O Ministério Levítico e a Influência do Humanismo na Música Evangélica Contemporânea
por: Rubens Ciqueira
Terceira Parte: A Influência Humanista na Música Evangélica Contemporânea
Capítulo 03: O Mercado da Adoração
Ao começarmos este assunto é de extrema valia observar como Calvino já combatia estas influências humanistas em Genebra no século XVI. “O que o Senhor requer é somente a verdade interior do coração. Exercícios sobrepostos a ela devem ser aprovados, desde que supervisionados pela verdade rigorosamente útil ou marcas da profissão de nossa fé atestada aos homens. Também não rejeitamos o que tende à preservação da Ordem e da Disciplina. Mas quando as consciências são colocadas sob grilhões e ligadas pelas obrigações religiosas em assuntos em que pela vontade de Deus foram libertos, então devemos protestar corajosamente de modo que a adoração a Deus não se vicie pelas ficções humanas”[1] .
Com o passar dos anos, a evolução da Música evangélica, ou utilizando das palavras de moda, “Mercado da Música Gospel”, tem sido percebida por muitos investidores que de olho nessa fonte rentável, tem investido somas consideráveis na produção de artistas e trabalhos direcionado para o público evangélico. Hoje aquele caráter “amador” de músicos evangélicos tem sido deixado para trás. Do ponto de vista musical, creio que era necessário como forma de aperfeiçoar a arte, mas para louvar o Senhor. Mas o mercado fonográfico tem investido em artistas e formado super-stars para satisfazer o desejo do ser humano de consumismo.
Adoração passou a ser um produto, e as pessoas que vão até uma igreja, são os consumidores. Se seguirmos este raciocínio de mercado, chegaremos a uma conclusão de que aquele que não estiver satisfeito com o produto tem todo o direito de procurar outro que lhe satisfaça.
De fato, o crescimento numérico e a presença de pessoas socialmente importantes na igreja têm atraído os olhos do mundo. A igreja tem sido considerada como um grupo significativo pelos políticos, pelos sociólogos, pela mídia eletrônica, enfim, ela tem sido vista. Deve-se perguntar, entretanto, se ser visto é o mesmo que ser relevante, se receber a atenção da mídia é sinal de importância real[2] .
Augustus Nicodemos em um de seus artigos falando sobre esse assunto comenta que, “em certa ocasião o Senhor Jesus teve de fazer uma escolha entre ter 5 mil pessoas que o seguiam por causa dos benefícios que poderiam obter dele, ou ter doze seguidores leais, que o seguiam pelo motivo certo (e mesmo assim, um deles o traiu). Em outras palavras, uma decisão entre muitos consumidores e poucos fiéis discípulos. Refiro-me ao evento da multiplicação dos pães narrado em João 6. Lemos que a multidão, extasiada com o milagre, quis proclamar Jesus como rei, mas ele recusou-se (João 6.15). No dia seguinte, Jesus também se recusa a fazer mais milagres diante da multidão pois percebe que o estão seguindo por causa dos pães que comeram (6.26,30). Sua palavra acerca do pão da vida afugenta quase que todos da multidão (6.60,66), à exceção dos doze discípulos, que afirmam segui-lo por saber que ele é o Salvador, o que tem as palavras devida eterna (6.67-69)”[3] .
O Senhor Jesus poderia ter satisfeito às necessidades da multidão e saciado o desejo dela de ter mais milagres, sinais e pão. Teria sido feito rei, e teria o povo ao seu lado. Mas o Senhor preferiu ter um punhado de pessoas que o seguiam pelos motivos certos, a ter uma vasta multidão que o fazia pelos motivos errados. Preferiu discípulos a consumidores.
Infelizmente, parece prevalecer em nossos dias uma mentalidade entre os evangélicos bem semelhante à da multidão nos dias de Jesus. Parece-nos que muitos, à semelhança da sociedade em que vivemos, tem uma mentalidade de consumidores quando se trata das coisas do Reino de Deus. O consumismo característico da nossa época parece ter achado a porta da igreja evangélica, tem entrado com toda a força, e para ficar.
O consumidor é orientado a ficar permanentemente insatisfeito e procurar satisfação nas novas experiências. O resultado mais grave de tudo isso é que, em meio a esse turbilhão de insatisfação, as pessoas se percebem sentindo necessidade de ter coisas absolutamente dispensáveis para sua vida, mas que elas julgam ser essenciais[4] .
Por consumismo quero dizer o impulso de satisfazer as necessidades, reais ou não, pelo uso de bens ou serviços prestados por outrem. No consumismo, as necessidades pessoais são o centro; e a “escolha” das pessoas, o mais respeitado de seus direitos. Tudo gira em torno da pessoa, e tudo existe para satisfazer as suas necessidades. As coisas ganham importância, validade e relevância à medida em que são capazes de atender estas necessidades.
Esta mentalidade tem permeado, em grande medida, as programações das igrejas, a forma e o conteúdo das pregações, a escolha das músicas, o tipo de liturgia, e as estratégias para crescimento de comunidades locais. Tudo é feito com o objetivo de satisfazer as necessidades emocionais, psicológicas, físicas e materiais das pessoas. E neste afã, prevalece o fim sobre os meios. Métodos são justificados à medida em que se prestam para atrair mais freqüentadores, e torná-los mais felizes, mais alegres, mais satisfeitos, e dispostos a continuar a freqüentar as igrejas.
A indústria de música cristã tem crescido assustadoramente, abandonando por vezes seu propósito inicial de difundir o Evangelho, e tornando-se cada vez mais um mercado rentável como outro qualquer. A maioria das gravadoras evangélicas nos Estados Unidos pertence à corporações seculares de entretenimento. As estrelas do gospel music cobram cachês altíssimos para suas apresentações. Há alguns “cientistas religiosos” que defendem abertamente que “o negócio das igrejas é servir ao povo”. Ele defende que a igreja deve ter uma mentalidade voltada para o “cliente”, e traçar seus planos e estratégias visando suas necessidades básicas, e especialmente faze-los sentir-se bem[5] . John Macarthur também compartilha das mesmas ideias, comentando sobre isso ele diz: “Não é difícil achar evidência desse tipo de pensamento na Igreja. Alguns ministérios contemporâneos categoricamente admitem que atender as necessidades das pessoas é seu objetivo principal”[6] .
Um efeito da mentalidade consumista das igrejas é o que tem sido chamado de “a síndrome da porta de vai-e-vem”. As igrejas estão repletas de pessoas buscando sentido para a vida, alívio para suas ansiedades e preocupações. Assim, elas escolhem igrejas como escolhem refrigerantes. Tão logo a igreja que freqüentam deixa de satisfazer as suas necessidades, elas saem pela porta tão facilmente quanto entraram. As pessoas buscam igrejas onde se sintam confortáveis, e se esquecem de que precisam na verdade de uma igreja que as faça crescer em Cristo e no amor para com os outros.
Valdeci dos Santos comentando sobre esse tema diz que, estamos vivendo numa época da “McAdoração”, ou seja, comparando-a a um lanche popular, a algo produzido em escala industrial. O público evangélico atual espera que as igrejas “providenciem um menu de diferentes e divergentes estilos de adoração e experiência. Porém a perspectiva bíblica e histórica sobre adoração não vê o culto público como focalizado na esperteza ou criatividade humana, mas na santidade de Deus[7] .
Augustus Nicodemus acredita que tudo isso que estamos vivendo é em sua maioria fruto da ação de Charles Finney no seu método de crescimento de igreja.
“Creio que há vários fatores que provocaram a presente situação. Ao meu ver, um dos mais decisivos é a influência da teologia e dos métodos de Charles G. Finney no evangelicalismo moderno. Houve uma profunda mudança no conceito de evangelização ocorrida no século passado, devido ao trabalho de Charles Finney. Mais do que a teologia do próprio Karl Barth, a teologia e os métodos de Finney têm moldado o moderno evangelicalismo. Ele é o herói de Jerry Falwell, Bill Bright e de Billy Graham; é o celebrado campeão de Keith Green, do movimento de sinais e prodígios, do movimento neopentecostal, e do movimento de crescimento da igreja. Michael Horton afirma que grande parte das dificuldades que a igreja evangélica moderna passa é devida à influência de Finney, particularmente de alguns dos seus desvios teológicos: “Para demonstrar o débito do evangelicalismo moderno a Finney, devemos observar em primeiro lugar os desvios teológicos de Finney Estes desvios fizeram de Finney o pai dos fatores antecedentes aos grandes desafios dentro da própria igreja evangélica hoje: o movimento de crescimento de igrejas, o neopentecostalismo, e o reavivalismo político”[8] .
Para muitos no Brasil seria uma surpresa tomar conhecimento do pensamento teológico de Finney. Ele é tido como um dos grandes evangelistas da Igreja Cristã, e estimado e venerado por evangélicos no Brasil como modelo de fé e vida. E não poderia ser diferente, visto que se tem publicado no Brasil apenas obras que exaltam Finney. Desconhecemos qualquer obra em português que apresente o outro lado. Nosso alvo, neste artigo, não é escrever extensamente sobre o assunto, mas mostrar a relação de causa e efeito que existe entre o ensino e métodos de Finney e a mentalidade consumista dos evangélicos hoje.
Em sua obra sobre teologia sistemática (Systematic Theology [Bethany, 1976]), escrita pelo fim de seu ministério, quando era professor do seminário de Oberlin, Finney revela ter abraçado ensinos estranhos ao Cristianismo histórico. Ele ensina que a perfeição moral é condição para justificação, e que ninguém poderá ser justificado de seus pecados enquanto tiver pecado em si (p. 57); afirma que o verdadeiro cristão perde sua justificação (e conseqüentemente, a salvação) toda vez que peca (p. 46); demonstra que não acredita em pecado original e nem na depravação inerente ao ser humano (p. 179); afirma que o homem é perfeitamente capaz de aceitar por si mesmo, sem a ajuda do Espírito Santo, a oferta do Evangelho. Mais surpreendente ainda, Finney nega que Cristo morreu para pagar os pecados de alguém; ele havia morrido com um propósito, o de reafirmar o governo moral de Deus, e nos dar o exemplo de como agradar a Deus (pp. 206-217). Finney nega ainda, de forma veemente, a imputação dos méritos de Cristo ao pecador, e rejeita a ideia da justificação com base da obra de Cristo em lugar dos pecadores (pp. 320-333). Quanto à aplicação da redenção, Finney nega a ideia de que o novo nascimento é um milagre operado sobrenaturalmente por Deus na alma humana. Para ele, “regeneração consiste no pecador mudar sua escolha última, sua intenção e suas preferência; ou ainda, mudar do egoísmo para o amor e a benevolência”, e tudo isto movido pela influência moral do exemplo de Cristo ao morrer na cruz (p. 224)[9] .
Finney, reagindo contra a influência calvinista que predominava no Grande Avivamento ocorrido na Nova Inglaterra do século passado, mudou a ênfase que havia à pregação doutrinária para uma ênfase à fazer com que as pessoas “tomassem uma decisão”, ou que fizessem uma escolha. No prefácio da sua Teologia Sistemática ele declara a base da sua metodologia: “Um reavivamento não é um milagre ou não depende de um milagre, em qualquer sentido. É meramente o resultado filosófico da aplicação correta dos métodos”[10] .
Na teologia de Finney, Deus não é soberano, o homem não é um pecador por natureza, a expiação de Cristo não é um pagamento válido pelo pecado, a doutrina da justificação pela imputação é insultante à razão e à moralidade, o novo nascimento é produzido simplesmente por técnicas bem sucedidas, e avivamento é o resultado de campanhas bem planejadas com os métodos corretos.
O Senhor Jesus preferiu doze seguidores genuínos a ter uma multidão de consumidores[11] . Creio que a igreja evangélica brasileira precisa seguir a Cristo também aqui. É preciso que reconheçamos que as tendências modernas em alguns quartéis evangélicos é a de produzir consumidores, muito mais que reais discípulos de Cristo, pela forma de culto, liturgias, atrações, e eventos que promovem. Um retorno às antigas doutrinas da graça, pregadas pelos apóstolos e pelos reformadores, enfatizando a busca da glória de Deus como alvo maior do homem, poderá melhorar esse estado de coisas.
Fazendo essa análise histórica, notamos que a música evangélica tem tomado os mesmos rumos da teologia que é pregada hoje. Há uma máxima cristã que diz “lex orandi, lex credendi”, cuja tradução pode ser “o que se ora é o que se crê”. Plagiando esta frase cremos que não seria errado se disséssemos hoje “o que se canta é o que se crê”. A música evangélica hoje é permeada de citações e frases que elevam muito mais o homem do que a Deus. As músicas já são fabricadas com um propósito definido, ou seja, agradar o público.
Grandes grupos tem surgido no cenário nacional, fazendo grandes eventos reunindo milhares de pessoas, tudo isso, em nome de uma proposta de formação de “verdadeiros adoradores”. Mas, quando analisamos o que está por trás, de tudo isso é uma proposta mercantilista, voltada para os “consumidores de adoração”.
Notas:
[1] BAIRD, Charles W. A Liturgia Reformada. Ensaio histórico. São Paulo, SOCEP, 2001, p. 17.
[2] MARTINS, Jadiel Sousa. Charles Finney e A Secularização da Igreja. São Paulo, Parakletos, 2002, p.24.
[3] Augusto Nicodemus. Artigo não publicado: “Adoradores ou consumidores?”.
[4] MARTINS, Jadiel Sousa. Charles Finney e A Secularização da Igreja. p.25
[5] Augusto Nicodemus. Artigo não publicado, “Adoradores ou consumidores?”.
[6] MACARTHUR, John F. Jr. Nossa Suficiência em Cristo, São Paulo, Fiel, 1995, p. 132.
[7] SANTOS, Valdeci. Fides Reformata – Refletindo sobre a Adoração e o Culto Cristão. p.141.
[8] NICODEMUS, Augustus Lopes. Artigo não publicado, “Adoradores ou consumidores?”.
[9] MARTINS, Jadiel Sousa. Charles Finney e a Secularização da Igreja. p. 106-124.
[10] Ibid p. 107.
[11] NICODEMUS, Augustus Lopes. Artigo não publicado, “Adoradores ou consumidores?”.
Fonte: Publicado originalmente em http://www.textosdareforma.net