A Personalidade da Trompa: Resgatando a individualidade sonora do instrumento

por: Angelino Bozzini

Dentre todos os instrumentos de metal em uso atualmente, a trompa destaca-se principalmente por seu timbre único. Esse tem origem, em parte, na constituição física da trompa e, em parte, na forma como o executante coloca sua mão na campana e os lábios no bocal. Vamos analisar os elementos que dão origem a essas características e como cultivá-los.

Relembrando as raízes

Embora trompetes, trombones e trompas vivam hoje sob o mesmo teto como membros da mesma família dos metais, sua origem é bem distinta. Os trompetes nasceram a partir do domínio pelo homem da técnica de manipulação dos metais. As trompas nasceram das conchas, dos chifres e dos troncos escavados, práticas essas que estão vivas desde a pré-história até os dias de hoje nas trompas de concha do pacífico, nos berrantes brasileiros ou na trompa alpina.

Enquanto a família dos trompetes já nasceu com todo o brilho dos harmônicos superiores produzidos pelo metal, a trompa trouxe “do berço” os timbres suaves da concha, do chifre e da madeira.

Outra característica sonora vem do fato de as trompas terem sido usadas como instrumentos de sinal, geralmente solitário, cujo som precisava projetar-se para longe. Enquanto o trompete se desenvolvia em fanfarras militares nas grandes civilizações da antiguidade, a trompa seguia sua trilha solitária nos lábios de caçadores, mensageiros e marinheiros.

Mesmo quando começou a ser fabricada em metal, a trompa continuou a cumprir por muito tempo sua função de instrumento de sinal, só vindo a integrar timidamente as orquestras no período barroco. É interessante notar que o ingresso da trompa no reino dos instrumentos musicais se dá simultaneamente com a saída da família dos cornettos, que, embora tocassem na mesma tessitura dos trompetes, tinham um som muito mais suave que aqueles.

Por muitos anos, as trompas sofreram as mesmas limitações técnicas dos trompetes: só podiam tocar os sons harmônicos, o que só permitia a execução de melodias “normais” na região do extremo agudo de sua tessitura. Por volta de 1750, em Dresden, o trompetista Hampel introduziu técnica de mão, a partir da qual era possível, fechando-se a abertura da campana com a palma da mão, produzir as notas que faltam na série harmônica para se formar uma escala distônica. A partir daí, a trompa tornou-se um instrumento solista (ouça, como exemplo, os concertos de W.A. Mozart ou Joseph Haydn). Um fato importante é que a trompa foi aceita no círculo dos instrumentos modernos com a mão dentro da campana. Esse fato, ao mesmo tempo em que caracteriza a trompa, coloca uma série de problemas ao trompista. Vamos abordá-la em detalhes.

As implicações da mão na campana

A mão funciona ao mesmo tempo como um “abafador” e um filtro de harmônicos, pois absorve grande parte da vibração da campana e, simultaneamente, “intercepta” o som em seu caminho para fora da campana. O uso da mão também faz com que a posição adotada desde então utilize a campana do instrumento voltada para baixo e para trás. Comparando-se com os trompetes e trombones essa posição coloca dois problemas :

O som da trompa tem uma perda de energia sonora na origem. Assim, se um maestro quer que uma trompa e um trompete saiam com a mesma intensidade para o público, o trompista deve estar tocando um degrau mais forte.

O som da trompa leva consigo a forma do ambiente. Ao contrário do trompete e do trombone que têm suas campanas apontadas diretamente para o público, o som da trompa tem de dar uma volta pelo ambiente até chegar ao ouvinte. Isso tem duas implicações: o som das trompas parece muitas vezes estar atrasado em relação aos dois outros instrumentos (o que pode ser corrigido pelo trompista tocando, dependendo do ambiente, uma fração de segundo à frente dos outros); a trompa é um dos instrumentos mais sensíveis às mudanças de local de execução. O trompista tem que aprender a tocar pensando que todo espaço ambiente é uma prolongação de seu instrumento.

Um toque de lábios

Além da mão dentro da campana, o som da trompa depende também de outra característica: a posição dos lábios dentro do bocal. O ideal é que a proporção seja aproximadamente de três quartos do lábio superior para um quarto do inferior. Essa posição, além de permitir um controle e flexibilidade maiores sobre a vasta extensão do instrumento (mais de quatro oitavas), ajuda na composição do timbre característico da trompa.

Faça uma experiência: toque com os lábios meio a meio e, depois, com uma porção maior do lábio inferior dentro do bocal. Nota a diferença no timbre? Em qual posição você obtém o som de trompa mais característico?

Quanto ao bocal, vale a pena lembrar de um último conselho: a borda interna do bocal deve sempre ficar acima da parte vermelha do lábio, ou seja, a parte branca. Isso faz com que o “bico” do lábio esteja livre para vibrar dentro do bocal.

Pela riqueza sonora

Que lindo é um prado florido, colorido por flores diversas. Que monótona uma plantação comercial de flores, todas iguais e com as mudas simetricamente dispostas. O longo processo de evolução dos instrumentos musicais que necessitou do esforço de um sem número de artistas, artesãos, técnicos e engenheiros visou a riqueza e a diversidade dos timbres musicais. A nossa obrigação como instrumentistas é a de cultivar e refinar essa diversidade.

Para tanto, vale a pena ler um bom livro de acústica aplicada aos instrumentos musicais para entender como se forma o timbre de um instrumento, bem como quais são os fatores físicos que influem em sua afinação e sonoridade. Aconselhamos, como introdução, o excelente livro de Arthur Benade, “Sopro, Cordas e Harmonia“. A edição brasileira está esgotada, podendo ser encontrada em sebos. Existe uma edição original atualizada que pode ser encontrada na www.amazon.com, sob o nome de Horns, Strings and Harmony.

Do ponto de vista artístico, é importante que se ouça grandes intérpretes e obras de diferentes épocas e estilos, sempre atento às características sonoras de cada um.

Assim você conquistará sua identidade sonora como instrumentista, fortalecendo sua personalidade como artista!


Angelino Bozzini é professor e trompista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.


Fonte: Publicado na Revista Weril n.º 131