Breve História da Notação Musical
por: Salomea Gandelman
É noite de estréia: a orquestra faz sua primeira apresentação para o público! Agitando as mãos, o maestro comanda os músicos. E, volta e meia, confere alguns papéis, colocados à sua frente. O mesmo fazem os instrumentistas! Com um olho no regente e outro nas folhas, eles tocam para a platéia, que já se pergunta: afinal, o que está escrito nesses papéis que o maestro e os músicos não cansam de olhar? Ora, só algo muito importante para a orquestra: a música!
Sim, como a língua que falamos, a música também pode ser lida e escrita. Isso porque, ao longo dos séculos, os sons e as instruções necessárias para tocá-los começaram a ser representados graficamente no papel. Mas até que isso acontecesse um longo caminho precisou ser percorrido.
A música, durante muitos séculos, foi transmitida oralmente. As pessoas a cantavam ou tocavam e, dessa maneira, ela ia sendo passada de geração em geração. Hoje, canções folclóricas — como as de nossos índios e as de grupos africanos — ainda são, em geral, difundidas dessa forma: com a música sendo registrada apenas na memória.
Por volta do século 9, porém, esse jeito de levar a música às pessoas começou a mudar. Nessa época, a música costumava ser cantada e usada em cultos religiosos. Então, para ajudar os que cantavam a se lembrar dela, foram criados símbolos — pontos, traços e linhas sinuosas –, que acompanhavam os textos apresentados nas cerimônias. Era preciso escrever as músicas para que não fossem esquecidas. Veja os símbolos que representavam o canto gregoriano no séc.9.
Era o início da notação musical. Ferramenta indispensável para ler e escrever música, ela é nada mais, nada menos do que a representação gráfica dos sons e das instruções para tocá-los feita sobre o papel — a partitura. Esses sons são imaginados e ouvidos mentalmente pelo compositor e vão parar no papel para que a música não seja esquecida e, assim, possa ser tocada novamente.
Ao olhar uma partitura com atenção, músicos treinados e experientes são capazes de ler a música impressa no papel e ouvi-la mentalmente. Nesse primeiro contato, eles começam a pensar como gostariam de executá-la. Os regentes de orquestra, contudo, têm um trabalho mais complexo: ao olhar uma partitura, eles não imaginam apenas a parte que cabe a cada instrumento. Eles ouvem, na sua mente, toda as partes, de todos os instrumentos, somadas.
Os sons que podem ser lidos ou ouvidos têm, basicamente, quatro qualidades: altura, duração, intensidade e timbre. A altura é a capacidade que o som tem de ser mais grave ou agudo; é o movimento de subida e descida dos sons que cria a melodia da música. A duração é a capacidade que o som tem de ser mais longo ou curto; é a seqüência de sons com durações diferentes que cria o ritmo da música. A intensidade é a capacidade que o som tem de ser mais forte ou fraco. Por fim, o timbre é a qualidade de diferenciar instrumentos e vozes uns dos outros.
Combinando de diferentes formas a altura, a duração, a intensidade e o timbre dos sons, o ser humano criou as músicas, em diferentes formas e com diversos propósitos. Para não esquecê-las e, assim, fazer com que elas pudessem ser tocadas de novo, ele inventou maneiras de registrá-las no papel — as partituras. No entanto, o mais interessante é que, ao fazer isso, permitiu um enorme desenvolvimento artístico!
Os compositores, ao transmitirem para o papel as ideias musicais que tinham, foram, aos poucos, tornando as composições mais longas e complexas. Houve um estímulo para a criação de novos instrumentos, o uso deles em grande número e ao mesmo tempo e a construção de salas de concerto maiores. A própria notação musical — a representação gráfica dos sons e das instruções de como tocá-los, lembra? — também foi se tornando mais precisa e complexa. Ela retratou, ao longo da história, as transformações que a música passou e as mudanças que ela ainda sofre.
Na pauta musical, as claves (que podem ser de sol, fá ou outras notas) indicam a região em que a música será executada.
No século 11, por exemplo, os sons passaram a ser chamados de ut (que depois virou dó), ré, mi, fá, sol, lá, si. Nessa época, as seqüências de sons também começaram a ser registradas com maior precisão em linhas e espaços — a pauta. Ela era acompanhada pelas claves, sinais que indicam em que região — se na mais grave ou mais aguda — os sons serão ouvidos ou executados.
Até o século 13, a música instrumental era pouco comum. A música era cantada. Então, existia uma forte relação entre ela e a palavra. O ritmo musical era dado pelo ritmo da palavra e resultava da sucessão de sílabas curtas e longas, acentos fracos e fortes. A duração de cada som, no entanto, não era precisa, pois ela ainda não havia sido medida e nem existia uma preocupação em fazer isso. Sabia-se apenas que o som era longo ou breve e era essa informação que ia para o papel.
A ideia de medir a duração dos sons só chegou à música com a criação do primeiro relógio na cidade de Londres, na Inglaterra, no século 13. Nessa época, surge a preocupação em medir o tempo, o que teve influência na música. A duração do som passa a ser medida e representada na partitura. Também são estabelecidas proporções entre as durações. Ou seja, é definido se a duração de um som é o dobro ou o triplo, por exemplo, de outra duração, que serve como referência.
No final do século 18, os avanços na construção de instrumentos musicais permitem que os músicos comecem a se expressar de novas maneiras. Eles passam, então, a fazer mudanças gradativas na intensidade dos sons durante a execução da música. Por conta disso, surgem sinais para indicar, no papel, essas mudanças gradativas, que vão do pianíssimo — ou pp, que significa muito suave — ao fortíssimo — ou ff. Modificações sutis e gradativas na velocidade em que a música deve ser tocada também começam a ser assinaladas. Elas são indicadas com termos como accelerando — que quer dizer progressivamente mais rápido — e rallentando — gradualmente mais lento.
Como a notação musical sempre procurou acompanhar as mudanças que ocorreram no processo de criação musical e isso continua a acontecer, no século 20, foram criadas representações gráficas dos sons diferentes das que existiam até então. Isso ocorreu por conta dos novos efeitos sonoros e das novas formas de explorar os instrumentos musicais que surgiram na época. De um modo geral, as representações gráficas inventadas no século passado costumam dar maior liberdade ao intérprete da música e o convidam a improvisar.
Na primeira pauta, as alturas e durações dos sons de uma melodia foram
escritas da forma tradicional; na segunda, de uma forma diferente, criada pelo compositor. Suíte mirim para piano, de Ernst Widmer (1927-1990).
Antes de encerrarmos esse papo sobre notação musical, há duas coisas que você precisa saber. A primeira é que, apesar de representar graficamente os sons e as instruções para tocá-los, a notação musical, sob certos aspectos, é bastante imprecisa. Por conta disso, ela permite que nós possamos pensar em interpretações diferentes para a mesma música, o que interfere no seu sentido.
É como na poesia: quando lemos um poema, temos de pensar onde vamos respirar, quanto irá durar nossa respiração, quando recitaremos mais baixo, mais piano ou mais forte, em que momento leremos mais lento ou rápido, em qual trecho apressaremos ou atrasaremos nossa fala e assim por diante. O sentido que o poema irá ganhar dependerá de cada decisão que tomamos.
Além de levar em consideração que a notação musical tem o seu lado de imprecisão, você precisa ter em mente que ler e escrever música, como ler e escrever a nossa língua, exige estudo. Naturalmente, podemos nos comunicar verbalmente, criar poesia e inventar histórias sem saber ler e escrever. Da mesma forma, também podemos inventar música, cantar, fazer desafios e até mesmo tocar “de ouvido”, isto é, tentar reproduzir em um instrumento alguma música de nossa preferência ou alguma ideia musical que tenhamos inventado. Mas, sem dúvida, ao agir dessa forma, ficamos limitados aos nossos sentidos e à nossa memória. E, assim, desperdiçamos a riqueza musical que foi construída por vários artistas ao longo dos séculos.
Fonte: Ciência Hoje das Crianças 138, agosto 2003
Instituto Villa-lobos, Universidade do Rio de Janeiro.