Letra e Música

por: Levi de Paula Tavares

É possível usarmos na adoração músicas que não foram originalmente compostas para a igreja?

Um hino é composto, de duas coisas essencialmente diferentes: Uma é a musica e outra é a letra. Embora elas estejam simbióticamente relacionadas, são coisas diferentes e devem ser analisadas diferentemente, para podermos ter uma compreensão correta do assunto. A letra é um componente fácil de analisar, visto seu impacto sobre o ouvinte ser objetivo, enquanto que a música, atuando de forma subjetiva, é bem mais difícil de ser analisada.

A letra transmite a mensagem, o conteúdo objetivo. A apreensão mental de seu significado é direta. Caso uma letra não seja sacra, basta alterá-la e pronto! Um exemplo disso é dado no filme “Mudança de Hábito I”, se você assistiu e lembra do que estou falando, vai entender. Se não assistiu, vou contar bem resumidamente. A personagem principal do filme é uma cantora de cabaré que, sendo testemunha de um crime, é escondida pela polícia em um convento, como proteção. Neste convento, ela passa a dirigir o coro. Uma das músicas que ela ensina é a mesma música que cantava no cabaré, mas com uma pequena alteração em uma palavra, ela “santifica” a letra, tornando-a “sacra”!

Contudo, em relação à música existe todo um conjunto de associações mentais e emocionais que precisam ser consideradas e analisadas no contexto cultural do público ouvinte. A música causa o clima, suscita emoções, servindo de veículo para a mensagem da letra. Mas este clima e estas emoções são induzidos de forma indireta, acontecem através do mecanismo de associações mentais, conjugadas com reações físicas aos sons.

Por esta razão, pegar uma música e letra mundanas, conhecidas popularmente, e alterar apenas a letra, isto não vai “santificar” o conjunto, devido à associação mental ainda forte para os ouvintes com a letra antiga e o uso a que a música se destinava anteriormente. Este mecanismo associativo também se aplica ao uso de certos instrumentos na igreja. De acordo com os conselhos encontrados nas cartas de Paulo e nos escritos de Ellen G. White, o que pode causar escândalo ou constrangimento para alguns, não deve ser usado no culto (mesmo porque, temos abundancia de outras fontes).

Esta forma de ação da música é essencialmente diferente do impacto direto causado pela letra. Concluímos então que o clima causado por uma música em um certo contexto sócio-cultural pode ser diferente do clima causado pela mesma música em outro contexto. Desta forma, para as boas composições (e note que o termo “bom” já é subjetivo em si, embora seja específico), creio ser possível usar na igreja uma música que não tenha sido originalmente composta para uso sacro. Exemplos disso são o “Largo” da ópera Xerxes de Handel e o poema sinfônico “Finlândia”, de Jean Sibelius. Ambas as obras receberam letra sacra e têm sido usadas para enlevo espiritual de vários grupos e gerações diversas de cristãos em todo o mundo. Da mesma forma, existem no nosso Hinário algumas músicas que originalmente eram canções folclóricas.

Assim, uma música que em certa época passada era popular, pode perder este “status” devido a alterações culturais da sociedade. Claro que estas alterações envolvem períodos de tempo bastante longos, mas elas existem. Desde que se consiga uma música que se encaixe nos princípios de Filipenses 4:8 e que a cultura dos ouvintes já a tenha desvinculado de associações mundanas, é perfeitamente possível usa-la com letra sacra, para a adoração, testemunho e louvor.

Porém, como um exemplo interessante, posso dizer que para mim, pessoalmente, não é este o caso o tema principal do quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, uma vez que eu a conheci pela primeira vez no seu ambiente original, e esta é a associação mental que ficou. Interessante que, para a média da população brasileira esta melodia é um hino e eles se surpreendem quando ouvem esta melodia numa sala de concerto. Mas na Europa esta melodia é por demais associada ao seu sentido original, com o agravante que muitos países entendem a letra em alemão.

Resumindo, este é um assunto muito ligado ao contexto cultural. Musicalmente, a obra é válida, mas ainda existe (para mim, pessoalmente) uma associação com o poema de Schiller, o que a invalida ao meu ver, para o culto de adoração e louvor, principalmente em uma congregação composta em grande parte de pessoas de origem européia. Mas este contexto pode ser alterado em um futuro próximo, caso esta associação se torne mais diluída.

Assim, conforme vimos, uma música que causa uma certa associação para uma certa pessoa pode causar uma associação diferente para outra pessoa. Portanto o compositor, ou o responsável pela escolha de uma música deve levar em conta as reações da faixa da sociedade para a qual aquela música se destina. E, para isso, ele deve conhecer muito bem o seu público e respeita-lo.

O que vemos hoje são compositores, arranjadores e responsáveis pela música fazendo suas escolhas musicais baseadas no seu gosto pessoal, e o público que goste se quiser… Não deve ser assim com a música na igreja. Esta deve ser pensada de forma a suscitar associações e reações que elevem, que santifiquem. E os que estão exercendo o papel de líderes na área da música estão em uma posição ideal para contribuírem de forma decisiva para o enriquecimento da adoração da igreja.

Portanto, podemos concluir que, se uma música não nos causa associações mentais nem reações físicas que levem a pensamentos mundanos, esta música é própria para receber uma letra com a mensagem divina. Na verdade, para o uso na igreja, não basta simplesmente “não levar a pensamentos mundanos”. A música utilizada na adoração tem que levar para o alto. Não pode ser uma música simplesmente neutra. E é evidente que a letra deve expressar a nossa teologia.

Concluindo, diríamos que todas as escolhas musicais do cristão devem estar de acordo com Filipenses 4:8 “Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai.”


Veja também o artigo O Uso de Musicas de Outras Denominações no Culto Adventista, do mesmo autor.