A Flauta Sem Mistérios
por: Renato Kimachi
Trataremos aqui dos aspectos técnicos que envolvem a arte de tocar flauta, começando pela respiração, o primeiro passo para se dominar o instrumento. Inicialmente, falaremos sobre seu mecanismo: a respiração se divide em inspiração e expiração. Durante a inspiração, o diafragma puxa o ar para os pulmões. Para se ter uma respiração silenciosa e flexível (mais rápida ou mais lenta), devemos pronunciar a vogal “Ô” como se fosse um bocejo. Assim, abrimos a garganta, abaixamos a língua e o ar passa sem obstáculos, portanto, sem barulho. A língua, além de estar abaixada, deve encostar nos dentes inferiores (apenas encostar, sem empurrar; se isso acontecer, haverá tensão demasiada, ocasionando o fechamento da garganta e, por conseqüência, do som).
Na expiração, usamos os músculos abdominais para expulsar o ar dos pulmões. No controle da velocidade em que ocorre este processo de expulsão, através dos músculos abdominais, reside o controle da dinâmica. Quanto mais ar, mais forte; quanto menos ar, mais piano. Este controle se chama “apoio” ou suporte dos músculos abdominais. Os lábios se incumbem de controlar a velocidade final do ar e, por conseguinte, a afinação.
Para se ter a sensação do mecanismo de inspiração e expiração e do apoio, podemos imitar a respiração ofegante de um cachorro (sempre pensando na vogal “Ô”). Progressivamente, vai-se aumentando o tempo da inspiração e da expiração, sempre mantendo a garganta aberta, expirando o ar com som de “F”(lábios mais fechados para sentir a resistência do ar sem fechar a garganta), mas com a cavidade bucal bem aberta (Ô) e inspirando o ar como um bocejo, treinando assim a sustentação e o apoio das notas.
Devemos estudar a respiração sem a flauta por uma questão de concentração. Depois de devidamente trabalhado individualmente, transferimos o domínio da respiração para o instrumento. Para tanto, podemos usar uma bolsa de ar de cinco litros (conhecida como ressuscitador). O ideal é comprar a bolsa importada, mais lisa e fácil de visualizar. O exercício consiste em encher a bolsa de ar e inspirá-lo silenciosamente e o mais rápido possível (pensar em Ô). Pode-se, a seguir, medir a respiração, pensandose em expirar em quatro semínimas e inspirar na última semínima num compasso 5 por 4 e semínima = 60. Vai se aumentando a velocidade aos poucos, respirando-se a seguir na última colcheia, depois na última semi-colcheia e assim por diante. A ideia do uso da bolsa de ar para flautistas é do prof. Keith Underwood. Uma boa respiração é silenciosa, flexível quanto à velocidade e intimamente ligada à música, nunca cortando frases. Postura: Quando de pé, devemos pensar em uma postura relaxada, ereta, com cabeça e tronco erguidos, joelhos levemente dobrados, peso nas coxas, sensação de uma linha imaginária que vai do calcanhar, passando pelas costas e indo até a cabeça, alongando o corpo inteiro. Para deixar a cabeça na posição certa, não muito abaixada e nem muito erguida, podemos fazer um teste, cantando e sustentando a vogal “Ô” e abaixando e erguendo a cabeça sucessivamente. Devemos procurar o som mais ressonante e aberto, indicando que estamos abrindo a garganta e com a postura correta. A sensação é de alongamento da coluna cervical (região do pescoço). Os braços formam triângulos com o corpo. Se fôssemos vistos de cima, veríamos dois triângulos cujos lados seriam formados pelos braços, antebraços e corpo. Devemos sempre pensar em relaxar os ombros. O quanto levantamos ou abaixamos os cotovelos e o quanto dobramos os pulsos devem estar relacionados com o relaxamento dos ombros e o alinhamento da flauta com relação ao corpo. Vendo um flautista de frente, a linha do instrumento deve ser paralela com a linha dos lábios. Vista de cima, a linha da flauta deve estar perpendicular à ponta do nariz do músico.
Os pés podem ficar paralelos um ao outro ou fazendo um “L”, o direito sendo a base e o esquerdo à frente, levemente separados. Giramos a cabeça para esquerda em direção à estante, ao maestro e ao público.
Nosso corpo nunca ficará de frente para a estante e sim para a direita. O mesmo vale quando estamos sentados. Os pés devem tocar o chão, e a cadeira voltada para a direita para girarmos a cabeça para a esquerda. A flauta é transversal, não a tocamos como um clarinete, por exemplo. Se não prestarmos atenção a estes detalhes, pode-se desenvolver graves problemas de coluna. Devemos pensar em movimentos horizontais, seguindo as linhas das frases, para não criarmos vícios de tocar acentuando notas sem nessessidade, a menos que estejam indicados acentos na partitura. Os movimentos devem estar sempre relacionados à música, como se fôssemos atores interpretando um texto.
Posição dos dedos: devemos pensar em dedos naturalmente curvados e tocando as chaves com a região da polpa. Como exceção à regra, temos o dedo indicador esquerdo, que toca a chave com a ponta. O polegar esquerdo, dependendo do tamanho da mão, toca com a polpa, mas com a parte do lado esquerdo por uma questão de comodidade. O polegar direito participa da sustentação do instrumento, curvando-se naturalmente para esquerda, posicionado entre uma região logo abaixo do indicador e na metade entre o indicador e o médio. O indicador da mão esquerda também participa da sustentação do instrumento, mas com sua parte baixa, após a segunda articulação de cima para baixo, entre a terceira e a quarta linha. Em termos de anatomia, é a parte próxima da primeira falange. É aquela região onde se formam calos.
Devemos pensar em segurar a flauta pelos lados, formando uma alavanca contra o queixo. O polegar direito empurra a flauta para frente, a parte baixa do indicador esquerdo empurra a flauta para trás, e a flauta vai direto contra o queixo. É importante notar que tanto o polegar direito como a parte baixa do indicador esquerdo devem empurrar a flauta com um certo ângulo (aproximadamente 45º em relação ao chão) para cima, para que a flauta não tenha tendência a girar para dentro (o que causaria perda de flexibilidade no som).
Devemos perceber a importância do dedo indicador da mão esquerda quanto à sustentação do instrumento e a facilidade da técnica de digitação da mão esquerda. Ele empurra a flauta contra o queixo com a parte de baixo, onde se formam calos. Assim como o polegar da mão direita, ele empurra com um certo ângulo para cima. Toca a chave com a ponta e não com a polpa. Assemelha-se à figura de um cisne. A segunda articulação dobra, de forma a ficar perpendicular à região anterior do dedo, e a primeira articulação dobra, de modo que o dedo toca a chave com a ponta. Atenção: a terceira articulação deve dobrar de forma moderada, para que o dedo não fique nem muito alto, nem muito baixo. Com isso, se obtém maior controle da digitação da mão esquerda, facilitando passagens difíceis que envolvem esta mão. O importante é que tanto o dedo indicador da mão esquerda quanto o dedo polegar da mão direita fiquem relaxados.
Embocadura: A embocadura é uma conseqüência da forma como sopramos. Ela dá o acabamento final ao ar que produzirá o som. Se soprarmos de forma correta, com apoio, sem fechar a garganta, é quase certo que a embocadura será relaxada. Não devemos sorrir espremendo os cantos dos lábios e nem tampouco exagerar no relaxamento, enchendo as bochechas demasiadamente de ar. Deve ser relaxada e natural, quase sem modificar a forma dos lábios quando estamos com a boca fechada. Os lábios superiores ficam levemente na frente dos inferiores, para projetar o ar na quina do buraco do porta-lábio, onde o som é produzido. Segundo Keith Underwood, devemos pensar em usar mais os músculos vizinhos dos lábios e não somente o músculo orbicularis (lábios). Usamos o triangularis, que abaixa o canto dos lábios. Usamos o mentalis, músculo do queixo que leva o lábio inferior para frente, cobrindo mais o bocal. E usamos o caninus, músculo da “maçã” do rosto, que controla os lábios superiores, dando mais foco ao som. Com o uso destes músculos faciais, a embocadura resultante permite um som maior, mais flexível e interessante em termos de beleza e controle de timbre, dinâmica e afinação!
Uma analogia que sempre funciona é o sopro de uma vela ou várias velas de aniversário. A diferença é que o ângulo para soprar na flauta é mais para baixo. Mas a embocadura é praticamente a mesma, como se pronunciando o fonema “F” com dentes mais afastados.
Muita polêmica envolve a forma como o vibrato é produzido. Primeiramente, a definição de vibrato para cantores e instrumentistas de sopros é: variação da coluna de ar através da garganta (nos instrumentos de cordas, é uma variação na freqüência do som). É uma sucessão de uso alternado de uma maior quantidade de ar com uma menor quantidade de ar, como se fossem pulsos de ar. É claro que, se a garganta estiver fechada, teremos o popular “vibrito”, o vibrato de cabrito, tão tocado nas rádios. Devemos pensar em abrir a garganta enquanto fazemos uma leve ação para pulsar o ar. Para efeito de aprendizado, podemos pensar em tocar uma nota longa na flauta e tossir suavemente enquanto sopramos com a vogal “Ô”, sem interromper o fluxo de ar, sempre sustentando o sopro e o som. Suavizamos cada vez mais a tosse até que não haja interrupção na coluna de ar pelo fechamento temporário da garganta provocado pela tosse. É uma versão suave de tosse, sem fechar a garganta. A variação na afinação é uma conseqüência do vibrato, não o objetivo maior, que é variar a quantidade de ar, alternando mais ar e menos ar no sopro. A sensação do vibrato de diafragma é causada pelo ar que pode voltar para baixo enquanto vibramos com a garganta. Como sabemos, o diafragma é um músculo liso, portanto, involuntário.
A afinação é uma questão da superfície de reflexão sonora e da velocidade da palheta de ar que sopramos.
Quanto maior a superfície de reflexão sonora, mais alta é a afinação. Quanto menor, mais baixa. Aumentamos a superfície de reflexão sonora cobrindo menos o bocal, e a diminuímos cobrindo mais. Para cobrir menos o bocal, basta girar a flauta mais para fora ou levar os lábios inferiores mais para trás; para cobrir mais, basta girar mais para dentro ou deixar os lábios inferiores mais para frente. Por exemplo, quando vamos tocar uma nota aguda e pianíssimo, a tendência é o tensionamento e conseqüente colapso dos lábios inferiores para frente. Isto faz a nota cair em afinação. Se usarmos a “psicologia invertida”, podemos pensar em rolar os lábios inferiores nos dentes inferiores, o que evita levarmos os lábios inferiores tão para frente, mantendo a superfície de reflexão sonora e, por conseqüência, a afinação. Se mudarmos o ângulo como sopramos o ar, também mudamos a afinação. Se soprarmos mais para fora do bocal, a afinação sobe, pois o ar interno da flauta diminui de tamanho, aumentando a freqüência sonora e subindo a afinação. Isto ocorre porque uma menor quantidade do ar soprado participa da coluna de ar interior, diminuindo o seu tamanho. Se soprarmos mais para dentro do bocal, a afinação desce, pois o ar interno da flauta aumenta de tamanho, diminuindo a freqüência sonora e abaixando a afinação. Isto ocorre porque uma maior quantidade do ar soprado participa da coluna de ar interior, aumentando o seu tamanho.
Enquanto os músculos abdominais controlam a quantidade de ar (através do apoio) e, por conseguinte, a dinâmica, os lábios controlam a velocidade da palheta de ar e a afinação.
Quanto ao controle de dinâmica e afinação, pensemos na analogia com a mangueira de jardim. Os músculos abdominais representam a torneira, e os lábios, o final da mangueira. Imaginemos que vamos regar uma planta à nossa frente. Para continuar regando a mesma planta com mais água (tocar a mesma nota mais forte), ao abrirmos a torneira (empurrar mais ar com abdome) temos que, ao mesmo tempo, aumentar o tamanho do buraco da mangueira por onde sai a água (relaxar mais os lábios, aumentando o tamanho do buraco dos lábios). Caso contrário, a água ultrapassa a planta com menos água (tocar a mesma nota mais piano); ao fecharmos a torneira (empurrar menos ar com o abdome), temos que, ao mesmo tempo, diminuir o tamanho do buraco da mangueira por onde sai a água (aproximar mais os lábios sem espremê-los, diminuindo o tamanho do buraco dos lábios). Caso contrário, a água se distancia da planta, indo em nossa direção (a afinação cai). Em outras palavras, deixar os lábios relaxados, flexíveis, apenas moldando a coluna de ar, permitindo as mudanças de dinâmica sem variar a velocidade e a afinação.
Para mudarmos o timbre sem modificarmos a afinação, basta soprarmos com mais foco (som mais claro) ou menos foco (som mais escuro), sem modificar a velocidade da palheta de ar que sopramos na quina onde o som é produzido. O foco diz respeito ao formato da palheta de ar. Uma palheta mais concentrada, fina, produz som mais claro. Palheta de ar mais difusa, larga, produz som mais escuro. Depende da abertura dos lábios e do uso do ar. A abertura da cavidade bucal e a posição da língua influenciam na ressonância do som.
A articulação é determinada pelo ataque, duração e dinâmica de cada nota a ser tocada. Para tanto, fazemos uso de diferentes posições da língua durante o ataque e, principalmente, do uso da coluna de ar.
O ar é o elemento mais importante na articulação, responsável pela duração e dinâmica da mesma, pois a língua não deve cortar a coluna de ar, nem os lábios. A língua é responsável apenas pela precisão do ataque, do início da nota. Funciona como uma válvula que inicialmente fecha o caminho do ar para fora da boca e, quando colocada para trás, libera este caminho, permitindo que o som se inicie. A língua, portanto, não bate, ela sai do caminho. Existe uma certa pressão atrás da língua, devido ao ar que está prestes a ser liberado, articulado. Esta pressão depende do apoio dos músculos abdominais, que, além disso, controlam a quantidade de ar a ser liberado (dinâmica e duração da nota). Os lábios dão o acabamento final ao ar liberado, controlando sua velocidade (afinação) e direção (foco e timbre). Vale lembrar que a língua deve estar sempre relaxada e deve-se usar movimentos mínimos.
Alguns inícios de frase, de tão sutis, pedem articulação sem língua. Ex.: o início do “Prélude à L’apres-midi d’un Faune”, de Debussy. Usamos a articulação simples para passagens não muito rápidas, onde conseguimos articular grupos de notas sucessivamente com a mesma sílaba. Usamos a letra “T” ou “D”, sendo que o “T” confere ataque mais nítido e o “D” ataque mais suave. Formamos diferentes sílabas dependendo da vogal que queremos para a passagem em questão. Ex.: Ta, Te, Ti, To, Tu ou Da, Di, Do, Du. A língua se posiciona entre os dentes para os registros médios e agudos, e logo atrás dos dentes superiores (palato duro), para o registro grave.
Usamos a articulação dupla para passagens mais rápidas, onde necessitamos alternar duas sílabas para maior comodidade e clareza de execução (letras “T-K” alternadamente ou”DG”). Se a passagem for muito rápida, é mais aconselhável usar o”D-G”, que deixa a articulação mais leve e a frase mais fluente. Como a sucessão de notas já é rápida, as notas soarão naturalmente curtas. Usamos também em passagens rápidas a articulação tripla, onde há grupos de três notas sucessivas. Usamos as letras “T-K-T” ou “D-G-D”. O D-G-D é mais indicado para passagens muito rápidas.
O importante é que técnica e musicalidade caminhem juntas. A técnica deve ser escrava da música, e nunca o contrário! Exatamente por isso, a técnica deve estar sob controle.
Renato Kimachi é professor e mestre em Música – Flauta pela Arizona State University, e flautista principal da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto
Fonte: Publicado na Revista Weril n.º 140