Música e Matemática

por: Miguel Ratton

A relação harmoniosa entre sons e números

Na sua definição mais simples, Música é “ritmo e som”. Ou seja, é uma combinação de sons executados em determinada cadência. A importância da Matemática na Música está presente desde a concepção mais fundamental do que é “som musical” e do que é “ritmo”.

Os sons com os quais podemos criar nossas músicas constituem o que chamamos de “escala musical”. Eles são definidos a partir de relações matemáticas muito precisas e, quando combinados de determinadas maneiras, podem produzir resultados agradáveis aos nossos ouvidos. Essas relações matemáticas, junto com as características intrínsecas das vibrações sonoras, são a base para a “harmonia” na superposição dos sons musicais.

Por outro lado, a maneira como encadeamos os sons em nossas músicas também segue regras com fundamentos matemáticos. Todos os tipos de “ritmos” que podemos conceber musicalmente obedecem a algum tipo de divisão fracionária, cuja característica sempre está vinculada a um determinado gênero artístico ou a um tipo de cultura.

Conhecer essas influências matemáticas é, antes de tudo, conhecer a essência da própria Música.

A percepção do som

As oscilações produzidas pela vibração de um corpo (ex.: corda de violão) propagam-se pelo ar, sob a forma de ondas, e atingem nosso ouvido. O ouvido humano só pode perceber como “sons” as ondas que tenham de 20 oscilações por segundo até 20.000 oscilações por segundo. As oscilações abaixo dessa faixa são chamadas de “sub-sônicas”, enquanto que as acima da faixa são chamadas de “ultra-som”. Por outro lado, dentro da faixa dos sons audíveis, aqueles que têm oscilações mais baixas (de 20 a 200 oscilações por segundo) são chamados de “graves”, enquanto que os que têm oscilações mais altas (de 5.000 a 20.000) são chamados de “agudos”; os sons na faixa intermediária são chamados de “médios”.

Para poder detectar os sons, o ouvido possui um mecanismo bastante complexo, que envolve ossículos, cavidades e milhares de nervos. O elemento principal na detecção das oscilações dos sons é a “cóclea”, uma pequena estrutura em espiral que atua seletivamente. Ao longo dela, existem milhares de fibras nervosas que agem como sensores, e transferem ao cérebro a percepção das oscilações e intensidade dos sons. Assim, um som com determinada oscilação excita sempre apenas uma determinada região de fibras nervosas da cóclea.

É essa característica exata da percepção do som pelo ouvido que faz com que a Música seja uma arte mais baseada em condições fisiológicas do que em psicológicas, isto é, a percepção musical é mais uma questão de sensação (orgânica) do que de razão (ação intelectual). Ou seja, mesmo que quiséssemos recriar a concepção de sons musicais, isso seria impossível, por causa da forma fisiológica como percebemos os sons.

Escalas Musicais e Harmônicos

Os sons utilizados para produção de música (excetuando-se os sons de alguns instrumentos de percussão) possuem determinadas características físicas, no que se refere às suas oscilações. Todos conhecem as sete notas musicais “naturais”, que são Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si. A determinação dessas notas tem uma história muito longa, e uma enorme influência da Matemática.

Uma corda esticada, como num violão, pode vibrar livremente com determinado valor de oscilações por segundo. Se a nota musical que a corda produz ao vibrar livremente for um Dó, quando reduzimos seu comprimento à metade (mantendo sobre ela a mesma tensão), ela passará a vibrar com o dobro das oscilações, o que corresponderá à nota Dó seguinte (em termos musicais: esta nota estará uma “oitava” acima da original). Se reduzirmos o comprimento para 2/3 do original, teremos então a nota Sol. E se reduzirmos o comprimento para 3/4 do original, teremos a nota Fá. Como podemos perceber, usando determinadas frações do tamanho original de uma corda, podemos obter as notas naturais da escala musical.

A razão para que determinadas frações (1/2, 2/3, 3/4, 4/5, etc.) do tamanho original da corda soem melhor do que outras tem a ver com outra característica importante das oscilações, que é a presença de “harmônicos”.

Quando uma corda ou outro corpo vibra repetidamente, na verdade ele possui vários “modos” de vibração, isto é, além de vibrar na oscilação “fundamental”, ele também vibra com oscilações múltiplas inteiras da fundamental: 2x, 3x, 4x, etc. (veja figura).

Assim, uma corda ao vibrar oscila n ciclos por segundo em seu modo fundamental, mas também oscila 2n ciclos por segundo no modo de segundo harmônico, 3n ciclos por segundo no modo de terceiro harmônico, e assim por diante. Dependendo do corpo vibrante (corda de violão, palheta de sax, etc.), e também de como ele é posto a vibrar, esses modos harmônicos podem ser mais influentes ou não no som resultante.

Se observarmos bem, veremos que as oscilações dos modos harmônicos (2x, 3x, 4x, etc.) do comprimento original da corda têm pontos coincidentes com as oscilações dos modos fundamentais daqueles comprimentos fracionários (1/2, 2/3, 3/4, etc.). Por causa dessas coincidências, os sons que mantêm entre si determinadas relações de frações (2/1, 3/2, 4/3, etc.) produzem sensações mais fortes no ouvido (pois excitam as mesmas regiões nervosas da cóclea), e por isso soam melhor juntos do que sons que tenham relações matemáticas, digamos, menos “perfeitas”. Essa é a base de toda a escala musical ocidental.

O sábio grego Pitágoras (séc. VI a.C.) foi quem primeiro estabeleceu uma escala de sons adequados ao uso musical, formando uma série a partir da fração de 2/3 (que corresponde ao intervalo musical chamado de “quinta”). Usando uma sucessão de “quintas”, que não cabe aqui entrar em detalhes, ele conseguiu definir doze notas musicais, sendo sete “naturais” (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si) e mais cinco “acidentes”: Dó#, Ré#, Fá#, Sol#, e Lá# (o símbolo # é chamado de “sustenido”).

A escala com intervalos acusticamente perfeitos definida por Pitágoras foi usada durante séculos, até pouco depois da Idade Média, quando a Música ainda era restrita a regras rígidas de composição e execução. Com o Renascimento, uma série de novas ideias surgiram nas Artes em geral, e na Música em particular, e os compositores começaram a tentar ultrapassar os limites musicais impostos até aquela época. Foi quando surgiu, então, a necessidade de se transpor as melodias para outras tonalidades. Com a escala musical em vigor isso era impraticável, pois os intervalos “perfeitos” só podiam ser usados numa única tonalidade. Em outras palavras, uma melodia feita para a tonalidade de Dó não podia ser executada na tonalidade de Fá, por exemplo, pois os intervalos entre as notas passariam a soar desafinados.

Dentre as várias soluções apresentadas, a que vingou e é usada até os dias de hoje, foi a “escala de temperamento igual”, de Andreas Werkmeister, proposta em 1691. Essa escala, hoje em dia chamada apenas de “escala temperada”, possui também doze notas (sete “naturais” e cinco “acidentes”), mas em vez de preservar os intervalos “perfeitos” (frações de 2/3, 3/4, etc.), as notas foram levemente ajustadas, pois Werkmeister tomou o comprimento inteiro e dividiu-o exponencialmente em doze partes, baseado na raiz duodécima de 2. Isso fez com que a relação entre qualquer nota e sua vizinha anterior fosse sempre igual à raiz duodécima de 2 (aproximadamente 1,0594), o que permitiu, então, a execução de qualquer música em qualquer tonalidade, uma vez que as relações entre intervalos iguais são sempre as mesmas, não importa qual a referência (tonalidade) que se use.

Apesar de a escala temperada não possuir mais os intervalos acusticamente perfeitos de 3/2, 4/3, etc., os novos intervalos correspondentes têm erros muito pequenos, praticamente imperceptíveis para o ouvido.

A nova escala temperada contou com o apoio do famoso compositor Johann Sebastian Bach (séc. XVIII), que escreveu O Cravo Bem-Temperado, uma obra contendo 24 prelúdios e fugas, que cobrem as 24 tonalidades maiores e menores, e provando que a proposta de Werkmeister não só era viável como não comprometia de forma alguma a qualidade e a beleza da Música.

Portanto, toda a música ocidental que ouvimos atualmente utiliza uma escala de doze notas, criadas a partir de intervalos (frações) acusticamente perfeitos, mas posteriormente ajustadas matematicamente, de tal forma que permitiu ampliar o alcance da Música a horizontes que antes eram verdadeiramente impossíveis.

Ritmo

Conforme observou Mário de Andrade, o homem possui o ritmo por si mesmo, pois a pulsação do coração, o ato de respirar e os passos já são elementos rítmicos (a maioria das crianças, por exemplo, já têm percepção instintiva da periodicidade de ritmo). Isso certamente influenciou o encadeamento das notas musicais em cadências de tempo, da mesma forma que as sílabas numa poesia.

Sendo a contagem do tempo por si só uma concepção essencialmente matemática, não é difícil imaginar o quanto o ritmo está intimamente associado à Matemática.

Na Música, entretanto, o ritmo não se limita apenas à contagem de tempo, ou a uma batida constante de pulsos de igual intensidade. Na verdade, os ritmos musicais possuem batidas com intensidades diferentes (acentuações), que se repetem dentro de algum padrão, e é isso que permite classificar as diversas variedades de ritmos existentes na música. Os exemplos abaixo mostram alguns dos tipos de “medidas” de marcação do tempo de uma música (os tempos “fortes” estão em negrito), que são chamados de “compassos”:

compasso binário: 1 2 1 2 1 2 1 2

compasso ternário: 1 2 3 1 2 3 1 2 3

compasso quaternário: 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4

No que se refere ao ritmo, a Música é organizada em “pedaços” contendo o mesmo número de tempos do compasso de referência. Por exemplo, numa música que utilize compasso quaternário, os pedaços (que também são chamados de “compassos”) contêm sempre 4 tempos.

Para que se possa escrever a melodia de uma música dentro dessas medidas, foram então definidas as “figuras de tempo”, que mantêm relações fracionárias entre si. São elas:

Com essas figuras, podemos então posicionar e dar a duração que quisermos para as notas musicais dentro dos tempos do ritmo. E é exatamente como as notas são posicionadas dentro da música que podemos criar gêneros musicais com características distintas de ritmos.


Bibliografia:

Andrade, Mário de. Pequena História da Música. Livraria Martins Editora, 1953.

Backus, John. The Acoustical Foundations Of Music. W.W. Norton & Co., 1968.

Cunha, Cássio. Independência Polirrítmica Coordenada. Lumiar, 1999.

Helmholtz, Hermann. On The Sensations of Tone. Dover Publications, 1954.

Jeans, J. H. Science And Music. 1937.

Kipnis, Igor. Bach’s Well-Tempered Clavier. Keyboard Magazine, March 1985.

Matras, Jean-Jacques. O Som. Livraria Martins Fontes, 1991.

Olson, Harry. Music,Physics & Engineering. Dover Publications, 1964.

Scholz, Carter. The MIDI Tuning Standard. Keyboard Magazine, August 1992.

Wilkinson, Scott. Tuning In – Microtonality in Electronic Music. Hal Leonard Books, 1989.


Miguel Ratton é engenheiro eletrônico formado pela UFRJ. Estudou piano e teoria musical na Escola Villa-Lobos (RJ). Especializou-se em tecnologia musical e, desde 1985, atua profissionalmente como consultor, tendo lecionado cursos na UNI-Rio e em outras escolas de música. É autor de vários livros e publicações especializadas, e colabora regularmente com artigos para a revista Música & Tecnologia.


Fonte: http://www.tvebrasil.com.br