Música Sacra dos Mestres: “Gotas de Orvalho da Graça”

por: Philip Yancey [1]

A música religiosa tem, com toda coerência, convocado os grandes compositores a suas mais altas consecuções nesta arte.

Encontro-me reclinado sobre almofadas ouvindo uma récita de antigas e repetidas palavras: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, e em Jesus Cristo, Seu único Filho, nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz de Luz; verdadeiro Deus, gerado, não criado”. Estas são as familiares e repetidas palavras do Credo Niceno, palavras que uma vez induziram violentos debates e numerosos concílios, mas que hoje, afinal, incrustadas nas paredes do cerimonial ritualístico.

Mas quando afinal o orador termina, o auditório irrompe em vigorosa exclamação. Alguns batem com o pé no chão, outros gritam: “Bravo!” E há outros ainda que assobiam com os dedos. Eu olho ao redor. Não se trata de pessoas carismáticas [que], reunidas num templo, permitem que num bocejo sejam repetidas mecanicamente em ajuntamento profético[2]; mas de pessoas bem postas na sociedade como advogados, médicos, juízes, executivos, os quais, pagamos todos 10 dólares para ouvir a recitação do Credo Niceno. Em grande parte eles deixaram de ver a ironia que para mim se mostrou enorme: Em muitas igrejas em toda a cidade de Chicago raramente se houve um “amém” aqui ou ali partido dos lábios dos raros presentes na hora do culto, enquanto que neste caso, pessoas não religiosas conseguem reunir uma verdadeira multidão para aplaudir a bem orquestrada Missa Solene de Beethoven.

O orador neste caso é o coral da Orquestra Sinfônica de Chicago e o seu solista[3]. Mas eles estão fielmente traduzindo as palavras baixadas pelo Concílio de Nicéia em 325 A.D. Essas mesmas palavras, como interpretadas por Mozart e Haydn ou lingüisticamente adaptadas por outros, são repetidas muitas vezes por hábeis profissionais nas principais cidades do mundo ocidental.

Conheço uns poucos músicos e não sugeriria que eles realizam uma função clerical [e não “clérica”, como no original] em qualquer sentido. Felizmente para os incrédulos dos corais essas palavras altamente carregadas de graça são inteiramente acondicionadas em frases latinas que deslizam da língua. Todavia, enquanto observo, algo como um milagre parece ocorrer. Um tenor judeu na terceira fila, que não dá um níquel pelo “Unigênito Filho de Deus”, este tenor sente-se como que tendo a face transformada. Ele se ergue como que iluminado, e sorvendo um profundo jorro de ar, exclama em sua voz de tenor: Agnus Dei, qui tollis peccata mundi (Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo), como se fosse este o único apelo verdadeiro que já tenha feito. Talvez, por um momento, ele realmente tenha feito este apelo, ele, um tenor judeu.

Talvez o duro e velho Beethoven que, dizem, sacudiu os punhos trovejantes contra o céu antes de se relaxar e finalmente entrar no sono da morte, talvez Beethoven tenha encontrado o significado das palavras ao rebuscar na mente procurando o melhor modo de transmiti-las. A música, uma poderosa comunicadora de pensamentos, demasiadamente não terrena para ser plenamente expressa, assume o seu próprio poder, possuindo o compositor, o regente, os participantes das cenas, todo o auditório. Por umas poucas horas, pensamentos sobre problemas de salários, de partidos ou reuniões diversas da parte dos artistas, bem como minhas próprias preocupações sobre compromissos, chamadas telefônicas, etc., renderam-se à sublime contemplação do insondável.

Eu não estou sozinho – até mesmo os críticos de música mais endurecidos são vulneráveis. Revendo um disco recente do A German Requiem de Brahms gravado pela Sinfônica de Chicago, Heuwell Tircuit (do San Francisco Chronicle) escreveu: “O desempenho é divino (em vários sentidos). Constitui uma transbordante experiência, experiência esta que não é apenas técnica e estilisticamente perfeita, mas se move num fantástico modo religioso. Quando o coral canta sobre o ‘Cristo Vivo’, até mesmo um ateu é capaz de crer nEle”.

Quando começamos a nos preocupar com a soma de dinheiro despendida nos programas musicais religiosos que mantemos nas estações de rádio ou em programas outros, não estaremos de algum modo esquecendo o impressionante impacto desses monumentos ao Cristo vivo?

Ao passo que tenho minhas dúvidas sobre a bomba de nêutrons, sobre o Concorde, e outros aparatos modernos, sou diariamente deleitado por um recurso não partilhado por nenhuma outra geração da História: Posso convidar para minha saleta de música o Coral Bach de Munique ou a Orquestra de Concertos de Amsterdã. Posso sentar-me diante de meus oradores e desfrutar sua música como a nobreza da Europa que encomendava essas peças musicais para seus grandes salões ou suas capelas particulares.

Como música, ninguém põe em dúvida o valor da perdurável obra musical de Mozart, Handel, e Bach. Mas que diríamos do seu valor como reflexo da fé religiosa pessoal dos compositores? Pretendiam eles expressar realmente um testemunho de profundos sentimentos religiosos?

A resposta, é claro, varia com cada compositor. Alguns deles, poucos, viveram uma vida disciplinada de humilde espiritualidade, como se pode exemplificar com os piedosos César Frank e Anton Bruckner. Este último especialmente escreveu suas obras procurando refletir sua crença de que Deus é bom e todo homem deve honrá-Lo. Enquanto se dedicava a duro trabalho nesta sua Décima Sinfonia, ele fez notar a Gustav Mahler: “Agora tenho de trabalhar com mais afinco, pois do contrário não passarei perante Deus, diante de quem logo deverei apresentar-me. Ele dirá: ‘Dei-lhe muito talento para que você pudesse cantar Meu louvor e glória! Mas você realizou muito pouco'”. Bruckner a princípio conjurou, resistiu às zombarias de seus colegas de universidade por causa de sua humilde fé. Vestido numa jaqueta rural de sua nativa Áustria, cabeça volumosa e rosto vincado, subitamente ele parava com suas aulas quando soavam os sinos de uma igreja próxima. E ali mesmo, no próprio assoalho da sala de aula, ele se ajoelhava e orava antes de retomar a aula. Poucos, entretanto, deixaram de ficar impressionados com sua sinceridade e fervor religioso.

Dois compositores famosos, Handel e Mendelssohn, serviram quase como evangelistas, memorizando histórias e temas bíblicos em coloridos épicos musicais. Handel compôs vinte oratórios, incluindo Saul, Israel no Egito, Jefté, e provavelmente a mais elaborada peça clássica musical de todos os tempos, o [oratório] O Messias. O auditório de Handel chorou quando em Sansão a personagem exclamou: “Total eclipse – não há sol! Tudo escuro em meio ao quente sol do meio-dia!” O idoso Handel estava em pé no palco completamente cego.

Mendelssohn contribuiu para dois oratórios: São Paulo e Elias, bem como para duas sinfonias religiosas: a sinfonia para coral: Hino de Louvor; e a Sinfonia da Reforma. Por um desvio da História, Mendelssohn não é executado muito hoje em dia, em parte devido ao programa de Hitler de eliminar dos palcos programas de influência judaica (o avô do compositor era um filósofo judeu, sendo ele e seu pai convertidos ao cristianismo). Dois católicos ortodoxos, Mozart e Haydn, produziram volumes de música sacra, mas como Handel, compuseram temas religiosos por razões econômicas, visto que receber comissões para acontecimentos especiais de natureza religiosa era coisa muito comum.

Música religiosa profunda tem fluído da pena de homens cuja vida era marcadamente irreligiosa. Veja-se para exemplo Tchaikovsky, um infeliz paranóico homossexual e grandemente dado a bebidas. Todavia, ele nos brindou com ricas composições como “A Oração do Senhor”, ou Brahms, criado em recinto deplorável e provavelmente não cristão, embora conhecesse a Bíblia muito bem, havendo nos enriquecido com o A German Requiem.

Beethoven escreveu poucas obras religiosas, mas tanto ele como Gustav Mahler eram indagadores do por quê da vida, do sofrimento, ou se a morte seria a explicação para a vida. Musicalmente, entretanto, esses dois fizeram suas indagações por meios dramaticamente diferentes. Beethoven ergueu titanicamente os punhos para o céu. Mahler torceu as mãos em desesperada angústia.

A música religiosa tem, com toda coerência, convocado os grandes compositores a suas mais altas consecuções nesta arte. De suas centenares de obras, Beethoven escreveu apenas duas missas. Mas ele afirmou que Missa Solene foi sua mais alta composição.

Parte da razão está no implícito desafio de traduzir temas que têm sido tentados por quase todos os grandes compositores. Imagine-se a tarefa de dar novo tratamento a um texto tão destituído de impressionante imagem literária como o Credo Niceno. Palestrina produziu 93 missas como estas. Os que o seguiram competiram como numa olimpíada para expressar o familiar de modo a cativar com arroubos musicais.

Creio que o verdadeiro segredo, todavia, deva ser encontrado na implícita profundidade dos temas cristãos. Em contraste, as Nações Unidas, durante sua recente comemoração de 25 anos, comissionou um compositor para escrever uma peça intitulada: “Para a Posteridade”. Musicalidade nova pode vir de pequenos pensamentos – ocasionalmente uma boa peça pode vir de banalidades atuais, digamos assim, como a baboseira de exaltação do amor de adolescentes, por exemplo. Mas dê-se a um gênio como Beethoven um concerto tal como “Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus”, ou designe-se a Handel o quadro surrealista de “Digno é o Cordeiro”, de Apocalipse 5, e poder-se-á começar a compreender o combustível que incendiou a música através dos séculos.

Pode fazer-se um caso da teoria de que a música jamais teria alcançado seu glorioso zênite na civilização ocidental sem a energia combustível dos temas cristãos. Entrego esta questão aos teóricos. Sei, porém, que quando leio Apocalipse 5 e então coloco a agulha num disco-versão original de Handel, um frio percorre a minha espinha. A música como que provoca um curto-circuito dos sentidos com direta passagem para a emoção humana. Minha fé sobre Deus e a graça e a redenção fica transfigurada pelo produto criativo do gênio musical que induziu esses mesmos tempestuosos conceitos liberatórios.

Acima de todos os outros, um homem simboliza a perfeita mistura de ideais musicais e religiosos. Refiro-me, naturalmente, a Johann Sebastian Bach, pai do principal desenvolvimento da música ocidental. Que outra figura já conquistou um lugar na capa de uma revista como Time 250 anos depois de seu nascimento?

O ensaísta Lewis Thomas recebeu a pergunta sobre que compositor ele usaria em comunicações interestelares. Sua resposta: “Eu votaria em Bach, como um caudal musical espaço afora”.

Nascido na sombra do castelo de Wartburg onde Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, Bach se tornou o singular compositor mais identificado com a igreja, no seu caso a igreja luterana. Ele não era santo; estava sempre ofendendo os estudantes e se opondo à autoridade que pudesse restringir sua liberdade musical. Mas ele tinha um claro objetivo em vista. O propósito de sua música, ele mesmo o disse, não devia senão à “glória de Deus [e] à recreação da mente”. Bach atacou este alvo com insaciável sede de perfeição e um formidável conhecimento da Bíblia. Ele escreveu como se o próprio Deus estivesse perscrutando cada nota e cada frase, iniciando muitos manuscritos com as abreviações latinas JJ (“Jesus, ajude”), e terminando com SDG, Soli Deo Glória (“Somente a Deus seja a glória”).

As aproximadamente 300 cantatas religiosas de Bach vão desde meditações sobre a relação entre Cristo e Sua noiva, a igreja, até exultantes celebrações da ressurreição final. Em seus últimos dias ele pôde confiantemente ditar esta mensagem: “Vem, dulcíssima morte, vem bendito repouso e toma a minha mão e conduze-me avante”. Enquanto literalmente à beira da morte, ele ditou uma final composição coral a que deu o título: “Com isto eu me aproximo do Teu trono”.

Das mais importantes obras de Bach, a Paixão de Nosso Senhor Segundo São Mateus é geralmente tida como a maior obra para coral que ele escreveu. Ela recebeu uma apresentação nos dias de Bach, causou pouco impacto, e deixou de ser apresentada durante pelo menos 100 anos. Então em 1829 Félix Mendelssohn recebeu uma cópia do manuscrito das mãos de seu professor, que, segundo alegação, comprou o original de um comerciante de queijos que usava originais sem valor para embrulhar o seu produto. Mendelssohn promoveu um reavivamento da Paixão Segundo São Mateus, fazendo irromper uma onda de entusiasmo por Bach como jamais houve antes. Antes que ele terminasse o preparo da obra para apresentação, o jovem de 20 anos, Mendelssohn, tinha se convertido à fé em Cristo.

Eu ouvi esta grande obra num concerto de verão pela Orquestra Sinfônica de Chicago e Coral em Revina Park, perto de Chicago. Três mil pessoas se reuniram para ouvir uma apresentação de 4 horas de duração. Uma vez mais fiquei presa da ironia com tão grande multidão reunida ali, multidão composta desde grandes eruditos e intelectuais até jovens de blue jeans. A população judaica da margem norte de Chicago estava livremente espalhada entre a multidão. Todos ouviam enlevados a narrativa musicada da crucifixão de Jesus segundo o evangelho de São Mateus.

Cinco vezes durante a apresentação todo o coro cantou a parte da paixão em que há as palavras: “Oh, sagrada cabeça, agora ferida”.

A cena foi como que erguida da poeira do tempo daquela sangrante noite do Calvário como qualquer um pode imaginar. De algum modo, todavia, exerceu o seu fascínio. Executantes pagos e artistas vários traduziram a agonia e horror daquele dia escuro, bem como seu profundo significado para toda a humanidade.

Quem conhece o impacto que teve a apresentação? Não sei de nenhuma igreja que tenha tido qualquer reavivamento em razão de alguma fagulha dispersada pela música clássica. Mas em mim, um crente, o penoso cuidado investido pela maior mente musical em expressar aquele acontecimento que dividiu a História em duas partes, encontrou recompensa. C. S. Lewis referiu-se à grande arte como “gotas de graça”, que pode despertar em nós uma sede do verdadeiro objeto. Sob a regência correta, essas gotas podem tornar-se um dilúvio da presença de Deus.


Notas dos editores:

[1] Agradecemos à Loide Simon por esta contribuição ao Música Sacra e Adoração. Aproveitamos a nota para esclarecer ao leitor que todas as expressões em [colchetes] são alterações dos editores do Música Sacra e Adoração, e não constam do original.

[2] O autor faz uma clara referência às manifestações entusiásticas encontradas nos cultos carismáticos, comparando-as com os aplausos das salas de concerto. Porém, a frase no original não é clara quanto ao seu sentido. São inúmeros os erros de português e concordância no presente texto, não os corrigiremos todos. Provavelmente o desconhecido tradutor de Philip Yancey tenha se distraído um pouco para o trabalho neste texto.

[3] O mais correto seria “os seus solistas”, posto que a referida missa de Beethoven possui solos para as quatro vozes (Soprano, Contralto, Tenor e Baixo) e mais um para violino. 


Fonte: Revista Adventista. Maio de 1981, pp. 43-45.