A Surdez de Beethoven

por: Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

Éevidente que as doenças limitadoras, não mortais, atuam de forma depressora e angustiante quando atingem setores do organismo habitualmente solicitados nas atividades de rotina. A situação, não excepcional, tem se manifestado muitas vezes em artistas, criadores ou executantes, em todas as modalidades de arte. E podem acarretar abatimento, isolamento e renúncia ou revolta e luta contra o infortúnio.

O caso que apresentamos na coluna de hoje é o de surdez progressiva em um dos maiores compositores musicais de todos os tempos, identificado como exemplo e reconhecido mesmo por pessoas distanciadas de qualquer relacionamento com a arte. Refiro-me a Ludwig van Beethoven, que viveu de 1770 a 1827.

Suas atividades artísticas iniciais, algo menos precoces que as de Mozart, desenvolveram-se, como as deste, por influência paterna, que utilizava-se da criança, para obtenção de recursos financeiros, até mesmo reduzindo sua real idade. De qualquer forma desenvolveu-se rapidamente e já em 1783 apresentava composições significativas. E, em seguida, a grande carreira, na conquista de seu reino musical, poderoso e expressivo, original e emocionante, que enriqueceu o mundo.

A SURDEZA perda da audição deve ter se iniciado pouco antes dos trinta anos, ou seja, nas vizinhanças do término do século. E progrediu de forma inexorável, podendo admitir-se que antes dos 50 anos já apresentava dificuldade à conversação e nos períodos finais talvez nada conseguisse ouvir. Ela iniciou-se pela queda na percepção dos sons agudos, já evidente perante o som de flauta de um pastor. Foram consultados, sem resultado, inúmeros médicos, inclusive o da corte, Dr. Standenheimer.

A causa da afecção foi muito discutida, com a proposição, em geral inconsistente, do papel de vários agentes nocivos: esgotamento nervoso, abuso de bebidas alcoólicas, sífilis, infecção tuberculosa, febre tifóide.

É evidente a inexistência de qualquer (e raro) processo mórbido familiar dado o estado normal dos irmãos. E também não os traumas na adolescência pelo ambiente intranquilo no lar, fruto da personalidade paterna, homem desabusado, violento, alcoólatra.

A opinião, hoje quase generalizada, é a de presença de otoesclerose. Os dados razoáveis da necrópsia (Dr. Wagner, do Museu de Anatomia Patológica de Viena) são os de “otoesclerose, seguida por neurite do acústico e atrofia final”. Esse diagnóstico foi defendido entre nós pelo colega, especialista, Dr. Frederico de Paula P. Hartung, em 1945. Após análise minuciosa dos aspectos anatomoclínicos da afecção ele agrupou os dados mais expressivos: evolução lenta de cerca de 25 a 27 anos, manifestação bilateral e simultânea, ausência de resfriados seqüentes e de supurações, marcha progressiva e inexorável, inexistência de lesões na caixa do tímpano e na própria membrana, congestão no caracol, como observada na parede do labirinto.

O processo tem sido admitido, ora como ocorrência isolada, ora associado a outras afecções, como nevrite acústica e irritação nervosa. Uma opinião curiosa e aparentemente expressiva, é da presença da moléstia de Paget. A suposição está fundamentada no aspecto morfológico-estrutural do corpo, e , pelo que parece, já data de mais de trinta anos (v.s. Naiken, J. A. M. A., 1971). É sabido que a hipoacusia por otoesclerose tem sido mesmo admitida como forma retardada da moléstia de Paget (Naiken). Essa possibilidade obteve recentemente o apoio significativo do Prof. Philip Sandblom, norte-americano educado na Suécia, onde leciona cirurgia. Em seu admirável livro, CREATIVITY AND DISEASE (1995), acentua as características da cabeça de Beethoven, com a fronte olímpica, a mandíbula maciça e o queixo proeminente. Alguns aspectos discordantes podem ser lembrados: aparente ausência de dor óssea e/ou articular, deformidade dos membros longos, alargamento de zonas de junção; mas não são ocorrências anuladoras da hipótese.

Em síntese, os dados nos permitem a admissão da probabilidade de caso de otoesclerose em portador da moléstia de Paget.

Recentemente, em reduzida menção de trabalho, fiquei ciente da hipótese de intoxicação pelo chumbo formulado por norte-americanos, após exame de fios de cabelo do artista. No desconhecimento da investigação original não posso opinar sobre o achado, mas, de qualquer forma, não creio no afastamento dos seguros dados discutidos.

A ANGÚSTIACompreende-se facilmente a profunda angústia do compositor diante da doença. Sua comovente reação está expressa em inúmeros documentos, conversas, cartas, depoimentos de amigos e particularmente no famoso Testamento de Heiligenstadt, ou seja, escrito em subúrbio de Viena.

Inicialmente, lança apelo à comunidade: Ó vós, homens que me achais ou me considerais odioso, hipócrita ou misântropo, como sois injustos para comigo. Não sabeis a razão secreta do que assim vos parece. Meu coração e meu espírito inclinavam-se, desde a infância, ao sentimento da bondade. …Mas lembrais apenas que desde há seis anos enfrento meu atroz estado, agravado por médicos sem competência, ludibriado ano após ano na esperança de melhora e enfim constrangido perante uma doença crônica, cuja cura exigirá talvez anos, se não, em verdade, seja ela impossível.

E recorda seu passado: nascido com temperamento ardente e ativo, e agora a situação presente, quando devo me separar dos homens e levar vida solitária. Ao desejar sobrepujar o infortúnio acentua não ser possível dizer aos homens falem mais alto, gritem, pois estou surdo. E ainda como posso revelar a debilidade de um sentido que deveria ser, em mim, mais perfeito que nos outros, e que eu possuia outrora com a maior perfeição.

Quase ao final recorda um deprimente passeio no campo, quando não ouvia o canto e a flauta de um pastor. E sua dor explode em dolorosa confissão: Essas experiências me lançaram a um estado próximo ao desespero e pouco faltou para que eu pusesse fim à vida. Roga aos irmãos que, após a morte, seja solicitada aos médicos a descrição de sua moléstia para que o mundo se reconciliasse com ele; acentua o rigor da mensagem afirmando que procurará retardar a morte prematura, antes que tenha ocasião de desenvolver todas as suas faculdades artísticas.

E finaliza com manifestação resignada, pois a morte o livrará de um sofrimento permanente.

Felizmente, entretanto, as condições clínicas não acarretaram maiores limitações e, assim, não o afastaram da pujante criatividade musical.

A MÚSICAUma simples observação nos revela que já no período crítico inicial, de 1799 a 1804, publicou obras magníficas, como as duas sonatas para piano conhecidas como a Waldstein e a Appassionata e a grande Sinfonia de número três, a Heróica, dedicada à memória de um Napoleão que o desiludiu. Nelas, entretanto, sente-se a presença de uma situação espiritual intranqüila. O movimento inicial da primeira sonata é agitado, verdadeira peça a exigir alta categoria do intérprete, embora o final seja repousante. A Appassionata é dramática em seu total brilhantismo. E a Terceira Sinfonia é poderosa, rica em emotividade, com a famosa “Marcha Fúnebre” como Adágio, mesmo que representando a “lembrança de um grande homem”.

Não podem ser ignorados, entretanto, fatos reconfortantes e sucessivos. Já em 1808 foi apresentada em Viena a Sinfonia no 6, a Pastoral, idílica, como “um retrato musical da natureza”, apenas ruidosa no quarto movimento, constituído pela “Tempestade”.

E, ainda, uma ocorrência altamente expressiva. O “Coral” que encerra a imortal Nona Sinfonia ( cerca de 1824) é adaptação de trechos da Ode à Alegria(An die Freude) de Schiller. E as palavras iniciais são uma invocação: “Alegria, tu fonte de luz imortal, filha de Elysium”.

Todas essas ocorrências evidenciam a elevada mentalidade diante da surdez e foi ela que manteve sua arte e sua vida.

Situações realmente constrangedoras manifestavam-se, de fato, quando em função de regente. Voltado para a orquestra e de costas para o público não se tornava consciente das suas manifestações comovidas, consagradoras e ruidosas. E apenas alertado por um assistente virava-se para a assistência. Em duas ocasiões, nas apresentações de Fidélio e da Nona Sinfonia, as situações foram muito expressivas e a elas reagiu com lágrimas.

Assim viveu, assim sofreu, assim musicou o artista surdo que ainda embeleza a vida.


Fonte: Incor – Instituto do Coração – USP – Conteúdo Médico