séc. XIII, escreveu a primeira parte antes de 1250, e Jean Meung (1250-1305) escreveu a segunda parte provavelmente 50 anos mais tarde. A primeira parte constitui um manual do amor cortesão. A segunda parte ataca os males sociais da época. O Romance da Rosa deu início a um tipo de filosofia moral que reapareceu mais tarde nas obras de Rabelais, Molière e Voltaire. As canções de amor eram as mais importantes entre as ricas e variadas formas poéticas usadas pelos trovadores. Nelas, o poeta imaginava a dama de seus sonhos como um modelo de virtude, e dedicava seu talento a cantar-lhe as qualidades. O ideal amoroso dos trovadores e o enaltecimento das mulheres influenciaram muitos escritores posteriores, entre os quais Dante e Petrarca. A literatura romântica criou de um trovador modesto (cuja língua era o provençal, a langue d’oc) e de seu colega, o trouvère (trovador do Norte da França, que compunha em langue d’oeuil), cantando suas trovas acompanhadas por um alaúde ou instrumento semelhante. A evidência histórica não confirma esta ideia. A trova que Ricardo, Coração de Leão, ele próprio um trouvère, compôs no cativeiro em Dürnstein mostra que a Arte de Trovar era uma vocação aristocrática. Um trovador particularmente famoso foi Bernard de Vendadorn, que Eleanor de Aquitânia levou consigo para Inglaterra quando se tornou mulher de Henrique II e mãe de Ricardo, Coração de Leão.

Na Alemanha, por volta de 1180, os trovadores designavam-se a si próprios Minneesänger – ou seja, cantores do amor – mas do amor cortês, separado do amor físico. Suas trovas sobreviveram graças à sua expressão melodiosa (muitas vezes inspirada na dos trovadores). Um dos trovadores mais conhecidos era Walter von der Vogelweide (c. 1170-1230), retratado na ópera romantica de Richard Wagner, Tannhäuser (1845), uma história sobre trovadores e seus torneios musicais. Muitas canções e obras literárias relatam as façanhas dos trovadores. Um romance de sir Walter Scott, O Talismã, conta a história de Blondel, o trovador favorito de Ricardo, Coração de Leão, rei da Inglaterra. Outro aristocrata de grande importância para difusão das atividades dos trovadores, sendo ele mesmo um deles, foi Afonso X, O Sábio ou Alfonso, El Sabio, rei de Castela (Toledo 1221 – Sevilha 1284). Foi imperador germânico (1267- 1272). Notável pelo incentivo aos empreendimentos culturais. Escreveu em galaico-português cerca de 30 cantigas inseridas nos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional; são na maioria, poemas satíricos de conteúdo moral e político. Os quatrocentos e vinte poemas musicados que escreveu, denominados Cantigas de Santa Maria, chegaram-nos em dois códices, um do Escurial e outro de Florença, ambos com belas iluminuras.

A Carreira Musical

A música elegeu para si própria uma padroeira, a mártir Santa Cecília, do século II, que entoava hinos enquanto era queimada viva num caldeirão sobre carvões em brasa. Apesar de sua padroeira, a música continuou a ser uma carreira de homens, talvez até 1600 quando apareceu Francesca Caccini, a primeira compositora famosa. O músico secular era também um nobre, como o duque de Arquitânia ou o rei Ricardo I, da Inglaterra, ou ainda um jogral itinerante, inteligente mas inculto, ou um simples trabalhador que cantava enquanto trabalhava, inventando, talvez, as cantigas à medida que lhe ocorriam. Um rapaz musicalmente dotado esperaria por uma carreira primeiro como corista, quer da corte quer da Igreja, o que no fundo era a mesma coisa. Se fosse descoberto cedo o suficiente, receberia uma educação esmerada em todos os domínios, mais especialmente em música. Era sua única oportunidade de tornar-se um músico profissional, tocando, cantando ou compondo. Muitas vezes, para prolongar sua carreira, fazia-se monge – o celibato não era impossível; alguns músicos mantinham-no, o que não era difícil com uma mestra tão exigente como Santa Cecília. Não surpreenderá, no entanto, verificar que nem todos os monges respeitavam estritamente seus votos. O mosteiro dos beneditinos, na Baviera, possui uma coleção de cantigas do século XII, denominada Carmina Burana, muito ligada à bebida, à dança e ao amor. Muitas dessas cantigas eram compostas pelos goliardos, ou estudantes de vida irregular que deixavam o mosteiro e partiam.

O emprego como músico de igreja não impedia a composição profana; sem a nomeação para a capela de uma corte ou fundação eclesiástica, nenhum músico plebeu podia aspirar ao sucesso.

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O Pentagrama – Guido d’Arezzo

Um músico assim era o monge Guido, mestre de coro da Catedral de Arezzo na Toscana e encarregado do coro da escola por volta de 1030. Conhecendo certamente os progressos musicais, e sendo ele próprio um músico inventivo, concebeu um sistema para aprender música de ouvido. Descobriu uma melodia profana, hino que os meninos cantores entoavam a São João, para que os protegesse da rouquidão, cada linha da qual começava com uma nota mais aguda que a anterior. Associou à melodia a um texto sagrado em Latim, cuja primeira sílaba de cada linha podia dar o nome de cada nota da escala musical. Em seguida, fixou cada mnemônica num esboço da mão humana:

Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labi reatum
Sancte Ioannes

Cuja tradução é: Para que nós, servos, com nitidez e língua desimpedida, o milagre e a força dos teus feitos elogiemos, tira-nos a grave culpa da língua manchada, São João.

Cada articulação da mão de Guido foi associada a um intervalo da escala, de tal modo que os meninos do coro de Arezzo sabiam exatamente qual nota deveriam cantar: Guido afirmava que assim se poderia aprender música em apenas alguns dias, em vez de levar várias semanas. Solfège ou solfeggio (solfejo), como o sistema ficou conhecido, foi rapidamente adotado pelos estudantes de canto para a memorização de exercícios vocais. Durante o século XIX, o sistema de Guido foi adaptado para transformar-se no sol-fá tônico dos nossos dias, e usado para ensinar não-músico a cantar música coral. Foi nessa época que alguns tons foram reformulados de modo a facilitar o canto. Ut tornou-se dó, sa tornou-se te (em francês si). Guido d’Arezzo também escreveu bastante acerca do novo sistema de notação usando uma pauta com várias linhas, onde o fá e o dó eram especialmente assinalados com tinta colorida para marcar o tom. A mão de Guido e seu sistema depressa floreceram e encorajaram outros compositores a fazer música mais elaborada e interessante.

Em meados do século XIII, a sutileza da organização musical era de tal ordem que exigia um novo e mais preciso método de notação para traduzir a duração extra de cada nota, bem como as pausas intervenientes. Linhas e compassos estavam ainda por ser inventados, mas a métrica musical encontrava-se já dividida em perfeito, três tempos (ligados à Santíssima Trindade e, por isso, mais adequados à música de igreja), representado por um círculo, e imperfeito, dois tempos, representado por um semicírculo como um “C”. A igreja discordou do “C” e recomendou o “O”. Em termos modernos, as valsas vienenses estavam na moda e as marchas, não. As danças populares sempre preferiam “O”, mas os hinos anglicanos e os coros luteranos estão mais próximos do “C”. Há sem dúvida exceções e combinações – por exemplo, a jiga no compasso de 6/8 (a melodia Lilliburlero é um exemplo conhecido). A moderna notação em claves aguda e grave ficou definida somente em 1600 e, desde então, tem-se desenvolvido nitidamente – quer dizer, até os tempos modernos.

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A Escola de Paris – Criatividade

Mudanças de direção no campo artístico geralmente afetam a música em último lugar. Uma exceção foi a coincidência, em Paris, na segunda metade do século XII, de uma universidade com duas escolas, da construção de uma nova catedral dedicada a Nossa Senhora de Paris (a catedral de Notre Dame) e do aparecimentode um grande livro sobre música para a celebração do serviço eclesiástico naquela igreja. Continha todas as ocasiões de celebração do ano litúrgico, com música de uma complexidade até então desconhecida. O manuscrito original desse livro, o Magnus Liber Organi, desapareceu há muito, mas foram encontradas cópias, com pequenas diferenças entre si, na Espanha, Inglaterra e Itália – sinal de que a música circulava já internacionalmente. Graças a dois estudantes, um parisiense chamado Jean de Garland, por volta de 1240, e um escritor anônimo, provavelmente inglês, em 1275, sabe-se que o Grande Livro de Organum foi primeiramente compilado por Mestre Léonin entre 1163 e 1182 e depois revisado pelo seu sucessor, Pérotin, o Grande, entre fins de 1190 e talvez 1225. Tudo o que se sabe desses dois compositores foi dito pelo suposto estudioso inglês, identificado por um editor do século XIX como “Anônimo IV”. Os estudiosos modernos mostram muitas reservas em admitir as façanhas de Léonin e Pérotin e pode-se mesmo parguntar se eles não terão sido fruto da imaginação do “Anônimo IV”. Mas a música aí está, e é testemunha de dois estilos, portanto de duas gerações, e de dois músicos individuais suficientemente importantes para serem recordados por um estrangeiro um século depois do livro ter começado a ser conhecido. A especialidade de Léonin era um estilo harmônico relativamente livre para duas ou três vozes. A abordagem de Pérotin era mais rígida. Sua quadrupla (música para quatro vozes) parece, no papel, automática e insípida, mas quando é executada revela-se surpreendentemente humana e expressiva. Duas obras de Pérotin – Sederunt Principes e Viderunt Omnes – encontram-se gravadas em disco, assim como outras composições do Magnus Liber.

Expandindo Horizontes

A nova concentração de músicos num centro cultural mais sofisticado, Paris, logicamente acelerou o desenvolvimento da música. Não constitui surpresa o fato de a música para duas vozes ter-se transformado rapidamente em música para quatro vozes, cada uma delas desenvolvendo-se numa linha horizontal, coincidindo verticalmente com um efeito agradável (ninguém falava em harmonia, embora seja esse o termo próprio para o resultado obtido). Esperava-se também que os compositores começassem a se identificar, ainda que apenas um de cada vez e a intervalos longos. Apesar de a Igreja ser a única a sustentar o desenvolvimento e a lucrativa carreira de um músico ambicioso, o século XIII é muito recordado pela influência mútua entre a música profana e a sagrada.

Canções para o Povo

A forma musical do século XIII foi o motete (do francês mot, que significava palavra), cuja essência consistia na introdução de textos profanos em vernáculo. Na França, Espanha e Inglaterra encontramos hinos na língua nacional, não em Latim, e música profana escrita e composta com verdadeira sofisticação.

Que a música popular era sofisticada, já se sabe através de Gerald Cambrensis, escritor galês de 1175 que observa que numa reunião de compatriotas seus eram ouvidas tantas composições vocais quantos os cantores presentes. Pode-se ter certeza de que alguns deles acompanhavam seu vizinho, tal como se faz hoje, e que harmonizavam em terças e sextas – esses intervalos melífluos (que flui como mel; suave, brando; doce) que a Igreja desprezava mas que, mais tarde, compositores ingleses espalharam pela Europa. Imitavam também a melodia do cantor que estava a seu lado, criando depois um cânone, como em Sumer is icumen in, e posteriormente Three blind mice e London’s burning?. O conceito de cânone é, ao mesmo tempo, intelectual e ingênuo. A criança fica encantada e fascinada ao descobrir que resulta harmonia quando alguém segue a melodia começada pelo companheiro; o compositor erudito deleita-se com a criação de tais complicações, levando-as assim ainda mais longe.

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Música Vocal – Introdução

Durante o século XV, consolidaram-se as formas musicais religiosas que, além do gregoriano, continuariam existindo até os nossos dias: a missa e o motete, estabelecendo-se o caráter unitário da “missa”. Ao longo dos séculos XV e XVI foram oferecidas várias soluções para o problema da unificação das suas diferentes partes, segmentando-se em quatro tipo: Cantos firmus ou missa tenore, baseada numa melodia já existente, em que aparece uma voz contínua (normalmente de tenor) nas diferentes partes da obra. O Cantus firmus original pode ser religioso ou profano. Entre esses últimos, o mais conhecido e utilizado foi a canção L’homme armé, base para inúmeras missas. Missa paráfrase: parte também de uma melodia monódica anterior, utilizada como base na construção da missa polifônica. As difentes partes da melodia original aparecem nas diferentes vozes da missa, imitando-se umas às outras. Missa paródia nesse caso, utiliza-se uma obra anterior polifônica, normalmente um motete. Ao escrever a missa, o autor não só modifica o texto, como acrescenta, suprime e intercambia as linhas melódicas ou, inclusive, as modifica, mas ainda imitando-as. Missas originais ou sine nomine: o compositor utiliza a sua técnica e o seu talento para preparar um material completamente novo. São identificadas pelo modo como estão compostas ou, também, por algum engenho técnico em que se baseiam. As missas correspondentes a esses grupos são conhecidas pelos nomes das obras que lhes serviram de ponto de partida (Missa L’Homme armé, Missa Pange Lingua). Nelas, o compositor quase sempre apoia-se numa tradição anterior, do mesmo modo o homem medieval e o renascentista usavam o pensamento clássico, a Bíblia e autores escolásticos como fontes de conhecimento, tão válidas quanto o racionalismo científico. As missas que contêm as cinco partes do ordinário são conhecidas como Missa de Glória. Há, ainda, as missas fúnebres, chamadas Réquiem ou Pro defunctis, com parte do ordinário, partes próprias da liturgia mortuária (como irae ou Lux aeterna) e algumas partes do ofício, mas nunca o glória. É grande sua variedade e seus recursos técnicos e estéticos. A recriação de melodias gregorianas é frequente no ofício fúnebre, utilizando o cantus firmus e, também, sons mais graves, que representem a morte ou o inferno. Ao longo do século XV, o motete perdeu o seu caráter profano, convertendo-se em protótipo religioso, que adotou o Latim como língua e reduzindo a quantidade de textos. Também permitem uma grande liberdade textual, passando a ser utilizados tanto nas cerimônias litúrgicas, como em outras funções religiosas (procissões) e nas devoções domésticas. Pode-se defini-lo como um texto dividido em pequenas seções, com um certo sentido lógico, às quais correspondem episódios musicais. O contraste entre as seções pode ser: temático, técnico ou baseado no colorido e tessitura das vozes. A economia das cadências presente no motete, bem como a concatenação dos seus episódios conservam o seu caráter unitário.

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Os Mestres Inglêses e Franco-Flamengos do Século XV

Terminada a guerra dos Cem Anos, a Inglaterra e o ducado de Borgonha converteram-se nos centros da cultura musical do século XV. Os compositores ingleses viajaram ao continente europeu na primeira metade daquele século. Alguns estabeleceram-se onde hoje é a França, na época território inglês. O mais importante foi John Dunstable (1385-1453), autor de motetes, hinos e antífonas, além de outras obras de caráter profano. No seu trabalho, o texto é o que define a forma musical, o anúncio do que seria uma das características do renascimento. No entanto, a grande contribuição da música inglesa está na busca de sonoridades completas (acordes com terceiras e quintas, ou sextas). O ducado de Borgonha comandou a evolução musical da época. Sua pacífica situação política, em relação ao resto da França, favoreceu o desenvolvimento de uma corte refinada, com um complexo cerimonial e gostos artísticos elegantes. A burguesia contribuiu igualmente para o desenvolvimento artístico, cujos resultados manifestaram-se, sobretudo, na música e na pintura. O auge burguês e a transferência do ducado ao imperador Maximiliano I, em 1477, trasladou o centro cultural para os Países Baixos. Esta escola, ao longo de quase 200 anos espalhou sua influência por grande parte da Europa. A presença de cantores germânicos, a sedução das obras inglesas e os intercâmbios com Itália, contribuíram para a criação de uma linguagem internacional comum.

GUILLAUME DUFAY (1400-1474) O mais representativo dos compositores flamengos da primeira geração. Nascido na fronteira franco-belga, passou parte de sua vida na Itália, ao serviço de instituições eclesiásticas e de nobres, como a corte de Sabóia ou os Malatesta, e morreu como cônego de catedral de Cambrai. Escreveu um moteto para a consagração da catedral de Florença, em 1436, sendo que seu legado mais transcendente é um conjunto de missas, oito das quais, sem nenhuma dúvida, são de sua autoria. São missas cantus firmus para tenores religiosos, a quatro vozes, sendo que, em determinadas passagens, o número de vozes é reduzido e o cantus firmus eliminado. A alternância entre passagens a quatro e a duas vozes, ou mesmo a três, aparece ao longo da polifonia de Dufay. Esta seria uma das características da música seguinte. Dufay também foi o autor da primeira missa de Réquiem que se conhece, apesar de não conservada.

JOHANNES OCKEGHEM (1420-1495) É a figura indiscutível da polifonia religiosa de meados do século XV. Nunca viajou à Itália e sua vida esteve sempre ligada à França e à sua corte. Foi um compositor pesquisador, o que não significa que não tivesse talento. Algumas de suas obras contêm uma técnica de contraponto bastante complexa, além de um refinamento intelectual fora do comum. A produção mais importante de Ockeghem foram as suas missas, também compondo belos motetes marianos e um Réquiem polifônico, que é o mais antigo que se tem notícia. Utiliza a técnica do cantus firmus nas treze missas que compôs, além de rebuscados efeitos, como na Missa Prolationum, onde cada voz segue um compasso diferente, originando contínuos cânones (cada voz repete ou imita o anterior). Quase todas foram escritas para quatro vozes, com tessituras clássicas (superius, altus, tenor e bassus), utilizando registros graves e evitando o cruzamento entre elas.

JOSQUIN DES PRÈS (1445-1521) Uma das mudanças mais importantes deste período foi a definição da figura do compositor como indivíduo, já que, durante os primeiros séculos, as obras anônimas, os manuscritos e suas variantes, ou improvisações dos cantores, foram os que formaram os livros litúrgicos do coro. A partir do século XV, destacaram-se os caracteres individuais. Deste modo, podemos falar de várias gerações de músicos franco-flamengos, a terceira das quais, entre o final século XV e começo do século XVI é representada pelo francês Josquin des Près. É provável que tenha começado, menino, no coro da igreja de Saint Quentin. Depois, passou vários anos na Itália, mais precisamente em Milão, Roma e Ferrara. Foi cantor da capela papal e da catedral de Milão, e também serviu a nobres como os duques Galazzo Maria Sforza e Ercole I del Este. Trabalhou para a corte francesa, passou seus últimos anos como cônego de Santa Gúdula, Bruxelas, e foi prebendado (cargo eclesiástico) na corporação dos cônegos de Condé-sur-l’Escaut, onde morreu. Sua vida errante demonstra o interesse que havia na contratação de seus serviços. Des près também foi um dos primeiros autores cuja obra difundiu-se graças à imprensa. Em 1501, apareceria a primeira antologia de música polifônica impressa. Sobre des Près, Lutero comentou: “o amo das notas, elas devem fazem o que ele queria, enquanto que os outros devem fazer o que queriam as notas”. Foi comparado com Miguel Ângelo pelo humanista florentino Cosimo Bartoli. Se havia algo em que os reformadores religiosos e os humanistas coincidiam, quanto à opinião musical, era em priorizar mais a palavra do que a música. Este foi o princípio adotado por Des Près: o texto determinava o desenvolvimento da linha melódica, tanto na sua forma como no seu significado. Buscando textos mais claros, eliminou as complexidades melódicas e de contra-ponto de compositores como Ockeghem e respeitou a acentuação das palavras e a pontuação das frases. A importância da letra e a maior variedade dos textos consolidam o motete, que passou a ter preferência em relação à missa por ser uma forma mais refinada. Des Près compôs, além de obras profanas em francês ou italiano, umas vinte missas e quase uma centena de motetes. As missas representam o lado mais conservador de sua música, já que utilizou os recursos convencionais. Na Missa Pange Lingua aplicou a técnica de paráfrase: o início e outros fragmentos desse hino gregoriano aparecem em diferenciadas vozes, imitando-se umas às outras. Uma maior variedade e qualidade podem ser apreciados nos seus motetes, onde a técnica de imitação, com sucessivas entradas das vozes, substituiu à técnica do cantus firmus, variando o colorido da obra de acordo com a altura das melodias e com a disposição das partes polifônicas. Em algumas das suas obras, talvez da última etapa, Des Près, tentou expressar, com o movimento da música, o significado das palavras, como fariam depois os madrigalistas e os adeptos da música reservata. Em muitos casos, Des Près musicou motetes, com textos bíblicos (principalmente Salmos) e litúrgicos (sequências). Entre os muitos notáveis compositores franco-flamengos contemporâneos de Des Près, que trabalharam o gênero religioso com grande perícia, Jacob Obrecht (1450-1505), autor de várias missas cantus firmus, e Heinrich Isaac (1450-1517), que compôs mais de trezentas obras para o próprio das missas dominicais e dias santos, reunidas no Choralis Constantinus. Na Alemanha, a música polifônica litúrgica conservou muitas características medievais até o século XVI, demonstrando pouca originalidade ao utilizar como modelo as composições franco-flamengas. A monodia religiosa ocupava um lugar de destaque, com obras litúrgicas em latim, na linha do posterior cantochão; em alemão, com caráter devoto; e sobre textos bíblicos, interpretados pelos meistersingers, herdeiros da tradição das cortes medievais, influenciados pelo cantochão e pela canção popular.

A Inglaterra ocupava um lugar periférico e conservador desde meados do século XV, depois de Dunstable e do isolamento político desencadeado pela Guerra das Duas Rosas. Os músicos ingleses quase não mantiveram relação com o continente europeu até a segunda década do século XVI. Por esse motivo seu estilo praticamente não utilizou as técnicas do contra-ponto imitativo dos franco-flamengos; ao contrário, deram preferência a uma sonoridade com acordes cheios para quatro, cinco e seis vozes, dentro de um estilo bastante simples e com passagens melódicas enfeitadas em algumas sílabas. Além das formas habituais da música litúrgica (missas e motetes), os compositores ingleses continuaram praticando sua tradicional inclinação pelos textos marianos, especialmente o magnificat, canto que utilizava a polifonia somente na metade dos versos (pares ou ímpares), alternando-o com o cantochão, sendo John Taverner (1495-1545) seu representante mais importante. Quanto à música religiosa não litúrgica, desenvolveu-se o carol, canção de Natal com várias estrofes, seguidas de um burden (estribilho). Nelas, utilizava-se o inglês e o latim indistinta e, às vezes, conjuntamente; seu sabor popular concedeu-lhe um uso didático. A duplicidade linguística que se pode observar em todas as escolas – música litúrgica, em latim, e canções populares, em linguagem vulgar -, observa-se, também, na Espanha. A maior parte dos compositores como Juan Cornago, Juan de Anchieta (1462-1523), Francisco de Peñalosa (1470-1528) e Juan de la Encina (1468-1530) serviam às cortes de Aragon ou de Castela, compondo música tanto religiosa como profana. A polifonia litúrgica espanhola caracterizou-se pela simplicidade, pelo silabismo, pela clareza do texto e pela escassez de elementos profanos. Em catelhano, o villancico(canção de Natal com quadras e estribilho) foi a forma mais comum, utilizando diferentes números de vozes sobre textos tanto profanos como religiosos. Estas composições encontram-se reunidas no Cancionero de Palacio e no de Upsala. Finalmente, na Itália, a lauda, herdeira das laude polifônicas, foi adotada pela maior parte da música religiosa. Utilizaram-se melodias populares conhecidas, modificando-se o texto original. Sua música era semelhante à frottola profana: simples, homorrítimica e silábica, sua difusão enlaça-se a certas estruturas do século XVI, como o oratório.

ORLANDO LASSO (1532-1594) Orlando Lasso entrou para a história como modelo ideal de músico, tanto social como esteticamente. Sua vida parecia não ter contratempos e não conheceu o fracasso; seu destino foi saborear o êxito; foi admirado, mimado e disputado por reis e príncipes: o imperador Maximiliano II, o rei Luís IX, da França, e o próprio Papa, que era também um príncipe, lutavam para que ele abandonasse a corte bávara, ainda que temporariamente, para deleitá-los com algumas mostras de sua arte. Viajante incansável, apesar da promessa que fez aos 24 anos – de manter um comportamento estável enquanto trabalhasse para Alberto V, o duque da Baviera -, Lasso soube assimilar e aproveitar todas as novidades que surgiam tanto no mundo católico como no luterano; e soube, também, deixar assentados os fundamentos de sua técnica e de sua imaginação sem limites em todos os lugares em que fez escala durante seus intermináveis traslados pela Europa. Lasso deixara sua pátria – Mons, na região belga de Hainaut – aos doze anos, para se estabelecer na Itália, primeiro como menino-cantor da Capela de Fernando de Gonzaga, o vice-rei da Sicília, e mais tarde como cantor em Milão, Nápolis, Florença e Roma – na Capela de São João de Latrão, sede episcopal do Papa. Todas essas mudanças se realizaram no espaço de apenas dez anos, pois em 1555 Lasso já se encontrava na Antuérpia buscando editor para as suas primeiras obras. Depois de permanecer um ano em sua terra natal, provavelmente para se restabelecer da intensa experiência italiana, passou o resto da vida na corte de Munique, onde faleceu, segundo registra a história, de demência senil, em 1594. Foi em Munique que Lasso encontrou o seu lugar, pois a música interpretada na Capela da corte não conhecia barreiras estéticas nem ideológicas. A técnica era única e aplicada indiferentemente ao religioso e ao profano, e todas as tendências eram aceitas: a villanella e o madrigal italianos, a chanson flamenga, o lieder alemão… Porém, e apesar de que em Munique reinasse o humanismo musical, havia certa predileção pela herança litúrgica dos antepassados flamengos: a Missa e o Moteto.

A Missa, nas suas três variedades de método musical, interpretada a três vozes desde o século XIV, teve suas estruturas estabelecidas por Dufay e alcançou o auge com Palestrina, Morales e Victoria, seus contemporâneos: missa de cantus firmus: construída sobre uma melodia litúrgica preexistente; missa parodia: que utilizava em sua construção fragmentos polifônicos já compostos em forma de chanson ou moteto; missa original: na qual o compositor está livre de vínculos temáticos e elaborava não só o procedimento como também o material melódico com o qual trabalha o contraponto e a harmonia.

O Moteto é a forma litúrgica mais utilizada na estrutura musical religiosa do século XIII ao XVIII. Na Idade Média, seria o discantus, interpretando-se um tropo (ampliação de um canto litúrgico de formação melismática, mediante acréscimo ou substituição) sobre uma palavra do texto litúrgico cantada por um tenor; depois, com a Escola franco-flamenga, o tenor passou a ser cantus firmus, sustentáculo da tessitura contrapontística – o que, na verdade, não passa de um modo de evolução do discantus. Um tema para cada uma das diferentes seções do texto, desenvolvido em superposição vertical ou horizontal de sons, harmonia ou contraponto, criaria a unidade prática aplicável a qualquer estrutura litúrgica: Missa, Hino, Salmo, Lição, Responso ou Antífona.

Omnes de Saba venient e Tui sunt coeli são motetos que se interpretam no ciclo litúrgico do Natal. O texto do primeiro corresponde à primeira seção gradual da missa do dia de Reis; o segundo, ao ofertório da missa do dia de Natal. Salve Regina e Alma Redemptoris Mater são cânticos à Virgem Maria que os livros litúrgicos denominam Antífonas marianas. Sua função, desde meados do século XIV, é a de rematar o Ofício das Completas, a última hora litúrgica do dia.

Cada um dos quatro tempos do ano litúrgico, que transcorre paralelamente às quatro estações solares, interpreta a sua própria Antífona: do Advento (quatro semanas antes do Natal) ao dois fevereiro (quando se celebra a Purificação ou festa das Candeias): Alma Redemptoris Mater; desta festividade até a Páscoa: Ave Regina coelorum; durante todo o tempo pascoal, que termina em Pentecostes: Regina coeli; desta data até o novo Advento: Salve Regina.

Nunca a história do moteto escreveria páginas tão grandiosas quanto com os Salmos penitenciais (Psalmi poenitentialis) de Orlando de Lasso. Os números 6, 31, 37, 50, 101, 139 e 142, do Saltério composto pelo Rei Davi, não representam só o apogeu das sofisticadas técnicas da escola franco-flamenga, senão que significam, sobretudo, um compêndio das características técnicas fundamentais do moteto: cada versículo se enlaça ao seguinte com um diferente tema musical; cada uma das vozes entra gradualmente e de forma imitativa; o contraponto serve de contraste à harmonia; a utilização de um grupo de cinco vozes contrasta, talvez de forma concertada, com blocos a duas, três ou quatro vozes; a extensão do texto cria um moteto monumental Os Salmos penitenciais não cumprem uma função litúrgica em sentido estrito; formam, contudo, uma estrutura completa cujo fim é ser recitada ou cantada em serviços religiosos privados e em atos de austeridade, de sobriedade, nos quais a compunção é o sentimento dominante. A prática destes atos piedosos era uma herança ideológica e gráfica da Idade Média: os Saltérios miniados, que reúnem salmos, orações e ofícios privados para o consumo de reis e senhores feudais converteram-se, com a invenção da imprensa, nos Livros das Horas, pequenos volumes que uniam a doutrina espiritual gráfica e os Ofícios privados para cada dia da semana, para cada hora do dia ou para atos de devoção especial durante o ano. Não se sabe o verdadeiro motivo que levou Lasso a compor os seus salmos. Sabe-se que os escreveu recém-chegado na capela do duque bávaro – por volta de 1556 -, regida, no âmbito espiritual, pelos jesuítas. No palácio de Alberto V (como era prática dominante também nos ducados italianos), a piedade individual e o serviço religioso privado substituíam as liturgias catedralícias; e em Munique esta piedade devia ser intensa e os ofícios especialmente solenes, porque a Baviera, na época de Alberto IV, era o único reduto da Contra-reforma numa Alemanha dominada pelo espírito protestante. A cópia manuscrita que Alberto V mandou fazer proporciona uma mostra das tendências estéticas que se gestavam na corte, um amplo panorama caracterizado por uma nova forma de sentir a música. Tão nova que, alguns anos depois, daria pé a uma forte controvérsia entre a tradição de Artusi e a vanguarda de Montiverdi, até que este último, em Veneza, soube transformá-la em prática corrente. Conservando na Biblioteca do estado bávaro de Munique, o original dos Salmos penitenciais foi copiado a mão em quatro volumes, luxuosamente encadernados, entre 1563 e 1570: dois volumes estavam destinados à música e outros dois aos comentários, ilustrados ambos com cenas bíblicas pelo pintor do duque, Hans Mülich. Estes livros explicam não só os conceitos teológicos dos salmos e a sua interpretação católica, como também a função que a música cumpre. Os comentários do médico humanista da corte ducal, Samuel Quickelberg, adiantavam conceitos que depois, no Barroco, seriam essenciais: a arte de compor consiste em expressar, através dos sons, as emoções do texto, em reviver, com uma simbologia de figuras melódicas, todas as possibilidades que oferece a acústica. “Singulorum affectum vim exprimendo, rem quasi actam ante oculos ponendo” (expor a força dos afetos, mostrar o texto como realidade diante dos olhos): esta é linguagem da grande comoção das artes plásticas da época, da união de todas as artes, defendida mais tarde pelo Barroco; é a doutrina dos afetos, das figuras retóricas que Quickelberg define como música reservata, é a fidelidade ao conteúdo emocional do texto, seu predomínio sobre a música, enfim, uma antecipação a Lasso, à essência interpretativa da Seconda Prattica montiverdiana.

Espanha: Música e Músicos

A Inglaterra e a Espanha têm impressionantes afinidades musicais. Ambos os países tiveram períodos medievais ricos e fascinantes, nos quais as invasões e os governantes de várias nacionalidades fizeram com que se abrissem a influências amplamente diferentes do exterior. As conquistas dos compositores medievais foram eclipsadas por quase dois séculos de absoluta maestria na música polifônica vocal da Renascença. O declínio veio no século XVIII, embora um estranho raio de luz ainda iluminasse um cenário bem árido.

DOS MENESTREIS MOUROS A FANTASIA

A Espanha sempre trouxe imagens musicais fortes à mente das pessoas. Muitas vêm do gosto muito característico pelo instrumentos típicos das suas várias regiões. A invasão moura, em 711, trouxe numerosos instrumentos, que acrescentaram uma vibração sem precedentes aos sons disponíveis aos compositores da Península Ibérica. Entre eles, havia diversos instrumentos de percussão, como o bandair (tamborim) e o ud (alaúde). Este último foi particularmente favorecido pela sorte, pois a Espanha desenvolveu um apetite sem fim por instrumentos de cordas dedilhadas, destacando a vihuela (misto de alaúde e violão) e o próprio violão, um símbolo permanente da Espanha. Em seu celebrado Libro de buen amor, Juan Ruiz, arcebispo de Hita, cita uma lista enorme de instrumentos utilizados no século XIV. Ele evoca um espetáculo contagiante de cordas, sopros e percussão prorrompendo em “um canto de aclamação multicolorido”, como os pássaros da primavera recém-descobrindo seu poder de cantar (de A Short History of Spanish Music, de Ann Livermore). Sabe-se que muitas das músicas seculares e litúrgicas foram escritas ou improvisadas durante o período medieval. Os cristãos, muito menos intolerantes nesta época do que alguns séculos mais tarde, deliciavam-se com as atividades dos menestréis mouros, bem como preferiam seus fabricantes de instrumentos. Infelizmente, pouca coisa sobreviveu ao tempo, e o que existe nos famosos manuscritos de Calixtine e Las Huelgas têm uma forte influência internacional, chegando à elegia e à polifonia inglesa. O início da Renascença assistiu à criação da Espanha moderna, com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492, que unificou os dois estados mais influentes da península. Apesar de que um dos primeiros atos do casal foi a criação da famosa Inquisição, esta foi uma época grandiosa e, de várias maneiras, muito liberal para a música espanhola. A composição secular floreceu como sempre e tinha não apenas os sons distintivos das várias línguas espanholas, mas também formas de versos característicos que, ao serem musicados, frequentemente remetiam à música folclórica. O Romance e o Villancico foram as principais formas. Sendo o Romance uma expressão literária, baseada numa espécie de canto popular, e a palavra Villancico servindo para virtualmente tudo na música espanhola que tivesse um refrão preliminar, independente da existência da palavra “coro”; com efeito, a palavra queria dizer canção espanhola que não deveria ser confundida com o Romance. Juan de Encina é o compositor mais conhecido. Sua música é altamente expressiva, e ele compôs melodias com um sotaque espanhol característico, obtido pela citação ou imitação de canções ou danças folclóricas. Sua carreira coincide precisamente com os grandes eventos de 1492. O século XVI assistiu à publicação de uma vasta coleção para a alaudística vihuela, um dos instrumentos mais intimistas e mais belos do período. Fantasias ornamentadas de Luis de Milán estão lado a lado com variações maravilhosas sobre linhas ou melodias do baixo tradicional; no século XX, Rodrigo pôde “se apropriar” da Canarios, de Gaspar Sanz (uma versão mais recente de um número de dança popular) sem comprometer de forma alguma a modernidade popular de seu Concerto para Violão.

MÚSICA CELESTIAL

O século XVI é dominado pelo grande triunvirato de Morales, Guerrero e Victoria. Eles escreveram principalmente música sacra, no extraordinariamente popular estilo polifônico do período. Não era música a capela, pois todas as indicações são de que as capelas e catedrais empregavam instrumentistas para missas e outros eventos. Mas o estilo é comparável ao de Byrd, Palestrina e Lassus. As partes se “movimentam” com pontos em comum, a dissonância é estritamente controlada e as linhas melódicas frequentemente se baseavam em material já existente, como uma canção ou moteto popular. Não dá para dizer que a música soe espanhola, mas muitos apontam as qualidades expressivas da música, notavalmente, sua preocupação com o texto (Palestrina opta geralmente por algo mais generalizado); isto pode ser ouvido de maneira mais nítida no extraordinário Réquiem de Victoria. Sua música tem também uma qualidade elevada e mística, bem peculiar à Espanha da época. Estes três compositores são o autêntico pináculo da música espanhola. Assim como a Espanha chegou aos céus com sua música coral, os fabricantes de órgãos fizeram coisas espantosas em vários séculos, produzindo instrumentos de cores surpreendentes e caixas lindamente ornamentadas. Antonio de Cabezón foi o primeiro grande compositor para órgão; suas obras mostram um gênio para a variação e estão cheias de mecanismos contrapontísticos intrincados. Ele foi sucedido por uma séria de grandes organistas, como Joan Baptista Cabanilles. A tradição de teclado continuou no século XVIII, com Antonio Soler, e obteve destaque no renascimento do final do século XIX.

O MAGNETISMO DA MÚSICA ESPANHOLA

A Espanha carregava o fardo de estruturas políticas e religiosas ortodoxas; seus governantes gostavam da pompa e do poder militar; quando invadiram a Inglaterra, colocaram canhões tão pesados no convés de suas embarcações que não podiam ser armados e disparados a tempo de eles se defenderem do ataque dos ingleses. Não surpreende que um país que se regozijava no espetáculo desenvolvesse um gosto por grandes sinfonias de batalhas para órgão ou combinações instrumentais. Isso passou a fazer parte até mesmo das missas. Joan Cereols (1618-80) sofreu, como todos os compositores espanhóis do século XVII, com a ausência da técnica de impressão de música na Península Ibérica, e suas partituras restantes são caracteristicamente escassas em especificações musicais. Entretanto, elas incluem uma linha de acompanhamento, indicando o uso de instrumentos. Sua Missa de Batalla (Missa de Batalha) é arranjada de maneira esplêndida para três coros, e pode ser (nunca saberemos o quão autenticamente) acompanhada, com extraordinário efeito, por cordas, sopros e percussão. A discussão sobre música espanhola não seria completa sem mencionar os numerosos compositores estrangeiros atraídos por seus idiomas nativos. Em suas numerosas sonatas para teclado, Domenico Scarlatti inspirou-se no violão, que então dominava o repertório para cordas dedilhadas, e muitos anos mais tarde, compositores do final do século XIX e do início do século XX rivalizavam-se em suas obras no estilo espanhol. Boa parte da melhor música nesta categoria vasta foi de Debussy e Ravel, cujos resultados, por sua vez, causaram profundo efeito nos compositores espanhóis. A ópera em vernáculo, na Espanha, esteve, como na maioria dos países, constantemente ameaçada pela ópera italiana. Entretanto, a zarzuela mostrou-se versátil. Era um tipo de ópera espanhola com diálogos, bem parecida com o Singspiel alemão, embora mais antiga (as obras mais conhecidas são de Juan Hidalgo, datando do final do século XVII). Apesar dos vários desafios enfrentados, a ópera espanhola renasceu grandemente no século XIX, e vem prosperando desde então.

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Música Vocal no século XVI

As características mais destacadas do século XVI são:

– A culminação da música sacra polifônica
– A ascensão e o desenvolvimento do madrigal na Itália
– A breve mas brilhante obra dos madrigalistas ingleses
– Os efeitos da Reforma
– A ascensão da música instrumental

Na obra de compositores como Isaac e Josquin des Près, a técnica contrapontística da escola flamenga tinha atingido um alto nível de competência e era aplicada à produção de música de real expressividade. Os grandes compositores do século XVI alcançaram ainda maior competência e expressividade em suas Missas e Motetes, estando as realizações supremas nas obras de Palestrina, Victoria, Lassus e Byrd. O Motetos, do qual os alicerces pós-Machaut tinham sido criados por Dunstable e fortalecidos por Dufay e seus sucessores, assumia agora enorme importância. No Moteto verdadeiramente polifônico, os princípios estruturais gerais são os seguintes: cada frase sucessiva de palavras é introduzida por um “ponto de imitação” ou “fuga”, (note-se que essa técnica de imitação é importante não só como um método estrutural do século XVI, mas também como origem fundamental, a qual atingiu o seu clímax de perfeição nas mãos de J.S. Bach) entrando as vozes uma após outra com a mesma figura melódica, embora não necessariamente na mesma altura de som. Essa figura é usada, geralmente com repetição bastante considerável de palavras, a fim de construir uma “seção” completa; cada seção encerra-se com cadência e, como regra, a figura para o ponto de imitação seguinte surge dentro dessa cadência, pelo que as seções são entrelaçadas. Assim, é criada uma teia contrapontística contínua de som. Os motetos eram escritos para três a oito vozes, embora existam exemplos extravagantes ocasionais, como Spem in alium, de Thomas Tallis, para quarenta vozes, num arranjo para coros em oitenta e cinco partes. Tallis não foi o único compositor do século XVI a tentar uma tarefa de tamanha magnitude e complexidade, mas foi o único a conseguir produzir música real sob tais condições. Entretanto, os motetos não eram sempre e inteiramente contrapontístico em sua tessitura; havia dois outros métodos comuns de procedimento. Um é quase inteiramente sem acordes, com pouco ou nenhum movimento realmente independente das vozes. Ave Verum Corpus, de Victoria, e O Bone Jesu, de Palestrina, são bons exemplos. O outro tipo situa-se entre o puramente polifônico e o sem acordes. Baseia-se não tanto na técnica imitativa quanto no contraste de grupos variáveis de vozes dentro do coro que consistia em não menos de cinco vozes. Há relativamente pouco uso do coro pleno, mas a variação nas combinações usadas é explorada até o limite – uma espécie de orquestração vocal. Tu es Petrus, de Palestrina, é um exemplo desse tipo de motete, e o mesmo método é usado com grande eficácia na Missa em cinco partes de Byrd. Em motetos mais extensos, os três estilos podiam ser usados para diferentes seções. Deve-se ressaltar que o tipo de moteto sem acordes manifesta um crescente sentimento pelos acordes e progressões de acordes como tais. Pode-se afirmar que, nas obras polifônicas do período, os acordes nascem do entrelaçamento de linhas melódicas e ritmicas simultâneas, a tessitura é concebida horizontalmente e as progressões de acordes são, por assim dizer, incidentais. Mas numa obra como Ave Verum Corpus parece evidente que Victoria devia estar pensando em termos de acordes, atitude que de agora em diante assumirá importância cada vez maior. A mesma atitude é bastante clara numa passagem como a abertura do Stabat Mater de Palestrina. O material básico para Missas e Motetes era freqüentemente extraído cantochão. O uso do cantus firmus secular para missas estava se extinguindo rapidamente. No começo de sua de carreira, Palestrina escreveu algumas Missas sobre cantus firmi seculares, incluindo duas sobre L’Homme armé, mas de um total de noventa e três, muito poucas baseiam-se nesse material.

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Baseado em textos anônimos e nos textos:

(*) Tradução de Early Music FAQ (Frequently Asked Questions, T. M.McComb, 1º de junho de 95), por Luiz Pinto Façanha Junior.

(**) Pesquisa: Emmanuel Vasconcelos Serra

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