Música: Moralmente Neutra?

Entrevista com o Dr. Wolfang Hans Martin Stefani, Ph.D.

Poucas pessoas podem falar com tanta autoridade e equilíbrio sobre música como o Dr. Wolfang Hans Martin Stefani, Ph.D. Ele é professor, pastor e especialista na área da música sacra. Dentre as muitas funções de seu ministério, atuou como diretor de música, organista, pianista e regente de corais em várias Igrejas dos EUA, Inglaterra e Austrália. Como especialista na área, tem recebido inúmeros convites para ministrar palestras, em vários países dos cinco continentes. Atualmente, exerce função de pastor da Igreja Adventista de Albury, cidade situada 580 Km ao sul de Sidney, Austrália. Casado com a professora Julie Stefani, tem um filho de 13 anos, Kristian.

O Dr. Stefani participou do 8º encontro de músicos realizado no Centro Universitário Adventista do UNASP, Campus 2. Durante o evento foi lançado um livro de sua autoria, intitulado “Música Sacra, Cultura e Adoração.” Num dos Intervalos ofereceu esta entrevista ao prof. Renato Stencel, para a Revista Adventista. O prof. Stencel é coordenador da Imprensa Universitária Adventista do Unasp.

Revista Adventista: A música é moralmente neutra?

Dr. Stefani: Em meu ministério, lido com questões muito difíceis e complexas em relação à música. Esta pergunta certamente tornou-se muito importante para mim. Há muitos escritores que defendem a neutralidade moral da música, dentre eles, alguns cristãos. Esta abordagem tem levado muitas pessoas a crerem que a música está além das categorias do certo e do errado. Outros chegam a afirmar que, pelo fato de a música não ser um assunto diretamente ligado ao tema do Grande Conflito, pode ser tratada segundo a preferência, gosto individual ou cultural. É claro que esta visão evita muitos questionamentos difíceis, permitindo ao ser humano fazer apenas o que lhe agrada nesta área. Mas esta conclusão é válida?

O musicólogo americano Clyde Kilby faz um comentário pertinente a esse respeito, quando pergunta: “Um homem pode escovar os dentes ou amarrar o cadarço do sapato de forma amoral, mas pode ele criar algo sem qualquer envolvimento moral?” Na linguagem verbal, palavras individuais podem ser consideradas neutras, mas na linguagem vulgar, obscena, ou mesmo ao tomar o nome de Deus em vão, elas deixam de ser neutras.

Como cristãos, acreditamos que isso é errado, pois, quando as palavras são usadas em certos contextos, reunidas de certas maneiras, carregam significados passivos de avaliação. A música, como uma linguagem emocional poderosa, faz a mesma coisa, como mostra fielmente a história da indústria musical. Se, na indústria da música secular, os produtores não tem nenhum problema em combinar música com cenas de filme, como podemos dizer que a música é neutra e sem significado, incapaz de ser avaliada por uma análise pertinente aos sentimentos, por exemplo? Quando estudamos a maneira como a música exerce influência, convencemo-nos de que ela pode e deve ser avaliada. Além do mais, quando se começa a entender como o estilo de música é formado, incorporando a influência de fatores essenciais de cosmovisão, não há dúvida de que a música simplesmente não pode ser neutra do ponto de vista religioso e moral. Ele á claramente carregada de valor.

Este assunto de neutralidade ou não neutralidade é, de muitas maneiras, semelhante a uma encruzilhada na discussão sobre a música. Qualquer direção que tomemos nesta questão determina todos os outros resultados. É por esta razão que este assunto assumiu tamanha importância em minha mente.

RA: Até que ponto a cultura deveria influenciar na música Sacra?

Dr. Stefani: Não há dúvida de que a cultura é uma parte importante da herança de qualquer pessoa. Ela ajuda a construir a base pela qual pensamos e agimos. Mas, como cristãos, reconhecemos que a cultura é um produto humano, um modo de vida complexo que uma sociedade cultiva. Como tal, acreditamos que nenhuma cultura é sacrossanta. Embora se deva respeitar as culturas como o produto do tempo e do amadurecimento de uma sociedade, elas também precisam ser analisadas com base nos Evangelhos. O Teólogo Paul Tillich uma profunda declaração sobre a cultura, a qual nos ajuda a compreender melhor esta questão: “A religião é a essência da cultura, e a cultura, é a forma da religião”. Ele está dizendo que a religião é, em seu sentido mais amplo, aquilo que dá sentido à cultura, e que a cultura é o modo como o fundamento da religião se expressa. Isto significa que todos os produtos culturais já incorporaram em si valores metafísicos. As artes e especialmente a música refletem e comunicam estes valores. Quando esse valores estão em harmonia com a revelação bíblica, os cristãos podem sentir-se seguros em participar de suas respectivas culturas. Obviamente isto também se aplica à música sacra.

RA: O senhor disse que todos os produtos da cultura, neste caso a música, “já incorporam em si valores metafísicos”. O que quer dizer com isso?

Dr. Stefani: Por exemplo, vários etnomusicólogos reconhecem que numa cultura, a música sacra principalmente é governada ou controlada pela concepção da deidade adorada. A seleção de componentes musicais, as formas, os instrumentos são todos desenvolvidos em harmonia com o objeto de adoração. Esse processo poderia ser resumido de forma sucinta nesta frase: “O que governa o coração, forma a arte.” Isto pode ser claramente observado através das religiões transcendentes e imanentes. Numa cultura transcendente, onde a compreensão de Deus está além e acima de nós, enfatiza-se o objeto da adoração, contempla-se ou medita-se em suas palavras e ações conforme registradas nas Sagradas Escrituras. Conseqüentemente, o estilo de música tenderá a focalizar mais na letra de uma melodia cantada pela voz humana, evitando-se deliberadamente elementos como ritmo e variação dinâmica que nos lembre o envolvimento psicofisiológico com o aqui e agora.

Quando nossa compreensão a respeito de Deus é predominantemente imanente, ou dentro de nós, e a possessão pela deidade é o objeto de adoração, o estilo oposto de música se manifesta. No lugar da contemplação e meditação, enfatiza-se a experiência, os sentimentos e a participação, pois o impacto psicofisiológico está ligado à experiência com o divino. Assim, o ritmo repetitivo com instrumentos de percussão e variação de dinâmica torna-se o padrão estilístico. O movimento e a dança são encorajados, geralmente, para produzir um estado de transe com o propósito de facilitar a possessão pela deidade. Como disse antes, isso pode ser resumido na afirmativa: “O que governa o coração, forma a arte.”

Claro que como cristãos acreditamos em um Deus genuinamente transcendente, mas ao mesmo tempo verdadeiramente imanente (Isaías 57:15). Uma mistura equilibrada do contemplativo com o experimental, onde ambos os extremos são evitados, parece ser a expressão musical mais apropriada da concepção cristã de Deus. Eu acredito por escolha e convicção que compete aos cristãos o cultivo de um estilo de música sacra que reflita com precisão o Deus que adoramos.

Voltando à pergunta anterior, se uma cultura específica é fortemente influenciada por qualquer extremo no seu estilo de música (transcendente ou imanente), seria impróprio e no mínimo errado continuar mantendo um testemunho artístico obscuro do Deus que adoramos, mesmo que seja parte da nossa cultura.

RA: O Que o senhor pensa do uso da percussão (bateria) na igreja.

Dr. Stefani: Esta é uma pergunta contemporânea e universal. Para mim a resposta está relacionada ao argumento da neutralidade. Da mesma forma em que a música em si não é neutra, tanto no significado como na estrutura estilística, os instrumentos também não são neutros. Diferentes instrumentos foram feitos e aperfeiçoados para propósitos específicos. Quando me perguntam sobre o uso da bateria na igreja, primeiramente sugiro: “Por que não usar um tímpano? É um tipo de percussão. Se tambores são neutros, o tímpano deveria ser tão bom quando o tambor de uma bateria”. Eles olham para mim perplexos e dizem: “Bem, não era esse o tipo de tambor que eu tinha em mente. Eu quero a bateria que é usada numa banda de música popular”. É claro que a razão pela qual querem este tipo de tambor é o fato de desejarem tocar determinado tipo de música.

Há razões pelas quais determinados instrumentos são mais apropriados para certos propósitos. A bateria foi desenvolvida para produzir um som agressivo, fortemente rítmico, a fim de ser cultivado na música popular. Mas, pela mesma razão que as pessoas normalmente não querem órgãos de tubos em bandas de rock, uma bateria não é apropriada para a igreja, especialmente quando sentimentos como reverência e contemplação estão em jogo. O som percussivo “pesado”, produzido por esses instrumentos, não se harmonizam com o tipo de música que deveria ser enfatizado na adoração de Jeová (ver Isaías 6:1-8), onde reverência, paz alegria, arrependimento e compromisso formam a essência das emoções apropriadas.

RA: O senhor mencionou mais de uma vez em suas palestras que Deus está interessado em desenvolver um tipo singular de adoração e talvez um testemunho musical singular entre os adventistas do sétimo dia. Explique melhor isso.

Dr. Stefani: Deus sempre escolheu Seu povo levando em conta que 1) Ele os ama a quer ter um relacionamento pessoal com eles, mas também 2) busca uma oportunidade para demonstrar através deles como é que Ele age em meio à batalha do Grande Conflito. Ele, obviamente, deseja prover um testemunho àqueles que quer atrair para Si. Seu desejo quanto à adoração singular é bem claro em Deuteronômio 12:3- 4, 29-31. Seu convite geral para que as pessoas saiam e estejam separadas da cultura secular também está claro em Apocalipse 18:4. Mas também está claro que Ele quis estabelecer algo singular com respeito à música. Os livros de Crônicas documentam como o desenvolvimento da música seria levado a cabo sob orientação profética.. (II Crônicas 29:25-26). Deus considerava o ministério da música como algo muito importante (I Crônicas 9:33) e desejava que a música fosse parte integral do verdadeiro culto. Mas, ao ler a Bíblia, posso testificar que em várias ocasiões seus escritores registram que Deus nos convida a cantar-Lhe um “cântico novo” (Salmos 96:1; 33:3; 40:3; etc.).

É claro que há uma ideia de que todo aquele que é convertido canta um “cântico novo” em seu coração; um cântico de gratidão e louvor por tudo aquilo que Deus fez por ele. Porém, eu fico imaginando se não há também um significado mais profundo nesses textos. Será que Deus não está convidando Seu povo a deixar para trás a música típica deste mundo e aprender um “Cântico Novo”, muito mais semelhante ao que é cantado no céu?

O grande desafio para os compositores e músicas de nossa igreja, atualmente, é terem uma visão de algo distinto, que seja um testemunho singular no mundo da música. Como adventistas do sétimo dia, cremos ter uma mensagem completa para todo aspecto da natureza humana; um testemunho doutrinário sobre Deus e o relacionamento que podemos ter com Ele; um testemunho de saúde que motiva nossos programas de saúde, hospitais e clínicas; uma filosofia educacional que motiva nossas escolas; uma mensagem de preocupação social comunicada pela ADRA. Mas qual é a nossa mensagem no campo estético? Infelizmente, se formos honestos, temos que admitir que somos os seguidores, e não os líderes nesta área. Em geral, tendemos apenas a seguir e copiar o que todo mundo está fazendo.

Às vezes, até justificamos seguir o que o mundo está fazendo na área da música, pois pensamos que dessa maneira vamos levar pessoas aos pés de Cristo. E me surpreendo com a clareza das palavras de Ellen White sobre tal raciocínio. Por três vezes, em três dos seus principais livros, ela faz alusão a este ponto. No O Grande Conflito, pág. 509, lemos: “A conformidade aos costumes mundanos converte a igreja ao mundo; jamais converte o mundo a Cristo.” (Comparar com outras declarações em Profetas e Reis, pág. 570, e Patriarcas e Profetas, pág, 601.) Oro para que os músicos adventistas possam desenvolver essa visão e implementá-la em nossa esfera religiosa.

RA: Que conselho o senhor daria aos pastores e líderes que lidam com esse assunto tão delicado?

Dr. Stefani: Antes de mais nada, precisamos entender que este assunto é delicado e complexo. Não podemos abordá-lo de uma maneira simplista. Primeiro, precisamos estar convencidos e convictos de que a música e as artes fazem realmente parte da esfera moral, ou seja, elas não são moralmente neutras. Portanto, não estão acima do domínio moral. Uma vez que esta convicção tenha sido estabelecida, estaremos aptos para lidar com essas difíceis questões a respeito de onde e como a queda (pecado) humana influenciou a arte.

Segundo, há a necessidade de um programa de educação para músicos e pastores, para que haja uma unidade de abordagem e propósito.

Terceiro, leigos também precisam se atualizar nesta área através de seminários sobre música. A abordagem poderia ser semelhante à usada na apresentação de nossa mensagem de saúde. Neste contexto, encorajamos as pessoas a fazerem o que é certo (por exemplo, deixar de fumar, adotar uma dieta livre de carne, abandonar o álcool, etc.), pois o seu corpo é o templo do Espírito Santo. Em outras palavras, tomam-se decisões sobre o que está em harmonia com os princípios bíblicos, não por causa do gosto ou daquilo que produz bem-estar momentâneo. O gosto pode mudar com o tempo, passando a preferir o que é bom, mas inicialmente, não se pode confiar no gosto, pois ele pode ter se acostumado a coisas que não são boas para nós. De muitas formas, a música está ligada a nós pelo gosto, da mesma forma que o alimento. Mudar a dieta musical pode ser tão difícil quanto mudar os hábitos alimentares. Mas isso pode acontecer após uma renovação de nossos hábitos.

Quarto, talvez a igreja precise pensar em designar e apoiar sábios e comprometidos ministros da música, os quais, como sugere I Crônicas 9:33, tenham um trabalho de tempo integral nesta área.

Enquanto isso, o que pode fazer um leigo que não tem nenhum treinamento musical? Não há nada que os impeça de orar por sabedoria e discernimento com relação ao tipo de música que devem ouvir. Creio que o Espírito Santo pode nos orientar sobre o que devemos evitar e fazer, a fim de que descubramos aquilo que é melhor para nós.

Talvez o capítulo três de Daniel enfatize a urgência de uma ação nesta área. esta passagem apresenta um vislumbre do que acontecerá no tempo do fim. Creio que é clara a evidência de que a música terá uma parte a desempenhar nos últimos eventos do Grande Conflito. A música é uma força social aglutinadora e poderosa e um fator determinante para a ação. Por isso, torna-se imperativo que aprendamos hoje um “cântico novo” para que não sejamos atraídos à prática de uma falsa adoração. não há dúvida de que estamos sendo preparados para isso.

É fascinante notar no Antigo Testamento que nos cultos a Baal a música e a dança desempenharam um papel preponderante em conduzir Israel à falsa adoração (ver Patriarcas e Profetas, pág. 454; compare esta declaração com o comentário da página 594: “O amor pela música leva os incautos a unir-se com os amantes do mundo nas reuniões de diversões aonde Deus proibiu a Seus filhos irem.”) Oro para que a igreja esteja fazendo sua parte em preparar pessoas para este tempo. Infelizmente o relato de Daniel capítulo 3 nos mostra que apenas três adoradores resistiram à pressão. Que possamos fazer parte deste grupo, o qual permanecerá firme até o fim, e que terá a oportunidade de cantar o cântico de Moisés e o cântico do Cordeiro, no mar de vidro.


Fonte: Revista Adventista , março 2002, pág. 5-7