Iniciando – Os primeiros passos no aprendizado do instrumento

por: Angelino Bozzini

“Começar já é metade de toda ação”. – Provérbio Grego
“Há três coisas que não voltam atrás: A flecha lançada; A palavra pronunciada; A oportunidade perdida”. – Provérbio chinês
“Um caminho de mil quilômetros começa com o primeiro passo”. – Lao-Tsé
“Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”. – Sêneca
“Ai, a primeira festa, a primeira festa, o primeiro amor”. – Chico Buarque

Como foi a sua primeira vez? Você tinha consciência do que estava fazendo? Estavam claras para você todas as conseqüências que poderiam advir dos seus atos? As pessoas que eram responsáveis por você haviam lhe preparado com clareza, franqueza e sabedoria para esse momento? Se você pudesse voltar no tempo, faria da mesma maneira ou gostaria de estar mais preparado? Se você soubesse mais, desfrutaria mais ou perderia a espontaneidade?

Pensou um pouco? Essas perguntas podem ser aplicadas a várias “iniciações” da nossa vida. Somos filhos de uma cultura que cultua o improviso e que acredita que o preparo mata a espontaneidade. É como se achássemos que não sabendo poderemos sentir mais profundamente; que na surpresa nosso prazer será maior. Isso pode ser verdade para várias coisas, mas não é para a iniciação instrumental.

O primeiro tocar de lábios

O primeiro encontro de um aprendiz com seu instrumento pode, além de ser uma experiência fascinante, facilitar muito todo o longo caminho que virá pela frente no processo de formação.

Se esse primeiro encontro for frustrante, será necessário um árduo trabalho posteriormente, nem sempre com sucesso, para que as coisas se encaixem novamente nos trilhos no futuro.

O professor a quem couber essa oportunidade de acompanhar um aluno na iniciação de um novo instrumento deve encarar esse instante como um ritual sagrado. Nele, o aluno com doçura, clareza e sabedoria, do exato ponto em que se encontrar naquele momento de sua evolução pessoal, dará, conscientemente, o primeiro passo de uma longa jornada a qual ele já deverá ser capaz de vislumbrar, antes que seus lábios toquem o instrumento pela primeira vez.

Como preparar esse ritual e qual o rumo que deverá nortear o olhar do aluno são duas questões que todo professor responsável deve saber responder. Vejamos algumas possíveis respostas.

Senta que lá vem a história…

A pedagogia já demonstrou que o conhecimento realmente aprendido é aquele “construído” pelo aluno. Assim, para haver aprendizado, é necessário que haja uma fase de exploração e descoberta por parte do aluno. Ao explorar ele desvenda novas informações, formula hipóteses sobre elas e tenta aplicá-las à sua prática. Se tiver sucesso incorpora essas hipóteses ao seu saber; se fracassar, reformula suas hipóteses e parte para uma nova tentativa.

Infelizmente, esse princípio básico da pedagogia é freqüentemente mal interpretado por muitos professores. Se é verdade que para poder fazer suas explorações e descobertas o aluno precisa de liberdade para errar e precisa poder confrontar o certo e o errado para poder formar seus próprios conceitos, também é verdade que esse espaço de descobertas precisa ser delimitado – sob risco de o aluno se perder – e que o aluno precisa ser competentemente assistido nas suas tentativas.

Um exemplo extremo: ninguém soltaria um bebê que está aprendendo a andar em uma sala cheia de cacos de vidro a fim de que ele, após formular várias hipóteses (como a que o vidro brilhante possa ser um brinquedo) ao se ferir várias vezes chegasse à conclusão que o vidro corta. Outro: ninguém mandaria uma filha adolescente comprar uma refrigerante sozinha em um bar freqüentado por torcedores fanáticos em um dia de final de campeonato.

Os exemplos acima podem parecer absurdos, mas é algo similar a isso que costuma ocorrer na prática na iniciação instrumental.

Imagine agora uma criança indígena. Ela, desde pequena, ouve as músicas de sua tribo e participa das atividades grupais. Quando chegar a primeira vez em que pegará um instrumento nas mãos para aprender a tocá-lo ela já terá dentro de si muito claro: o som que seu instrumento deve produzir, o tipo de música que vai tocar, onde e quando irá tocar e o contexto onde tudo isso se dá. A exploração e descoberta da relação física de seu corpo com o instrumento ocorrerão dentro de um contexto claro e já introjetado pela criança.

Duas das características negativas da nossa sociedade são a alienação e a desintegração do indivíduo na sociedade. Nesse contexto, o professor de instrumento tem que saber responder com clareza à seguinte pergunta: Qual é o conhecimento prévio mínimo que o aluno deve possuir para poder iniciar o aprendizado de seu instrumento?

Há não muitos anos, o ensino de música ocorria dentro dos conservatórios onde o aluno tinha vários professores se responsabilizando pelo seu aprendizado: percepção e solfejo, história da música, folclore, música de câmara, entre outros, e o próprio professor de instrumento. Se o conservatório tivesse uma boa direção, o aluno poderia ter certeza que estaria obtendo uma formação integrada e coerente.

Nos dias de hoje, a responsabilidade total pelo aprendizado acabou ficando por conta do professor de instrumento. Nem mais o currículo mínimo de música que era fornecido no primeiro grau existe, depois que a matéria foi suprimida da grade curricular do programa oficial de ensino.

Assim, no início de seu trabalho, o professor deverá necessariamente preparar e contextualizar o aluno para a caminhada que, juntos, eles irão iniciar. Existem várias estratégias possíveis. Essa fase pode durar apenas algumas aulas ou até vários meses ­ dependendo dos conhecimentos prévios do aluno -, mas é fundamental que exista para o sucesso do trabalho que a seguirá.

Para esse fim, uma boa história, que tenha sua forma e conteúdo adequados ao aluno, tem o poder de recuperar anos de alienação, fornecendo os ingredientes necessários para organizar seu conhecimento e imaginação. Afinal, os professores não são contadores de histórias por natureza?

Iniciando o namoro

Uma vez trabalhada a contextualização do aluno, chega a hora do contato direto.

Um dos fatos sobre o qual vários professores se queixam é que estão somente por uma hora, ou menos, com o aluno na semana, enquanto o aluno tem todo o resto do tempo para fazer as coisas erradas.

Uma solução interessante para esse problema é a idealizada por Alberto Jaffé, criador de um método original para o ensino coletivo de instrumentos de corda. Nele, durante toda a primeira fase do aprendizado, que dura vários meses, os alunos só têm contato com o instrumento junto com o professor. Não devem possuir um instrumento próprio nem estudar em casa. Isso garante total controle das primeiras experiências do aluno com seu instrumento. Embora o processo possa parecer lento no princípio, possibilita aos alunos estarem se apresentando em concerto numa orquestra com apenas três meses de aula.

Muitos professores têm medo de falar para o aluno que ele não deve estudar em casa no princípio, achando que isso poderá desenvolver um mau hábito. A verdade é que o estudo em casa, quando sem um rumo claro e sem um parâmetro de erro e acerto leva muitas vezes à desmotivação, além de vários vícios de postura.

Um namoro, para desenvolver-se até um grande amor, não precisa e nem deve no seu início tentar ser tudo que seria uma relação profunda e madura. Cada contato, por breve que seja, precisa apenas ser sincero e motivado. Ao contrário de certas experiências religiosas que podem ocorrer através de uma revelação instantânea, o namoro e o aprendizado ocorrem num caminhar. Cuidar dos primeiros passos garante ao caminhante a possibilidade de realizar longas e fascinantes jornadas.

A base dos instrumentos de bocal

Para se iniciar e se desenvolver com sucesso num instrumento de bocal o primeiro pré-requisito é que o aluno tenha um mínimo de consciência e controle de sua respiração, da sua língua, dos seus músculos faciais e dos seus lábios.

Independente da idade do aluno, existe uma série de atividades e brincadeiras que podem ajudá-lo a desenvolver essa autoconsciência. Infelizmente, o habitual é que o aluno comece o aprendizado sem maiores preocupações com esses aspectos que só são abordados quando começam as frustrações. Nesse momento, já foram introjetados vários hábitos equivocados que devem ser desaprendidos primeiramente para que se possa adquirir novos.

O que poderia acontecer de maneira agradável e positiva ocorre de maneira penosa no triplo do tempo: aprende-se de forma equivocada, desaprende-se, reaprende-se. O triste é que nem todos, depois de um primeiro aprendizado, conseguem desaprender para reaprender.

Passeando de mãos dadas com a música

O outro lado importantíssimo da questão, e que também é freqüentemente negligenciado, é o fato de que o instrumento é apenas um “instrumento” de expressão de uma linguagem, e que só ganha sentido quando a serviço do fim a que se destina.

Um trompete não é um fim em si mesmo, mas só conquista seu significado verdadeiro quando serve de “instrumento” de expressão da linguagem musical. Não importa qual “língua” se empregue (erudita, jazz, popular com todas as suas ramificações), o importante é que o aluno, desde suas primeiras “palavras”, tenha consciência de que não está participando de uma simples atividade, mas sim, está aprendendo a “falar” através de seu instrumento na linguagem da música.

Dessa forma, os mais simples exercícios com uma ou duas notas devem necessariamente ter um sentido musical que se insere num contexto maior. E isso é válido também para exercícios técnicos. Um bailarino pode fazer exatamente o mesmo movimento que um atleta de aeróbica, mas o que o diferencia é o “significado” que dá ao seu movimento.

Um aluno que teve sua iniciação instrumental norteada por esses princípios certamente poderá trilhar a estrada do aprendizado com muito mais alegria, motivação e sucesso do que outro que desenvolva um trabalho alienado de um contexto musical mais amplo.

Mesmo que você já tenha deixado sua “primeira vez”, há muito, para trás, lembre-se de que o espírito humano, ao contrário da matéria, pode sempre, qual uma fênix 1 , renascer de suas próprias cinzas. Olhe para seu instrumento com os olhos de uma criança, a alma de um aventureiro e a determinação de um líder; sua aventura estará apenas começando.

1. Ave mitológica, símbolo da alma e da imortalidade, que, segundo a crença dos antigos, vivia muitos séculos e por fim se queimava para depois ressurgir de suas próprias cinzas.


Angelino Bozzini é professor e trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.


Fonte: Publicado na Revista Weril n.º 130