Se Eu Quiser Falar com Deus: A Oração na MPB e na Canção Cristã
por: Joêzer de Souza Mendonça
Resumo: Esse artigo estuda os diferentes modos de interpretação da comunicação espiritual com Deus, observados em duas canções homônimas: Se eu quiser falar com Deus, uma da autoria de Gilberto Gil, e outra de Mário Jorge Lima, compositor cristão. Utilizando as bases da teomusicologia, nosso objetivo é verificar como os dois compositores evidenciam sua compreensão religiosa por meio da seleção da mesma temática (a oração), porém, articulada em letras contrastantes.
Palavras-chave: Teomusicologia, Teologia, Música popular, Canção cristã.
If I Want to Talk with God: Prayer in MPB and Christian Song
Abstract: This paper studies the different manners of interpreting the spiritual communication with God seen in two homonymous songs: Se eu quiser falar com Deus (If I want to talk with God), one written by Gilberto Gil, and the other by Mário Jorge Lima, a Christian composer. Through the usage of Theomusicology, our objective is to verify how both composers show their religious understanding by selecting the same theme (the prayer) but enunciating it with discrepant lyrics.
Keywords: Theomusicology; Theology; Popular music; Christian song.
Da antropologia à comunicação social, passando pela sociologia e pela psicologia, a música cristã é observada como um fenômeno social e cultural que demanda interpretações multidisciplinares. Por isso, não se pode abdicar da compreensão teológica das canções religiosas.
Os temas religiosos não estão presentes apenas na música de fins religiosos ou litúrgicos. Os músicos sem vinculação religiosa denominacional também revelam sua visão a respeito do entendimento de Deus e sua maior ou menor aproximação às práticas e rituais de cunho religioso: de compositores mais afiliados ao tratamento tradicional de temáticas cristãs, como se observa no repertório do cantor Roberto Carlos (na emblemática canção Jesus Cristo) ou da dupla sertaneja Victor e Leo (Deus e eu no sertão), a compositores de religiosidade mais difusa, como Gilberto Gil (em canções como Todo Dia de Manhã e Graça Divina) e Renato Russo (em Pais e Filhos, que utiliza trechos bíblicos).
Podemos interpretar tais canções como “resultado de uma dinâmica interação com o Sagrado, embora nem sempre sejam nomeadas como religiosas ou teológicas pelos compositores” (CALVANI, 1998, p. 138).
As letras das canções mencionadas acima demonstram que muitos músicos ressaltam os temas religiosos, a despeito de sua prática musical alocar-se na esfera da música secular. Contudo, há divergência entre músicos cristãos e seculares quanto a suas visões dos atos de Deus e da relação homem-divindade, como descritos na Bíblia. Essas distintas maneiras de compreensão bíblica talvez sejam motivadas por suas diferentes esferas de atuação profissional e vivência religiosa.
As músicas cristãs revelam, em suas composições, uma compreensão mais referenciada na doutrina bíblica. Embora haja diferenciação de interpretação bíblica entre as variações do cristianismo, esse artigo não pretende ressaltar tais distinções. Antes, o objetivo é analisar comparativamente as diferentes cosmovisões religiosas entre compositores sacros e seculares na sua abordagem da temática cristã.
Nossa análise se detém em duas canções homônimas: Se eu quiser falar com Deus, sendo uma composição da autoria de Gilberto Gil, e a outra de Mário Jorge Lima, compositor cristão. Ao examinar, portanto, o componente religioso expresso nas músicas seculares e sacras, é possível empregar a teomusicologia como ramo preferencial de estudos, pois seu conceito e sua metodologia proporcionam uma abordagem mais centrada na elucidação da teologia presente na música.
O que é teomusicologia?
A relevância da presença da música cristã brasileira na sociedade tem sido estudada com as lentes de diversas áreas de conhecimento. Analistas têm se dedicado a investigar atitudes e comportamentos instaurados no circuito produção-comercialização das canções, em abordagens da economia da mídia e da comunicação. Estudiosos têm dado enfoque bem fundamentado aos aspectos de ruptura de processos tradicionais de liturgia. Pesquisadores têm examinado as letras e os estilos musicais dentro de um contexto de valorização de caracteres culturais modernos e pós-modernos.
No atual estágio das pesquisas musicológicas, não se pode abdicar da compreensão teológica das canções religiosas. A teomusicologia, sem renunciar ao empréstimo dos conhecimentos dos estudos culturais e da sociologia da religião, é um campo musicológico teologicamente informado.
Contudo, o teomusicólogo também deve observar a sacralidade presente na composição musical popular secular. Segundo Greeley, as múltiplas formas da cultura popular oferecem “paradigmas de significado” para os criadores e consumidores dessa cultura, propiciando fértil campo de estudo da “espiritualidade do secular” (1988, p. 9, 296). Isso não significa que os compositores populares são orientados por organizações religiosas, mas que a religiosidade está presente em sua produção musical.
No livro Theological Music: introduction to theomusicology, Jon Michael Spencer (1991) define a amplitude do raio de observação da teomusicologia, explanando o ponto de partida da teomusicologia, a saber, a pesquisa dos reflexos culturais e interculturais sobre o ético, o religioso e o mitológico; envolve o estudo da música criada, interpretada e ouvida nos domínios ou comunidades do sagrado (o religioso), o secular (o teísta não-religioso) e o profano (o ateísta irreligioso) (1991, p. xi).
Ainda segundo Spencer, o teomusicólogo será capaz de perceber “como a ética, a teologia e a mitologia, às quais as pessoas se subscrevem, moldam seus mundos e o mundo” (1991, p. xi, grifo do original). Por sua vez, Jacques Attali (1985, p. 4) entende que a “música é mais do que um objeto de estudo: é um modo de perceber o mundo”. Portanto, mesclando as afirmações de ambos os estudiosos, é possível observar como a música espelha a visão de mundo de um indivíduo.
Para Jeremy Begbie (2000, p. 3), mesmo “os teólogos do século XX deram atenção insuficiente ao potencial da música para explorar temas teológicos”. Em uma paráfrase, podemos afirmar que os musicólogos deram atenção insuficiente ao potencial da música sacra e da música secular para explorar temas teológicos.
A seguir, estudaremos as letras das duas canções considerando as contribuições da teomusicologia para a interpretação da cosmovisão tanto de um grupo religioso como também de músicos sem vínculos religiosos institucionais, mas que apresentam forte referencial de religiosidade.
Os compositores e o sentido da oração
Gilberto Gil é um compositor que costuma tocar em temas religiosos e transcendentes. Suas canções revelam uma religiosidade bastante includente, atuando numa perspectiva ecumênica que concede espaço comum para as religiões monoteístas e também para as religiões indígenas, orientais e afro-brasileiras. A religiosidade de matriz africana recebe especial atenção em canções como Iemanjá, Filhos de Gandhi, Axé babá, Omã Iaô, Réquiem para Mãe Menininha do Gantois, entre tantas outras.
Segundo Antonio Risério (1982, p. 81), Gilberto Gil assume “a possibilidade de assimilar todas as formas e práticas de manifestação do espírito”, sugerindo que “quanto mais deuses, melhor”. Com essa visão abrangente e sincrética da religião, Gil procura em sua obra traduzir as inquietações da fé.
Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil)
Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata / Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos / Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração
Essa canção expressa a comunicação transcendente com o divino com alta carga de dramaticidade, humanizando a relação Deus-homem com toda a complexidade dos sentimentos e contradições. O ser humano precisaria primeiro abandonar rotina, vontades e medos, em um esvaziamento que o despe por completo diante da divindade.
Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada / Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar
Risério (ibid., p. 81) comenta que a compreensão pessoal de Gil sobre o sagrado navega em uma “religiosidade cósmica, reconhecendo que as coisas estão cheias de dúvidas”. A última parte da canção pulveriza as expectativas de quem procura comunicar-se com Deus ao denotar profunda ambiguidade. Por outro lado, é possível inferir que a intensiva reiteração do termo “nada” significa que o sujeito ficará desapontado ao descobrir que Deus não é nada do que poderia ser. Como Gil já cantara em Esotérico, “Se sou algo incompreensível, meu Deus é mais”.
A partir de outra concepção religiosa, o compositor Mário Jorge Lima responde às hesitações de Gil com menor voltagem poética e maior simplicidade, em uma versão até didática da compreensão bíblica da oração.
Se eu quiser falar com Deus (Mário Jorge Lima)
Se eu quiser falar com Deus,
Já disse alguém que é preciso estar a sós
Na penumbra então ouvir
Falando a mim em pensamento a Sua voz
Se eu quiser falar com Deus
E assim deixar fluir a voz do coração
Ele poderá me ouvir pelas palavras desta doce oração
Mário Jorge Lima começa sua música respondendo às ideias de Gilberto Gil, mas atraindo o debate para a apresentação de uma contraparte bíblico-cristã do conceito de comunicação espiritual com Deus.
O autor concorda com Gil que, para melhor falar com Deus, é preciso estar a sós a fim de ouvir a voz do próprio Deus, entendida por meio do pensamento e não da audição fisiológica.
Enquanto Gil entrevê uma série de atitudes de humildade (outros podem ver como “humilhação”) que antecederiam o contato espiritual com Deus, Lima simplifica os embates individuais da alma ao sugerir que o ato de procurar a Deus em oração já consiste em humildade suficiente para ser ouvido.
Se eu quiser falar com Deus
E sem ruído entrar em comunicação
Através de meu Jesus que lá no céu está em santa intercessão
Posso sim falar com Deus
E a qualquer hora posso abrir o meu coração
Ele mesmo ensinou as frases lindas desta bela oração
Pai nosso que estás no céu
Santificado Teu nome seja sempre
O Teu reino entre nós se estabeleça
Tua vontade seja feita
Dá-nos o pão e o perdão de nossas faltas
E livra-nos do mal
Pois Teu é o reino e o poder
É Tua glória para sempre
Amém
Quando Mário Jorge Lima diz que Jesus está no Céu, em intercessão, ele confirma um credo básico do cristianismo – Jesus teria, de fato, ressuscitado após a morte na cruz e ascendido ao Céu -, e uma doutrina básica do protestantismo (e do adventismo em particular) – Cristo tem uma função de mediador entre Deus e os seres humanos.
A letra se encerra com a citação da oração tal qual o próprio Cristo teria ensinado: o Pai-Nosso, cuja aparente simplicidade detalha uma gama de atitudes do homem em relação a Deus.
Na canção de Gilberto Gil, a comunicação com Deus exige o reconhecimento da distinção radical entre a divindade e o ser humano e também requer o abandono de si mesmo e a passagem pela dor (tenho que me achar medonho / tenho que me achar tristonho; tenho que comer o pão que o diabo amassou). Na canção de Mário Jorge Lima, falar com Deus é um ato que não exige pré-requisitos a não ser a disposição pessoal de querer comunicar-se com Deus (Posso sim falar com Deus / E a qualquer hora posso abrir o meu coração).
Enquanto Lima trabalha a problemática levantada por Gil na chave didática da resolução das tensões e conflitos, Gil redimensiona a relação entre Deus e o ser humano, oferecendo um amplo painel de sentimentos, alguns até aviltantes (tenho que ser um cão). Gil tensiona a carga dramática ao colocar o ser humano em um contexto de abandono da soberba, da arrogância. Tal atitude, ainda assim, seria capaz de gerar alegria.
No entanto, a concepção de autossuplício como forma de chegar a Deus parece baseada na compreensão católica medieval de automartirização, uma atitude em que o sujeito precisaria mortificar o corpo a fim de salvar a alma. O comportamento supliciante de católicos em romarias e procissões atesta que esse modelo ainda está presente nas práticas religiosas do catolicismo contemporâneo (no Círio de Nazaré, por exemplo).
A versão de Gil para a comunicação espiritual termina de forma ambígua, sendo que o enunciador descobre que a estrada “vai dar em nada, nada, nada” daquilo que ele pensava encontrar. Enquanto a certeza de Lima é de que Deus ouvirá a oração de quem procura comunicar-se com Ele, a única certeza de Gil é a imprevisibilidade. Para Gil, pode haver decepção (não é nada daquilo que se esperava achar) ou alegria (é melhor do que aquilo que se esperava encontrar).
Feita para o cantor Roberto Carlos, este se recusou a gravar a canção de Gil, explicando que ela “fala de Deus diferente da forma que eu falaria” e que uma música “tem que ser compatível com meu pensamento, […] com a forma que eu vejo as coisas” (BRAVO, 2008, p. 94). Em 1995, Roberto Carlos gravou a canção Quando eu quero falar com Deus, de versos mais simples e diretos, sem as incertezas provocadas pela letra de Gil.
A compreensão da oração como um ato simples de “chegar a Deus” também comparece na canção americana Have a talk with God, de Stevie Wonder, cantor/compositor admirado por Gilberto Gil. Nessa música, a oração surge como provedora de sentido para o ser humano – “todo problema tem uma resposta / e se você não achou a sua, você deveria ter uma conversa com Ele / Ele lhe dará paz de espírito / Quando a vida é difícil demais, tenha uma conversa com Deus”, diz a letra.
A canção de Stevie Wonder encontra equivalência quanto ao sentido de segurança teológica e à previsibilidade poética na letra da canção Falar com Deus, de dois compositores adventistas, Lineu Soares e Valdecir Lima: “Orar a Deus faz bem à alma / Falar com Deus me satisfaz”. Como nas canções anteriores, os músicos estão notadamente articulando suas diferentes perspectivas teológicas em suas práticas musicais.
Considerações finais
As músicas estudadas evidenciam a mesma temática – a comunicação espiritual com Deus (oração). Contudo, o desenvolvimento dos conceitos religiosos é nitidamente distinto não apenas quanto ao tratamento poético do tema, mas também quanto ao seu tratamento teológico. A cosmovisão religiosa de Gilberto Gil transmite uma ideia de ambigüidade relacional – humildade/humilhação, certeza/imprevisibilidade. A cosmovisão religiosa de Mário Jorge Lima assume a simplicidade e a orientação bíblica na relação com Deus. A ambiguidade de uma música não encontra eco na certeza da outra música. A dramaticidade poetizada de uma canção não encontra equivalência no didatismo poetizado da outra.
Nossa análise não privilegiou o tratamento propriamente musical (melodia/harmonia/ritmo) que os compositores adotaram. Mas podemos mencionar que a audição das duas músicas intituladas Se eu quiser falar com Deus confirma certa aproximação melódica e rítmica. Essa proximidade quanto à linha melódica e à escolha do estilo rítmico sugere que a resposta bíblica da canção de Mário Jorge Lima se deu também no campo estético. Não com pretensões de fazer algo “melhor artisticamente”, mas de usar semelhantemente o mesmo campo estilístico a fim de desenvolver distintamente os mesmos temas.
Vemos, assim, que o campo teomusicológico abrange a análise da representação canônica bíblica presente na atividade musical secular. Essa via metodológica é capaz de articular uma perspectiva binária: a análise da música enquanto promotora de valores e doutrinas sagradas para uma igreja e também como instrumento de compreensão da simbologia teológica presente na música secular popular.
Referências bibliográficas
ATTALI, J. Noise: an essay on the political economy of music. Manchester University Press, 1985.
BEGBIE, J. Theology, music and time. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
BRAVO. 100 canções essenciais da música popular brasileira. São Paulo: Abril, 2008.
CALVANI, C. E. Teologia e MPB. São Paulo: UMESP/Edições Loyola, 1998.
GREELEY, A. God in popular culture. Chicago: Thomas More Press, 1988.
RISÉRIO, A. Expresso 2222 – Gilberto Gil. Salvador: Corrupio, 1982.
SPENCER, J. M. Theological music: introduction to theomusicology. Nova York: Greenwood Press, 1991.
Joêzer de Souza Mendonça é Doutorando em Musicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Bolsista Fapesp.
Fonte: Revista Kerigma – 1º Semestre de 2011, pp.11-18.