Alguns personagens históricos se tornaram conhecidos por terem ouvidos de pedra. Os presidentes americanos Ulysses Grant e Theodore Roosevelt e o guerrilheiro argentino Che Guevara fazem parte desse grupo, assim como o romancista russo Vladimir Nabokov, que registrou: “A música me afeta como uma sucessão arbitrária de sons mais ou menos irritantes”. Por muito tempo, eles foram considerados exemplos da surdez para tons, uma insensibilidade relativa para a música que se estima estar presente em 5% da população. Nos últimos anos, alguns cientistas passaram a se perguntar se eles não teriam sido portadores de algo mais raro. Em seu novo livro, Alucinações Musicais (Companhia das Letras; tradução de Laura Teixeira Motta; 342 páginas; 49 reais), o inglês Oliver Sacks, o mais famoso dos neurologistas, especula a respeito de Nabokov para em seguida relatar o caso de uma paciente. Essa mulher, identificada como “L.”, jamais percebeu a música como tal. Desde a infância ela se viu em situações embaraçosas por não reconhecer o hino americano ou um singelo Parabéns a Você. Sua condição é causada por uma anomalia congênita no córtex auditivo, a amusia total. Eis como L. descreve um concerto: “Imagine que você está na cozinha e alguém joga todos os pratos e panelas no chão. É isso que eu ouço”.
A disfunção de L. marcou-a como uma espécie de “alienígena”. Para a maioria das pessoas, é difícil até conceber uma situação como a dela. A música carrega memórias e emoções e está profundamente entranhada em nossa experiência íntima. Mais que isso. Nenhuma cultura conhecida foi desprovida de música, e alguns dos artefatos mais antigos encontrados em espaço virtuals arqueológicos são flautas e tambores. Ao nascer, os bebês já distinguem entre escalas musicais, preferem a harmonia à dissonância e são capazes de reconhecer canções. Seu cérebro está pronto a decifrar musicalmente o mundo. Os caminhos neurológicos da percepção musical estão sendo esmiuçados como nunca. Como diz Robert Zatorre, professor do Instituto Neurológico de Montreal, a música se tornou alimento da neurociência.
Diversos estudos recentes demonstram como o cérebro é esculpido pela música. Por exemplo, o corpo caloso, a grande comissura que liga os dois hemisférios cerebrais, tende a ser maior nos músicos profissionais. Descobertas desse tipo levaram alguns a sugerir que expor crianças pequenas à música clássica lhes daria uma vantagem intelectual, mas essa ideia não é corroborada pela neurociência. As mudanças causadas pela música são muito específicas, e talvez se dêem à custa de outras funções cerebrais. Ouvir Mozart na infância certamente ajuda a ouvir Mozart na idade adulta – mas não traz necessariamente outros ganhos cognitivos. O que esses estudos ressaltam é a plasticidade do cérebro, a maneira como ele é moldado, muito concretamente, pela experiência individual. Não é só estudar música que resulta em diferenças relevantes. O tipo de aprendizado importa. Uma experiência com violinistas e trompetistas mostrou que a ativação do córtex auditivo é maior quando eles ouvem seus respectivos instrumentos. Outra pesquisa aponta que crianças chinesas têm mais chance de adquirir ouvido absoluto, que identifica automaticamente a altura de qualquer nota. Não pela raça, mas porque crescem ouvindo chinês, língua com grandes variações tonais.
Outro enigma desvendado é a razão fisiológica dos prazeres causados pela música. No recém-lançado This Is Your Brain on Music (O Seu Cérebro sob Efeito Musical), o neurocientista americano Daniel Levitin descreve as experiências que coordenou na Universidade McGill, do Canadá. As conclusões são técnicas, mas é possível visualizar a orquestra cerebral em ação. “Primeiro o córtex auditivo entra em ação para analisar os componentes do som”, escreve Levitin. “Depois vêm regiões frontais, relacionadas ao processamento da estrutura e das expectativas musicais. Finalmente, chegamos a um sistema de áreas envolvidas na excitação e no prazer, na transmissão de opióides e na produção de dopamina, culminando na ativação do núcleo acumbens. Os aspectos agradáveis e estimulantes da audição musical parecem ser resultado do aumento de dopamina no núcleo acumbens e da contribuição do cerebelo na regulação das emoções. A música é uma forma de melhorar o ânimo das pessoas, e agora acreditamos saber por quê.”
O trabalho de Oliver Sacks em Alucinações Musicais é muito diverso desse. Ele narra casos peculiares, da mesma forma que em livros anteriores como Um Antropólogo em Marte. São 29 capítulos com relatos sobre perdas e excessos de musicalidade, sobre a relação da audição com os outros sentidos, sobre canções que se incrustam em nossa consciência, repetindo-se incessantemente, ou sobre ataques epiléticos causados por sons específicos (como a voz de Frank Sinatra). Entre os personagens encontra-se Clive Wearing, um pianista que, depois de uma infecção no cérebro, sofreu uma perda tão devastadora da função de memória que todo acontecimento novo é esquecido imediatamente. Apesar disso, ele não só toca piano como um mestre, mas ainda improvisa e – mais surpreendente – aprende novas partituras. Outro exemplo é o de Sheryl C., que subitamente se viu mergulhada numa situação angustiante. Qualquer pessoa é capaz de relembrar, em silêncio, uma música conhecida. Mas, para ela, era como se uma orquestra estivesse dentro de sua cabeça, tocando trechos de A Noviça Rebelde. Reagindo a uma surdez progressiva, seu cérebro agia espontaneamente e criava alucinações musicais.
Alguns dos capítulos de Sacks falam sobre musicoterapia, vista com desconfiança por médicos e psicólogos. Sacks tem respeito pela disciplina, cujas bases científicas estão sendo reforçadas pela neurologia. O Núcleo de Envelhecimento Cerebral (Nudec) da Universidade Federal de São Paulo mantém pesquisas nesse campo, coordenadas por Cléo Monteiro França Correia. Uma de suas pacientes é a pedagoga Zeni de Almeida Flore. Em 2001, aos 72 anos, ela mostrou os primeiros sintomas da doença de Parkinson. O parkinsonismo é um distúrbio motor, mas é comum que danifique outras áreas do cérebro, acarretando afasia e demência. Foi o que aconteceu com Zeni. À medida que a doença avançava, ela se viu incapaz de manter um diálogo e, depois, até mesmo de nomear objetos. Havia uma única situação em que ela conseguia pronunciar palavras com fluência: ao cantar. Há um ano, a capacidade musical de Zeni foi identificada. Encaminhada à musicoterapia, ela teve ganhos lingüísticos: recobrou certo poder de articular sentenças e responder a perguntas. Doenças diferentes requerem abordagem musical diferente, observa Sacks. Mas, lidando com o ritmo ou despertando emoções, a música pode orientar um paciente quando mais nada é capaz de fazê-lo.
Fonte: Revista Veja, 26 de setembro de 2007