Matemática na Música – Capítulo 2
Influência da Matemática na Concepção de Sistemas Acústicos
Na corda do cânon existe uma infinidade de sons: para cada comprimento da corda está associado um som e a comprimentos distintos correspondem sons distintos. Se atendermos a que estes sons se distinguem entre si, fundamentalmente, através das suas freqüências fundamentais, e se imaginarmos que a corda é infinita, então verificamos que existe uma bijeção entre IR0+ e o conjunto dos sons da corda – ao zero fica associado a ausência de som. Quando o músico quer compor, a primeira opção que tem que fazer é decidir quais as freqüências que quer utilizar, entre a imensidão que tem à disposição, ou ainda, que números reais positivos há de escolher. Esta problemática resolve-se através da escolha de um Sistema Acústico, que pode ser encarado como um conjunto de números reais positivos (que representam as freqüências ou, se quisermos, os “comprimentos” dos sons) selecionados em função de determinados critérios musicais. Os sistemas acústicos mais comuns organizam-se em torno do intervalo de oitava, distinguindo-se entre eles através da forma como dividem este intervalo. As hipóteses de divisão do intervalo de oitava são imensas, o que motivou Barbour [1] a ordenar este tipo de sistemas musicais em cinco grupos: Pitagóricos, justos, tom médio, iguais e os irregulares.
Abordaremos aqui o Sistema Pitagórico, que terá a sido a primeira forma de discriminar freqüências sonoras (ou comprimentos de cordas) por intermédio da Matemática e também o Sistema Temperado, que é o sistema mais utilizado atualmente, que divide o intervalo de oitava em doze partes iguais. Contudo, existem outros sistemas que ignoram o intervalo de oitava na organização dos sons, que não serão aqui tratados. O que é comum a todos eles é que, independentemente dos argumentos musicais que os sustentam, a Matemática desempenha um papel imprescindível na sua elaboração, como sugerem os exemplos que serão tratados de seguida.
2.1. O Sistema Pitagórico
Os Pitagóricos conseguiram determinar as relações matemáticas que estão implícitas nas consonâncias consideradas mais importantes: o intervalo de oitava, o intervalo de quinta e a inversão deste, o intervalo de quarta. Além disso, os Pitagóricos foram os primeiros a elaborar uma escolha de sons adequada ao uso musical, que se tornou na primeira teoria matemática da música. Tal teoria foi de enorme importância, tanto para a matemática como para a música: se por um lado revelou que a Matemática é capaz de ir além de si mesma, tal teoria contribui para introduzir um certo grau de discernimento numa área sujeita à subjetividade dos sentidos.
Os gregos discriminaram a variação contínua das alturas sonoras, através da introdução, de forma sistemática, de graus descontínuos baseados no intervalo de quinta e na manipulação de oitavas. A simplicidade das razões 2/3 e 1/2, por estarem associadas a estes dois intervalos, tiveram um papel preponderante e permitiram que os gregos construíssem uma escala de sete notas. Uma forma de obter tal escala, é a seguinte:
Consideremos o som produzido pela corda solta do cânon, o qual identificaremos por Dó0. A 2/3 dessa corda corresponde o som que está uma quinta acima de Dó0, que será o Sol0. A 2/3 do comprimento de Sol0 corresponde o som Ré1, que está a uma quinta de Sol0e é mais agudo que Dó1,pois em relação ao comprimento inicial, Dó1 corresponde a metade do comprimento e Ré1 corresponde a 2/3×2/3 = 4/9 do comprimento. Sistematizando este processo, vamos obter Lá1, Mi2, Si2, cujos comprimentos correspondem, em relação ao comprimento da corda inicial, respectivamente a 4/9×2/3, 8/27×2/3, 16/81×2/3. Preencher o intervalo entre Dó0 e Dó1com estas novas notas, corresponde a obter Ré0, Lá0, Mi0, Si0, o que se torna simples, pois se queremos o som que está n oitavas abaixo dum som dado com comprimento x, esse som terá comprimento 2nx. Só falta construir Fá0: se imaginarmos um som associado a um comprimento x tal que Dó1 se situe uma quinta acima desse som, então 1/2 = x×2/3, donde x=3/4, comprimento que corresponde a Fá0, que se encontra uma quarta acima de Dó0.
Pensa-se que os Pitagóricos terão ficado por esta escala heptatónica, que estaria em concordância com a estética grega da época. Contudo, se continuarmos com o ciclo de quintas a partir de Si2, multiplicando sucessivamente os comprimentos associados aos sons por 2/3, obtemos os outros cinco sons que correspondem às notas acidentadas: Fá#3, Dó#4, Sol#4, Ré#5, Lá#5. Desta forma, o intervalo de oitava fica dividido em doze partes. A razão de serem doze notas, deve-se ao fato de depois de se aplicar doze quintas a um som, o som obtido está a cerca de sete oitavas do som inicial, ou seja, entra-se num ciclo de período doze. Contudo, doze quintas não correspondem exatamente a sete oitavas. Vejamos: Lá#5 pode ser encarado como o som obtido de Dó0 por aplicação de dez quintas sucessivas. A quinta de Lá#5 é Fá6, e a quinta de Fá6 é Dó7, ou seja Dó7 está doze quintas acima de Dó0. Como o comprimento correspondente a Dó0 é 1, o comprimento de Dó7 será , pois corresponde a doze quintas de Dó0. Contudo, como Dó7 se encontra sete oitavas acima de Dó0, resulta que o comprimento de Dó7 obtido desta forma é .
O desfazamento entre estas duas notas é quantificado pela razão a qual se denomina por coma pitagórico.
O coma pitagórico evidencia o fato das quintas, acusticamente perfeitas, do Sistema Pitagórico não se poderem ajustar com as oitavas: qualquer que seja o número de sucessivas quintas que se aplique a um som inicial, o som resultante nunca poderá ser obtido por sucessivas oitavas aplicadas a esse som inicial. Dito de outra forma .
Além do desajuste entre quintas e oitavas, o Sistema Pitagórico mostrou ter outro inconveniente quando confrontado com o desenvolvimento da composição musical, nomeadamente no que se refere à transposição, devido aos intervalos entre os sucessivos graus da escala com doze notas não serem sempre iguais. Tal pode ser constatado da seguinte forma:
Suponhamos que queremos dividir o intervalo de oitava definido pelos comprimentos 1 e ½ em doze partes iguais, de forma a que o intervalo entre as sucessivas notas seja sempre o mesmo. Tal corresponde a que as razões entre os sucessivos comprimentos correspondentes às notas seja constante. Como qualquer nota do Sistema Pitagórico é obtido por quintas e oitavas, pode-se afirmar que , com a, b , é a expressão geral do comprimento de qualquer nota do Sistema Pitagórico. Se si, i=1,…,11 são os comprimentos dos sons que dividem a oitava da forma pretendida, então.
Como , então , ou seja, terão que existir a, b de forma a que , pelo que b = 0 e -12a= 1, o que contraria a necessidade de a ser um inteiro.
A divisão da oitava em doze partes iguais remete-nos para a questão da incomensurabilidade, assunto que os gregos desde cedo se depararam mas não conseguiram compreender. Tal fato salienta a forma como, num certo sentido, os limites da música estão condicionados pelos limites da matemática.
2.2. O Sistema Temperado
O Sistema Temperado, o qual possibilita a divisão do intervalo de oitava em doze partes iguais, só começou a ser vislumbrado no final do século XVI, por intermédio do matemático flamenco Simon Steven, que dividiu a oitava em doze partes iguais com uma aproximação bastante satisfatória. Na mesma época, separadamente, um príncipe chinês, Chou Tsai-Yu, conseguiu dividir a oitava ainda com mais precisão, chegando a calcular com exatidão nove dos doze intervalos. Contudo, por estar muito dependente da irracionalidade numérica, como veremos abaixo, este Sistema só foi devidamente fundamentado em 1691 por Andreas Werkmeister. É por esta altura também que se começa a usar os logaritmos para determinar as notas musicais e o intervalo entre elas. Apesar de os intervalos de quinta e de quarta do Sistema Temperado não serem acusticamente perfeitos, como acontece no Sistema Pitagórico, os novos intervalos correspondentes não diferem muito. Contudo há quem afirme que a beleza de certas composições executadas com sistemas naturais, como o Pitagórico, é inalcançável fazendo-se uso do Sistema Temperado.
A introdução generalizada deste sistema na prática musical deu-se no início do século XVIII. Para convencer os sentidos de que a proposta de Werkmeister não só era viável, como não comprometia de forma alguma a qualidade e a beleza da música, Bach compôs “O Cravo Bem-Temperado”, uma obra que cobre as doze tonalidades, no modo maior e no modo menor.
O Sistema Temperado só pode ser construído à custa dos números irracionais, no sentido de que não existe um número racional que represente o intervalo entre duas notas sucessivas deste sistema:
Suponhamos que r =, com m, n IN e primos entre si, representa o comprimento do intervalo sucessivo entre duas notas do Sistema Temperado, que estão a uma distância de meio-tom. Então, pelo que .
Conseqüentemente .
O 2 é fator de n12 um número par de vezes e de 2m12 um número ímpar de vezes, o que, pelo Teorema Fundamental da Aritmética, é absurdo.
O número que representa o intervalo entre duas notas sucessivas é portanto um irracional, que sendo solução positiva da equação , resulta que .
2.3. Ilações
A divisão da oitava em dozes partes eqüidistantes é fruto de uma operação tardia que consiste, por um lado, em resolver o problema da incomensurabilidade, e por outro lado, em admitir que a simplicidade da razão entre vibrações não é um critério absoluto de consonância, dado que o ouvido humano identifica os intervalos de quinta e de quarta do Sistema Temperado, que exprimem razões irracionais. Hoje em dia a maior parte da música que ouvimos é elaborada tendo por base o Sistema Temperado. Contudo, a escala usada pelos violonistas é muito semelhante à de Pitágoras e a escala utilizada pelos cantores está muito próxima da de Zarlino, ambas naturais. Face à predominância do Sistema Temperado, alguns especialistas referem que o ouvido humano tem vindo a perder o hábito de sentir os valores naturais, donde seria de desejar que os sistemas naturais fossem mais divulgados, quer a nível da educação, quer a nível dos construtores de sintetizadores. Segundo um grande compositor, Helmotz, “muitas das nossas execuções musicais devem a sua beleza a uma introdução inconsciente do sistema natural, o qual poderíamos apreciar melhor se este sistema fosse ensinado de maneira pedagógica, ao ser introduzido na base de todo o ensino musical, em vez do Sistema Temperado que impede a voz humana e os instrumentos de cordas de desenvolverem a sua plena harmonia, só para não perturbar os hábitos dos pianistas e dos organistas”.
Notas:
Este assunto é aprofundado por J. Murray Barbour no seu livro Tuning and temperament, a historical survey, Michigan State College Press, E. Lansing, 1951