A Adoração

A Adoração e a Bíblia

por: Miguel Angel Darino[1]

(Algumas considerações bíblico-teológicas)

Tem sido dito, e com acerto, que a adoração é a razão de ser da Igreja de Cristo. W. T. Conner escreveu: “O negócio primário, pois, da igreja não é a evangelização, nem as missões, nem a benevolência; é a adoração. A adoração a Deus em Cristo deveria estar no coração de tudo o que a igreja fizesse. Ela é a mola mestra de toda a atividade da igreja”. [2] Isto está de acordo com a revelação bíblica, que nos diz muito enfaticamente que a igreja existe “para o louvor da Sua glória” (Efésios 1:6) [3].

Por outro lado, a igreja é chamada a render uma liturgia (Adoração) contínua a Deus, que é caminho para o crescimento espiritual, tanto pessoal como corporativo (Romanos 12:1-2, IPedro 2:9-10). Pessoal porque o trato primário de Deus é a nível individual e corporativo porque a experiência de adoração envolve não apenas aspectos psicológicos, mas também sociais, culturais e históricos. Estas duas coisas são inseparáveis. Muitas vezes a vida litúrgica, ou seja, a prática cultual de nosso povo não é uma manifestação da realidade da vida, mas se reduz a um conjunto de práticas religiosas separadas da realidade, que não são outra coisa que um artificialismo, ou seja, somente uma atividade que realizamos por costume. Perde-se muitas vezes de vista o fato de termos sido chamados para viver “para louvor da Sua glória”. Não deveríamos adorar para manter uma atividade na igreja, já que isto estaria colocando a atividade como o assunto de primeira importância e a adoração como secundária. [4]

Primordialmente a adoração é nosso reconhecimento daquilo que Deus é; é nossa resposta por amor e não pelo bem que Ele nos possa fazer. (…) Adoração cristã significa encontro com Deus. Isto é, diálogo – revelação e resposta. Deus revela a Si mesmo ao ser humano e este responde a essa revelação. [5] Revelação que pode dar-se através da leitura da Bíblia, a pregação, os hinos, o batismo e a comunhão e que, entre os batistas, é fundamentada e reafirmada pelo conceito da adoração corporativa, quer dizer, a adoração congregacional. Em outras palavras, (…) o desenvolvimento da vida espiritual tem sua base mais forte no conceito doutrinário do sacerdócio de todo crente, o qual adquire sentido e prática dentro do marco da congregação local. (…)

Infelizmente nos últimos anos se está experimentando um “desapego” à Bíblia como fundamento e guia. Pode ser algo inconsciente, mas é real. É provável que os “ares pós-modernos” estejam ajudando a esta realidade. Fala-se muito de “experiências”, de sentir, de gozar, de adoração contemporânea, de adoração tradicional, de adoração contextual, de adoração equilibrada, de adoração “conectada”, de revelações, etc., mas pouco da Bíblia. Parece ser mais importante a experiência com Deus que o conhecimento da Palavra. Em não poucos casos se realiza uma prática cultual mais intuitiva que fundamentada na Escritura. Uma análise que C. Peter Wagner fez da adoração no nosso tempo ressalta o seguinte: “a adoração atual está conectada a três fontes importantes: 1) ao sistema de amplificação de som; 2) ao Espírito Santo e 3) à cultura contemporânea”. [6] A pergunta que então surge é: Que lugar é dado à Bíblia na adoração atual? Não é possível uma direção genuína do Espírito Santo sem inspiração e ação sobre a Palavra revelada de Deus. Bem o afirmou o Dr. Samuel Varrer em Niterói: “A busca de formas bíblicas e evangélicas de adoração para o futuro tem que ir às fontes permanentes da vida espiritual: Deus o Espírito, a Palavra de Deus, o Povo de Deus. Deus continua falando hoje como nos tempos do salmista: no livro de sua criação e da história, e na palavra dos profetas e os apóstolos”. [7]

Se quisermos experimentar uma adoração legitimamente cristã, é necessário reconhecer o fundamento da Palavra de Deus, a Bíblia, como vital no conhecimento e revelação do Deus a quem pretendemos adorar. Reconhecer a Bíblia, como a autoridade, que nos informa, que nos adverte, que nos compartilha a experiência de tão “grande nuvem de testemunhas” que em seu tempo, contexto e cultura adoraram genuinamente a Deus de acordo a Seu desejo.

Através de toda a Bíblia observamos paradigmas ou esquemas litúrgicos nos quais ressaltam princípios aplicáveis ao contexto e tempo de cada ser humano. No Antigo Testamento há direção precisa e detalhada de Deus para o povo que adora. Um exemplo claro é o livro de Levítico, onde até o mínimo detalhe é indicado Por Deus. Levítico é por excelência o “livro do culto” na Bíblia. Encontramos outros exemplos nas diretrizes explícitas para os levitas, os músicos no Templo, os cantores etc. O Novo Testamento não provê exemplos tão específicos e detalhados quanto o Antigo, a respeito da adoração. A informação parece ser muito mais vaga [8], porém ainda prevalecem princípios normativos. A este tema voltaremos mais adiante neste trabalho. Antes de citar alguns textos, que a meu entender transcendem a cultura, a história e o tempo e que nos localizam na soleira de nossa busca pela coerência, fundamento e excelência na adoração, gostaria de enfatizar o fato de que, embora no Novo Testamento o culto tenha um caráter diferente, a função sacerdotal está sob os mesmos princípios, ao ser considerada a Igreja como uma “comunidade sacerdotal” (I Pedro 2:5 e 9; Apocalipse 1:6; 5:10; 20:6). É necessário insistir, entretanto, que o sacerdócio da Igreja não é um sacerdócio independente do sacerdócio de Cristo, mas que se dá através, e como parte deste. [9]

De acordo com meu ponto de vista os textos seguintes indicam claramente as condições para que ocorra, na prática, uma adoração genuína:

  • “Temerás ao Senhor teu Deus e o servirás” – Deuteronômio 6:13
  • “Sereis santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”.– Levítico 19:2
  • “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás”.– Lucas 4:8
  • “Sereis santos, porque eu sou santo”.– I Pedro 1:16

Eis aqui a chave para uma adoração legitimamente bíblica. Ação e vida. Atitude e comportamento. Coração e mente. Contemplação e oferenda.

É muito provável que muitas vezes se ignorem na vivência os pressupostos básicos do culto, que não estejamos atentos ao desejo do coração de Deus e por isso, uma entrega consciente e gozosa a Deus em adoração se veja restrita.

A prioridade número um é conseguirmos uma compreensão mais clara da natureza do culto.

A. Questões semânticas

Dizemos que cada igreja tem sua liturgia e seu estilo de adoração. Isto não deixa de ser uma verdade. É impossível adorar a Deus sem algum tipo de liturgia, embora a adoração prescinda de formas convencionais. “Neste sentido, até os cultos assim mal chamados ‘não litúrgicos’ contêm este tipo de elementos. Tudo parece ser deixado à espontaneidade, mas a espontaneidade tem já seus canais fixos de expressão e forma”. [10]

1. Liturgia. O que é liturgia? A história do termo começa com uma palavra composta: “Leitourgia” de “ergón” (obra) e “leitos” (adjetivo derivado de “leos” ou “laos” – povo). Este termo significava ou indicava nas democracias gregas (segundo o grego clássico e helênico): “a prestação de um serviço por parte dos cidadãos de classe média no benefício da coletividade”. [11]

O termo se usa desta maneira também para referir-se a um serviço público, inclusive pago, no Egito ptolomaico e imperial. No período helenístico se estende à prestação de um serviço por parte de empregados ou escravos e desde o Século II a.C., também ao serviço público.

A Septuaginta emprega o termo “leitourgía” e seus derivados para designar o serviço do templo por parte dos sacerdotes e levitas, enquanto que os termos correspondentes em hebraico são usados também para serviços que não sejam de culto. [12] O termo, que tem aspectos míticos, políticos, ideológicos e religiosos, foi evoluindo em seu uso. Passou do mítico ao cultural e mais tarde especificamente ao religioso. Na realidade, se analisarmos a história do conceito, veremos que as primeiras definições aparecem no século XVII. [13]

Segundo um enfoque puramente semântico, literalmente pode significar festa, celebração, e ainda culto (Latreia). No Antigo Testamento, o equivalente para liturgia é festa (“Hag”: dança e “Saret”: serviço) e “Aboda” (obra, serviço) que também se usa para atos litúrgicos.

De acordo com Von Allmen, tanto o uso desta palavra no Antigo Testamento e no Novo, quanto sua acepção profana, dão duas indicações interessantes sobre o culto: 1) Por um lado, designa uma ação do povo ou comunidade; não do clero. Quer dizer, reivindica uma secularização do culto. 2) Por outro lado, designa um ato político, civil, em que os ricos substituem, por suas ações ou contribuições, aos pobres que não podem pagar.

Este termo indicaria que a igreja, por meio da liturgia substitui ao mundo que não sabe nem pode adorar ou glorificar ao Deus verdadeiro; [14] assim, por meio do culto, “a igreja substitui ao mundo diante de Deus e o protege”. [15] De modo algum isto substituiria a responsabilidade de cada ser humano de buscar a Deus, mas a comunidade cristã com sua “liturgia” estaria presente no mundo como “luz” e testemunho (Mateus 5:14).

É muito significativo notar que o Novo Testamento, ao referir-se a atos de culto, desconhece ou evita os termos “pré-cristãos”, mas usa “leitourgía” quando se refere à ação mediadora de Cristo como sacerdote e à ação comunitária. Então deduzimos que o termo é usado sem distinção ou indistintamente de seu paralelo “latreia” que pode significar ou incluir, como veremos, o aspecto mais profundo e espiritual do culto (Hebreus 8:5,13-14, 9:9). Liturgia é, assim, o culto comunitário da igreja, que expande o sacerdócio de Jesus Cristo e tributa a Deus a mais alta glória por meio dEle.

(…) Na maioria dos casos a liturgia se interpreta como “forma de culto” e é obvio que a forma em si não assegura a realidade espiritual do culto, mas a falta de forma tampouco. A forma deveria servir como ajuda aos fiéis na adoração a Deus.

Gostaria de propor uma definição muito simples para o termo, a fim de poder usá-lo com melhor compreensão e eficácia no contexto latino. Em geral, quando pensamos em nossa relação com a igreja, fazemo-lo em termos de receber, de obter algo, seja isto o bem-estar ou o cumprimento dos desejos do coração. E isto não é mau; mas da perspectiva da liturgia, descobrimos que a relação com a igreja tem muito mais a ver com dar e oferecer do que com receber ou obter. Esta é outra realidade no contexto latino demonstrado a partir de uma perspectiva religiosa como uma cultura dependente. Proponho que liturgia é aquilo que temos à mão para oferecer a Deus um culto aceitável, genuinamente autêntico e que expressa nossa submissão, dependência e serviço a Ele.

Esta pode dever ser uma proposta de correção do conceito de liturgia e adoração, já que infelizmente, como afirmamos, o termo se tornou limitado ao identificar-se com o modo particular de celebração cultual de certas confissões. O conceito se refere mais corretamente à estrutura que ao serviço ofertado. Mas em realidade a liturgia vai além de “breviários ou formulários litúrgicos que não podem ser alterados. Liturgia quer dizer aquilo que se diz no culto público… da mesma maneira que ritual significa aquilo que se faz no culto público…”. [16] Uma compreensão adequada do termo deverá levar-nos a desejar uma prática cultual equilibrada, solidamente fundamentada na Palavra, “evitando o extravagante e extremo por um lado e o árido e descolorido pelo outro”. [17]

2. Culto. Etimologicamente a palavra significa mais ou menos o mesmo que liturgia. Os dois termos são usados em relação à expressão religiosa, tanto individual quanto corporativa. Culto vem de “latreia” (que simplesmente denota o culto de adoração a Deus). Em Hebreus se fala de “ofícios do culto”, quer dizer, adoração corporativa, mas também, por seu uso no Novo Testamento, se refere à consagração. Em outras palavras, o culto repousa, em última instância, em um profundo compromisso pessoal com Deus em amor e temor (Hebreus 6:9, Romanos 12:1). É significativo que, apesar de que “latreia” tem estes dois usos e de que também se refere “à homenagem que é rendida à divindade” (Mateus 4:10, Lucas 1:74-75), aflora novamente um princípio básico da genuína adoração cristã que é a “base da relação individual com Deus”. Quer dizer que, tanto o culto pessoal quanto o culto corporativo se fundamentam, não em um sistema ou ritual (embora o ser humano necessite deles como meio de expressão), mas na relação pessoal com Deus.

Orlando Costas sugere o seguinte:

“…torna-se claramente evidente que, para os autores do Novo Testamento, o fato de que a morte e ressurreição de Cristo anulou a velha aliança, não significa a anulação das celebrações litúrgicas, ou seja, a necessidade de ter um sistema de adoração religiosa. É que o culto é tão parte do novo Israel como foi do antigo. Assim como a Lei e os Profetas não foram destruídos com a aparição de Cristo, assim tampouco desaparece a ideia de um sistema de adoração pública. Em Cristo esse sistema foi reavaliado, recriado e transformado”. [18]

Sem a intenção de reafirmar ou justificar um sistema específico de prática cultual, faz-se necessário pelo menos mencionar algumas razões que mostrem a necessidade de ter uma prática cultual corporativa. A maior parte de nós, que assistimos à igreja cada semana, se formos sinceros, confessaremos que o fazemos, em parte pelo menos, porque sentimos a necessidade de fazê-lo. As necessidades para a prática cultual variam, mas há algumas necessidades básicas que, de certo modo, a justificam:

1) As necessidades sociais. O ser humano é um ser social por natureza. A necessidade de amizade e companhia é básica. Todas as classes e condições humanas podem encontrar laços no culto que transcendem as divisões sociais, de raça, de nacionalidade, acadêmicas ou de estado social.

2) As necessidades intelectuais. O culto oferece guia em meio da perplexidade e confusão que se cria na vida. O culto oferece o que se busca na vida: significado, perspectivas e propósitos sólidos para viver.

3) As necessidades psicológicas. A prática cultual desenvolve uma sólida afirmação de fé que garante a segurança frente à insegurança dos postulados da sociedade.

4) As necessidades religiosas. Não negamos a presença de Deus em todos os lugares, mas é evidente que o culto coletivo oferece solução a estas necessidades. A fome e a sede de um contato com Deus podem ser saciadas e mitigadas através do culto comunitário.

Por outro lado é inegável que a devoção do ser humano procura expressões externas audíveis e visíveis. Estas podem chegar a ser simplesmente manifestações separadas da vida cotidiana, atos religiosos. Entretanto, um bom entendimento do que é em realidade o culto integra à vida as expressões autênticas, nativas e devidamente canalizadas.

É importante esclarecer aqui que, embora seja certo que os termos liturgia e culto podem ter semelhanças da perspectiva etimológica, como já foi dito, não se dá necessariamente assim na prática religiosa. Ambos estão relacionados com a “expressão religiosa”. Mas em sua experiência vivencial o ser humano pode fazer liturgia sem que em realidade esteja rendendo culto. E pode realizar uma prática cultual onde a liturgia não seja mais que uma formalidade. Como anteriormente havíamos dito, podemos ter prática cultual simplesmente como parte das atividades da igreja. Liturgia e prática cultual podem permanecer simplesmente como formas, frias e “sem coração”. Mas para render autenticamente culto (Adoração) é necessária uma entrega ao ser ao qual oferecemos culto.

A heterogeneidade da igreja se reflete em sua prática cultual, de tal maneira que não podemos falar de um culto ou sistema litúrgico homogêneo. Como temos dito, cada igreja tem sua liturgia ou forma, mas estas formas deveriam ser um fator de unidade na diversidade, um fator formador do mosaico das diferentes culturas, sentimentos e riqueza dos povos. Na prática cultual da Igreja Primitiva existem fatores de unidade. Esses mesmos fatores dão a nossas celebrações litúrgicas o caráter de homogeneidade: Santa Ceia, cantos, orações, leituras bíblicas, pregação, ofertas, etc. [19] O culto, com suas formas, deve ajudar aos fiéis na adoração a fazer uma contribuição para a unidade na diversidade, que é princípio bíblico, eliminando as divisões produzidas por certas formas litúrgicas (Romanos 12:4-16, Efésios 4:1-15). Os padrões e cópias de cultos em diversas partes do mundo têm feito muito mal; de maneira especial ao evangélico latino, que sofre muitas vezes o transplante territorial e a imposição de formas litúrgicas que são de outras culturas e que abafam sua expressão mais autêntica.

3. Adoração. Esta palavra vem do grego koiné “Proskuneo” que significa reverenciar ou homenagear. É usada cerca de 59 vezes no Novo Testamento para indicar a comemoração que rende a uma pessoa ao prostrar-se a seus pés. Também indica o fato de prestar homenagem ou tributo divino (Mateus 4:10, João 4:20-21, Hebreus 1:6). Sua tradução literal seria: “Beijar a mão ou o piso diante de”. Neste sentido é mais esclarecedor que o vocábulo usado no Antigo Testamento mais de 170 vezes para indicar adoração, “Shachah” e que se traduz literalmente como inclinar-se, cair diante de, prostrar-se, ajoelhar-se. [20] Beijar denota contato, aproximação, relação. Pode-se reverenciar ou homenagear à distância, mas o beijo requer aproximação, contato.

Também consideramos importantes outros dois termos usados no Novo Testamento para indicar adoração: “Sebomai” (usado oito vezes), que tem sua raiz na palavra “Sebas” (temor) e “Latreia”, o qual já analisamos.

Em nossa língua o uso mais comum de “proskuneo” (Prós: em relação a; e Kuneo: beijar) é o que se refere à reverência que se rende a uma pessoa, especificamente a reverência e honra que se deve render a Deus. Apesar de que em nossa mentalidade a adoração tem mais a conotação de uma experiência “subjetiva e pessoal” em oposição a um “sistema litúrgico”, o termo se usa como equivalente do termo saxão weordhscipe (inglês arcaico), que se refere a “dar tributo de dignidade ou valor a um objeto ou pessoa”. [21] Atualmente em inglês se usa a palavra worship que é nada mais que uma contração do velho termo anglo-saxão mencionado. Mas worship transmite à mentalidade latina a ideia de um sistema litúrgico ou formas, mais que de relação pessoal com Deus. Quando nos referimos ao culto público ou reunião pública, geralmente traduzimos o termo como “serviço de adoração”, (worship service), que não indica em nossa mentalidade necessariamente adoração como experiência espiritual. Daí a necessidade de comparar o termo em inglês. Mais ainda, em nossa própria língua muitos não têm plena consciência de que adoração cristã, no sentido bíblico mais profundo, indica prostração, reconhecimento de autoridade e relação com essa autoridade. Mas isto faz ressaltar a experiência acima do sistema (Gênesis 24:48, Êxodo 4:31, II Reis 17:35, Salmos 5:7, 95:6-7, João 4:23). Donald P. Hustad enfatiza isto quando define adoração cristã como “a resposta afirmativa do ser humano a Deus, o qual revela-se a si mesmo como Deus Triúno”. [22] Nós não O buscamos às cegas ou no vazio. Ele dá o primeiro passo, revelando-se, mostrando-se a si mesmo em poder e amor. O ser humano lhe reconhece e lhe responde afirmativamente convertendo-se a Ele e começa assim uma relação experimental que é prioritária na adoração cristã.

Por outro lado, quando denominamos ao culto cristão como serviço de adoração, somos conscientes que nos estamos referindo a uma reunião pública e regular da igreja, em que o povo de Deus reconhece Seu valor e Lhe atribui a glória que Lhe pertence. W. T. Conner diz: “Quando dizemos que a adoração é o negócio primário da Igreja, devemos usar a palavra no sentido mais amplo. A adoração inclui a expressão, ou o anelo da alma em resposta à revelação que Deus nos faz de Si em Cristo. Inclui o canto, a oração, a leitura das Escrituras, as oferendas, o sermão, as cerimônias: a totalidade da entrega da alma, individualmente e como corpo, a Deus, em resposta a sua graça”. [23] Por isso é que, muito mais importante que a compreensão semântica destes termos em nosso idioma, é poder entender com clareza seu uso bíblico, a fim de que isto nos ajude a não reprimir a expressão de nossa adoração, porém procurar equilíbrio e maturidade em sua expressão.

Liturgia, culto e adoração são três termos importantes em relação à prática religiosa que, caso sejam bem compreendidos, enriquecerão nossa experiência espiritual. Nossas formas, atitudes e sentimentos são básicos na expressão do tributo que devemos a Deus e liturgia, culto e adoração têm que ver com eles. A liturgia tem que ver mais com nossas formas; culto, com nossas atitudes e adoração, mais com sentimentos e compreensão da relação de dependência e do sentimento de temor ao Deus a quem adoramos. Isto, de modo algum é absoluto e conclusivo, pois se assim o considerássemos, cairíamos em uma rigidez alheia à autêntica experiência de adoração cristã.

Um olhar retrospectivo à prática cultual no primeiro século pode nos ajudar a clarificar nosso conceito.

B. A realidade neo-testamentária

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Embora não temos uma vista muito clara do desenvolvimento da adoração e do culto dos primeiros cristãos, há algumas referências que podem nos ajudar no propósito de nosso trabalho.

1. A adoração e os primeiros cristãos. É impossível negar que o culto da sinagoga foi de grande influência na adoração dos primeiros cristãos. Eles, que na verdade eram judeus, não inauguraram um novo sistema de adoração. Rayburn afirma: “Jesus e seus discípulos adoraram em ambos os lugares, no Templo e na Sinagoga. Depois da ascensão, a comunidade cristã continuou observando muitas coisas de ambos os cultos”. [24] É óbvio que as formas foram se alterando através dos anos e é justamente aqui onde notamos a ausência de fontes que nos esclareçam o desenvolvimento dessas mudanças.

Havia uma grande diferencia entre ambos lugares quanto a suas celebrações ou cultos. As sinagogas foram centros de estudo da Palavra e oração para o povo judeu (Atos 6:9). Funcionavam como uma instituição laica, onde não se fazia necessária a presença de sacerdotes para oficiar, mas qualquer pessoa podia participar (Lucas 4:16-20, Atos 9:20, 18:4). Não era assim no Templo, onde, por causa da realização de sacrifícios, era necessária a presença de quem os oficiasse.

Os primeiros cristãos se encontraram, neste sentido, em uma situação muito significativa. Eles tiveram que desenvolver uma nova forma de adoração, tendo como marco de referência a liturgia da sinagoga, os rituais e liturgias do templo e o cumprimento das Escrituras por meio da presença e obra redentora do Jesus. É possível que isto os tenha levado, nos primeiros tempos, a adorar não apenas nas casas, mas também nas sinagogas (Atos 2:46, 3:1). Desta maneira acomodavam um grupo especial de judeus que acreditavam no Messias. Com o tempo esta dualidade na prática de culto se fez intolerável, o que os levou a reunir-se apenas em seus templos.

2. Liturgia e adoração. É evidente que a comunidade cristã copiou o estilo do culto da sinagoga, pondo ênfase no ensino da Palavra e na oração. O ensino chegou a ser sua maior característica na medida que se criava uma separação entre aqueles judeus “ciumentos da lei”, que continuavam com os costumes da lei, dos que se “convertiam” de coração a Cristo (Atos 21:20-21).

É, de qualquer forma, bem claro que a adoração dos primeiros cristãos estava baseada nos fundamentos dos escritos do Antigo Testamento. Na epístola aos Hebreus, nos é mostrado com maior clareza a continuidade entre a adoração de Israel e nossa própria adoração cristã; embora também se demonstre claramente que o antigo está bem contrastado com o cumprimento do plano de redenção de Cristo, por sua morte e ressurreição. Aqueles elementos da adoração na sinagoga que não refletiam a Cristo como o Filho de Deus e único e suficiente salvador, foram tirados. Por exemplo, não se encontra nenhuma referência ao uso, na adoração cristã, do “shema”, que era uma confissão de fé no Deus Único de Israel, com o qual começava o culto na sinagoga. Robert Rayburn diz: “O shema enfatizava o conhecimento formal de Deus através de sinais externos, enquanto que Cristo deu ênfase na atitude do coração, advertindo contra o perigo da mera formalidade e sinais externos”. [25] O “shema” não refletia ao Deus Triúno, que interveio na história enviando Jesus Cristo como o Salvador e estabelecendo seu reino – como enfatizavam os cristãos primitivos – no coração dos homens. Eles convidavam ao arrependimento e fé e a sua demonstração por meio do batismo; sinal externo de algo estabelecido no coração (Atos 2:38). Por isso a liturgia cristã foi purgada dos elementos que eram inconsistentes com a plena revelação de Deus em Cristo.

Por outro lado, é necessário destacar outro aspecto da adoração na Igreja Primitiva que demonstra sua simplicidade e singeleza, mas também a profunda convicção que a movia a celebrar a nova vida. Lucas nos diz: “…perseverando … partindo o pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração” (Atos 2:46). Isto demonstra que viviam bem conscientes da grande mudança que Cristo tinha operado neles, mas também reflete a busca de um algo totalmente distinto à lei e o ritualismo judaico.

3. Adoração cristã: sistema ou experiência? Embora a adoração cristã, como vimos, tenha suas raízes nas práticas judaicas, não podemos dizer que os primeiros cristãos se aferraram a um sistema específico de adoração. Três formas litúrgicas se misturaram, a saber: a adoração no Templo, a adoração na sinagoga e o que Jones chama “a adoração semiprivada nos lares e outros lugares…”. [26] Estas formas fizeram dos primeiros cristãos um grupo peculiar que celebrou a nova vida em Cristo por meio de elementos litúrgicos que transcenderam um sistema.

A adoração cristã é, primariamente, a celebração dos atos de Deus manifestados em Jesus Cristo. Entretanto, se examinarmos a relação que Jesus tinha com o Templo, a sinagoga e as demais celebrações religiosas judaicas, concluiremos que Ele não rechaçou o sistema. Lucas registra que Jesus ia regularmente à sinagoga para ensinar e adorar (Lucas 4:16-21). Também pelos evangelhos sabemos que Jesus participou das festas do povo judeu (João 7:2; 10:22). Outros detalhes, por exemplo, de como celebrou a última ceia, são uma clara evidência de que Jesus conhecia e apreciava a maior festa do Israel e suas formas (Mateus 26:1-30; Marcos 14:1-26. Lucas 22:1-23; João 13:1-30). Em outras palavras, “não houve descontinuidade radical entre a adoração do Antigo Testamento e a que começou no Novo”. [27]

Por outro lado, Jesus apresentou uma nova opção que destruiu alguns elementos da liturgia antiga. Ele via as instituições de adoração do Antigo Testamento apontando para Ele. Por exemplo, a purificação do Templo teve a ver com o ponto de vista de Jesus com relação aos sacrifícios. Ele indicou a si mesmo como o culto sacrifical, o que fez do rito sacrifical do Templo um ato obsoleto. Também assinalou aos fariseus, que Lhe repreendiam sobre o dia de repouso, que “um maior que o templo” estava ali (Mateus 12:6). Tudo isso demonstra que Jesus assumiu o direito de “reinterpretar” os costumes de adoração judaicos. Desta maneira Ele preparou o caminho para mudanças significativas que precisavam ocorrer na adoração e que observamos nos primeiros cristãos. A prática cultual foi desenvolvendo-se em uma adoração que descrevia o cumprimento do Antigo Testamento em Jesus Cristo.

A adoração cristã se desenvolveu, não rivalizando-se com a adoração antiga, mas manifestando de forma aprimorada à nova vida, com os elementos litúrgicos que ajudariam a uma celebração concordante com a obra de Deus em Cristo. A experiência de celebração do Cristo vitorioso e ressuscitado não podia ser contida em um único sistema litúrgico realizado em um lugar específico. As implicações da nova concepção ou opção pela presença de Cristo são tremendas, pois agora se pode adorar a Deus em qualquer lugar e não somente no Templo ou na sinagoga. Sua presença é respaldada pela Palavra: “Pois onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles”. (Mateus 18:20). A adoração, pois, não é só um sistema ou uma experiência. É em realidade uma profunda experiência espiritual, a qual nós sistematizamos parcialmente com elementos que nos ajudam a revitalizar continuamente essa experiência.

Na maioria das Igrejas batistas existe um ardor e entusiasmo crescente quanto à expressão da adoração. É de se esperar que durante este tempo de transição e busca se possa, pelo menos, obter duas coisas: 1) um equilíbrio nos estilos e formas de adoração, onde todos se beneficiem e 2) descobrir que a riqueza da adoração não está em tirar ou extrair algo de uma liturgia determinada, nem em imitações superficiais de liturgia. A evidência da presença de Deus e do Espírito Santo na adoração está na transformação do ser humano, que ocorre por uma prática cultual, serviço e compromisso que se torna realidade depois de adorar. Muito além das formas e estilos, cremos que este entusiasmo seja o resultado daquilo que se vive; que seja uma resposta honesta ao Deus que causou impacto na vida.

(…)


Notas:

[1] Este trabalho foi apresentado no Congresso Batista de Adoração, Denia, Espanha (17-19 de Agosto de 2001) organizado pela UEBE (União Evangélica Batista Espanhola e pela BWA (Aliança Mundial Batista). O autor é argentino, pastor Batista ordenado. Atualmente é o Ministro de Recursos para os Ministérios Hispânicos na American Baptist Churches of the Pacific Southwest, Covina, Califórnia, Estados Unidos. Também é professor adjunto na Azusa Pacific University, Califórnia. (voltar)

[2] W. T. Conner, El Evangelio de la Redención, Casa Bautista de Publicaciones, El Paso, TX, traduzido por Lemuel C. Quarles, sem data, pág. 300 (voltar)

[3] Para as citações bíblicas indicadas neste projeto se usará a Bíblia de Referência Thompson, revisão de 1960 da versão Reina-Valera. No caso de uma referencia a outra versão, será feita a indicação correspondente. (voltar)

[4] W. T. Conner, Op. Cit., pág. 301 (voltar)

[5] G. Thomas Albrooks, The Complete Library of Christian Worship, Vol.2, Twenty Centuries of Christian Worship, Robert E. Weeber, Editor, Star Song Publishing Group, Nashville, TN, 1994, Pag. 293 (voltar)

[6] C. Peter Wagner, ¡Terremoto en la Iglesia!, Editorial Betania, Nasville, TN, 2000, Pag.158 (voltar)

[7] Samuel Escobar, Ponencia: “Formas históricas de renovación y alabanza”, Niterói, Brasil. 15-18de Março de 2000 (voltar)

[8] No Novo Testamento nos encontramos no princípio de um grande processo. A adoração cristã foi se desenvolvendo e crescendo através dos séculos como resposta a todos os tipos de estímulos ou pressões. Por exemplo o “sinal da Cruz” foi adotado depois do quarto século por influência de Constantino. Os edifícios das igrejas se originaram entre os séculos III e IV. As igrejas do Novo Testamento se localizavam nas “casas” (Colossenses 4:15-16; I Coríntios 16:19; Filemom 2). Os líderes de louvor e adoração no Novo Testamento são conhecidos por dedução (Filipenses 1:1; I Tessalonicenses 5:12; Hebreus 13:17). (voltar)

[9] No livro “Hacia una Teología de la Evangelización”, vários autores, editado pelo Dr. Orlando Costas, se encontra um exaustivo estudo acerca da função sacerdotal da Igreja. Editorial Caribe, 1984, Pág. 140 (voltar)

[10] Carlos Valle, Culto: Crítica… Op. Cit., pág. 22 (voltar)

[11] Conceptos Fundamentales de Teología, vários autores, Ediciones Sígueme, Salamanca, España, 1976, pág. 919 (voltar)

[12] Ibid., pág. 918 (voltar)

[13] Ibid., pág. 919 (voltar)

[14] O culto da igreja substitui o culto que o mundo, em virtude de sua criação, tem sido chamado a render ao Criador. Gênesis estabelece claramente o chamado litúrgico do ser humana (e, por conseguinte, de toda a criação). Deus, ao criar o mundo, o convoca para que, conduzido e oferecido pelo ser humano, se realize e encontre paz celebrando a Deus e conhecendo o seu repouso Gênesis 1:1-2:4). (voltar)

[15] Juan Martín Velasco, La Religión en Nuestro Tiempo, Verdad e Imagen, Ediciones Sígueme, Salamanca, España, 1978, pág. 43 (voltar)

[16] Ronald A. Ward, Diccionario de la Teología Práctica: Culto, Editorial T.E.L.L., Grand Rapids, Michigan, 1977, pág. 3 (voltar)

[17] Ibid., pág.3 (voltar)

[18] Orlando Costas, “El Culto en su Perspectiva Teológica”, Seminario Bíblico Latinoamericano, San José, Costa Rica, 1971, mimeografado, 22 págs., pág. 3 (voltar)

[19] Embora cada comunidade eclesiástica escolha suas próprias formas litúrgicas, estes elementos e alguns outros como os batismos e a música dão um caráter de homogeneidade ao culto evangélico. (voltar)

[20] W. E. Vine, Expository Dictionary of Old and New Testament Words, Revell Co., New Jersey, 1981 (voltar)

[21] Robert G. Rayburn, O Come, Let Us Worship, Baker Books, Grand Rapids, Michigan, 1980, pág. 23 (voltar)

[22] Donald P. Hustad, Jubilate ! Church Music in the Evangelical Tradition, Hope Publishing Co., Carol Stream, IL, 1981, pág. 64 (voltar)

[23] W. T. Conner, Op. Cit., pág. 302 (voltar)

[24] Robert G. Rayburn, Op. Cit., pág. 18 (voltar)

[25] Ibid., pág. 79 (voltar)

[26] Ilion T. Jones, A Historical Approach To Evangelical Worship, Abingdon Press, Nashville, TN, 1954, pág 61 (voltar)

[27] Franklin M. Segler, Christian Worship: Its Theology and Practice, Broadman Press, Nashville, TN, 1967, pág. 24 (voltar)


Fonte: http://www.convencionbautista.com

Traduzido por Levi de Paula Tavares em Junho de 2003


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